ENCAIXAR A MEMÓRIA: O CONHECIMENTO SITUADO DA REPÚBLICA DOS SONHOS – María Antonia Miranda González


María Antonia Miranda González

Orientadora: Nancy Rita Ferreira Vieira

 
 
Resumo: O objetivo do artigo é refletir sobre as potencialidades que a literatura traz para ampliar o significado do conhecimento situado, que abarca o entendimento da objetividade e do subjetivo, como experiência válida para a produção de uma teoria feminista que dialoga com a escrita das mulheres. Está baseado no romance de Nélida Piñon, A República dos Sonhos (1984), e utiliza como os principais referenciais teóricos os aportes de Boaventura de Sousa Santos (2008) e da Donna Haraway (1991).
 
Palavras-chave: objetividade, subjetividade, posicionamentos, memória, política.
 
Minicurrículo: María Antonia Miranda González possui graduação (2004) e mestrado (2009) em Sociologia na Universidade de Havana. É formada no Centro de Formação Literária Onelio Jorge Cardoso (Cuba, 2004). Foi professora do Departamento de Sociologia da Universidade de Havana em 2004-2007. Pesquisadora do Instituto Cubano de Investigações Culturais – ICIC. Foi colaboradora do Centro Félix Varela e da Revista Digital Cubaliteraria (2008-2011). É uma das autoras do livro intitulado: Convergencias en género, apuntes desde la sociología, lançado em 2011. Atualmente realiza estudos de doutorado no Programa de Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, gênero e feminismo – PPGNEIM – da UFBA.
 
Minicurrículo: Nancy Rita Ferreira Vieira é Doutora em Letras pela UFBA e Professora Adjunto do Departamento de Letras Vernáculas do Instituto de Letras da UFBA. É Professora do Membro do Programa de Pós-graduação de Literatura e Cultura – PPGLitC do Instituto de Letras da UFBA e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo – PPGNEIM.
 
 
Encaixar a memória: o conhecimento situado da
República dos Sonhos
 
María Antonia Miranda González
Nancy Rita Ferreira Vieira
 
Em vez da eternidade, a história; em vez do determinismo, a imprevisibilidade; em vez do mecanicismo, a interpenetração, a espontaneidade e a autoorganização; em vez da reversibilidade, a irreversibilidade e a evolução; em vez da ordem, a desordem; em vez da necessidade, a criatividade e o acidente.
(Boaventura de SOUZA SANTOS).
 
O argumento fundamental é que a ação humana é radicalmente subjetiva.
(Boaventura de SOUZA SANTOS).
 
Começo a escrever desse lugar, na verdade, um entre-lugar que se perde, às vezes, nas leituras sociológicas, nas leituras das ciências humanas e no literário como fonte, e com A República dos sonhos (PIÑON, 1984) aberta em uma página qualquer à minha frente, talvez pedindo para ser julgada como arte, ou será que todos esses fantasmas que pulam dentro dela concordam com meu ato de trazer essa leitura que se anima a declarar que: “os objetos têm fronteiras cada vez menos definidas; são constituídos por anéis que se entrecruzam em teias complexas com os dos restantes objetos, a tal ponto que os objetos em si são menos reais que as relações entre eles”1 (SOUZA SANTOS, 2008, p. 56).
Começo a escrever desse lugar e trago essa ideia de Boaventura de Souza Santos (2008) porque já me resulta difícil avançar por um texto sem a admiração que me provocam certas interdependências, inclusive apagamentos de limites, como aqueles que são manejados por Piñon (1984), quando escreve sobre a conformação de um Brasil a partir do alimento dos mitos que lhe chegaram de fora, através da travessia pelo Atlântico. Os mitos de Sobreira, contados pelo Xan, os de Dom Miguel passados para a filha Eulália, ou aqueles recortados pelos sonhos de Venâncio, formando uma mistura compacta que acabaria “nas mãos” da personagem que mais me fascina, a Breta2.
Essa travessia inconclusa simbolicamente conforma uma “república dos sonhos”. Esta ainda pode ser sonhada por todos/as os que, de alguma forma, se preocupam com os roteiros da América. Há aí vários aspectos enriquecedores para o entendimento da polêmica da objetividade que preocupa as feministas e os estudos sobre o feminismo. Isto porque, sobretudo, segundo Breta, “Falar é também um método de luta” (PIÑON, 1984, p. 264).
E, como acredito que a teoria feminista, em sua perspectiva acerca da objetividade do seu conhecimento3, poderia dialogar de forma fecunda com fontes como a escrita das mulheres, para ampliar o que tem se sedimentado como espécie de conclusão sobre a temática, e que tem a ver, na maioria dos casos, com uma defesa da teoria do lugar e mais recentemente com o debate sobre as posicionalidades4:
 
As análises feministas são inerentemente avaliativas e não podem, portanto, pretender uma simetria que é metodologicamente impossível (porque todo conhecimento e toda análise é sempre situada) e politicamente indesejável (porque é preciso identificar e denunciar as assimetrias de poder associadas ao gênero) (GARCIA, 1999, p. 52 – minha tradução).5
 
 
Assim nos adentramos na ideia de “conhecimento situado”, a partir dos distintos lugares em que se coloca a fala das personagens, como um conceito que faz referência à postura epistemológica, acunhado por Donna Haraway (1991), na sua obra Ciência, cyborgs e mulheres: a reinvenção da natureza, inscrita dentro da epistemologia pós-moderna, que nasce da crítica à epistemologia feminista do “ponto de vista feminista”. Com este conceito, ela se propõe a falar dos objetos de estudo colocando em evidência o lugar desde o qual se parte, insistindo em que todo mundo parte da sua própria subjetividade, assim como do seu contexto cultural (seja ou não consciente disso).
Nesta ordem e participando de uma lógica como a anterior, posso ter dois caminhos à minha frente, ou tentar enquadrar, nesse pressuposto, minha análise dos fantasmas que pulam e dialogam com a Sociologia, ou tentar me desviar, em algum sentido, que atenue o enquadramento, sem renunciar à denúncia do assimétrico, mas permitindo à literatura uma conceitualização aberta e por que não “diferente”? E a diferença radica em tornar líquido, no sentido de fluido como gosta de escrever Bauman (2009)6, os conteúdos que tentam preencher a categoria “do situado”. Por esse motivo, achei válido destacar, para resolver este ponto, o fato de que na República dos sonhos, encontramos a personagem Eulália, que dispõe de caixas para arquivar o passado, num sentido que me remete à ideia de lugar construído ou da criação de um lugar privilegiado para a “subjetividade”.
Nessa posição, “a caixa” confunde sua dimensão física com sua função dentro do relato e passamos a interagir com um objeto volátil que não mostra seu verdadeiro conteúdo, no entanto, se refere constantemente às afetações e implicações que ele tem, impedindo-nos do exercício de imaginá-lo com exatidão. Por isso mesmo, nos oferece essa liberdade criativa que a imagem literária provoca. Por outro lado, é uma liberdade que se compromete, com a tarefa de desenhar, a partir de suas “minúcias”, alguns dos fios soltos para restituir o que, na figura do personagem Venâncio7, se ressalta como utópico. Ao se tratar de recipientes habilitados para guardar um tecido único composto pelos fios que emaranham as experiências dos sujeitos da história da narrativa com os acontecimentos da política formal, cada uma dessas caixas se torna testemunha de fatos que imbricam “realidades” arrancadas à América, ao Brasil e à humanidade dos seres de carne e osso que as alimentaram. A metáfora se explica a partir da violência que esses seres enfrentaram, e a partir do fato da realidade ser uma construção social, coletiva.
Não obstante, começando pelo ato da denúncia, queria primeiro apontar que, a manifestação “subjetiva”8 de “situações-posições” das mulheres recriadas na obra da romancista brasileira, em resumidas palavras, obedece a uma reacomodação paulatina de papéis que se explicam sempre através dos relacionamentos que as personagens mantêm com os/as outros/as: Eulália, Odete, Antônia, Esperança, Breta. O mecanismo que selecionei, por achar pontos nodais e de conflito, passa pelas relações entre Eulália mãe-esposa, encarnando a mulher-anjo, vinda da própria Europa, com valores religiosos e saúde fraca, sempre precisando de cuidados. Da mulher negra Odete, vinda da África, que se constitui como outridade, com a tarefa do serviço e o cuidado, e que passou a vivenciar a experiência unicamente através do corpo e sentimentos da dona branca, desistindo de uma história pessoal, como instrumento. As duas, todavia, igualadas no momento em que, nessa hierarquia doméstica, são circunscritas ao espaço da casa e praticamente ao quarto. Produzem, porém, essas personagens, conhecimento? Ou devemos entendê-las como arquétipos de um conhecimento legitimado que aponta dados sobre a estrutura social dessas mulheres que são confrontadas entre si?
Como falam as caixas de Eulália do despertar à condição imposta desde “fora”, produto de classificações segundo um gênero, uma classe, uma geração? Estamos conscientes das estruturas objetivas dentro das quais vivemos e nos desempenhamos – o questionamento é meu a partir da expressão de Mies (1998, p. 97)? Ou será do modo como escreve Boaventura de Souza Santos (2008, p. 36), que: “os seres humanos modificam o seu comportamento em função do conhecimento que sobre ele se adquire”. A consciência é reconvertida num lugar compartilhado socialmente. E, se esse é um sitio compartilhado, formado e definido pelas relações, representações sociais, normas, tipos ideais, que a atravessam, não estará igualmente esse conhecimento em múltiplos sítios, ressituado constantemente como um fluxo, e como um fluxo, deslocado?
Nesse sentido, uma das primeiras preocupações gira em torno de discutir se a escrita das mulheres, como no caso de Nélida Piñon, trabalha com a promessa de ter algo novo a dizer sobre a construção da subjetividade e consequentemente também alguns detonantes imprevistos na objetividade e nos pontos de partida? Se, em algo concordo, é com a afirmação de que “o novo que essa escrita tem a dizer” começou pelo fato de evidenciar o omitido, o silenciado, fazendo críticas e expondo a violência material9 sobre os corpos das mulheres, pondo à vista os desafetos e as partes abjetas da maternidade, casamento e das instituições como a própria família, montada sobre a égide dos valores e normas patriarcais. Essa escrita em varias ocasiões também se preocupou em deslocar e ressignificar as mulheres.
Penso que não é por acaso que Piñon (1984) começa sua República com uma Eulália moribunda, mas com um plano almejado para esse momento:
 
Eulália começou a morrer na terça-feira. Esquecida do último almoço de domingo, quando a família se reunira em torno da longa mesa especialmente armada para receber filhos e netos. À cabeceira, Madruga presidia os festejos e os hábitos implantados na casa desde sua chegada à América (PIÑON, 1984, p. 7).
 
 
Eulália está morrendo no início da República dos sonhos, mas por que a história dessa América deve começar com uma mulher pronta para morrer? É como se a autora colocasse num nível de fala invisível uma postura que altera as mortes femininas de tantas personagens de autores homens, que de modo geral se apresentam como mortes nos finais, punitivas, de escarmento, as lições finais para as heroínas, essas figuras dissonantes com o meio social. Uma morte, no começo da história, muda a panorâmica exemplaridade que se prepara para as transgressoras. Assim sendo, todas as personagens massacradas estão no leito de Eulália, que se prepara para morrer uma morte tranquila. Não há a intenção do terrível e sim a conquista de uma outra morte: essa que desde o espaço do silêncio fala, para construir paralelamente outros sonhos e intencionar deste modo novos referentes e significantes da política.
Aparece certo jogo, em que a autora doa uma característica pouco usual à personagem, a possibilidade de produção de uma forma de conhecer, de aceder ao conhecimento. O interessante é que de repente isto aparece como um ato liberatório que desmancha as paredes e proporciona um alcance maior para esta personagem angelical. Ela é recolocada como uma arquiteta da memória, e seu desejo é deixar a memória como herança: “Vamos, Eulália, fale de uma vez com quem vai ficar a minha história? E para onde vão seguir os sonhos, que tanto prezas?” (PIÑON, 1984, p. 20).
Fabricar um senso de memória é o ponto de partida do texto, relacionando esse conceito à própria fabricação da história pessoal conectada com a história de um país. E relativiza, ao mesmo tempo, a estabilidade ilusória do termo situar, introduzindo um paradoxo entre a impossibilidade de cristalizar, fixar as experiências e, simultaneamente, lhes outorgar uma materialidade concreta no lugar dos objetos acumulados sob sua perspectiva.
Os filhos, uma filha, e a neta estão prontos para receberem as caixas com seus nomes. São as caixas da mãe (e avó) que veio da Espanha para fazer a América junto com o esposo, Madruga10. Na sua dupla situação, a personagem Eulália não vai falar de si, no entanto, parece que só é dela que fala, no ato de catar as lembranças que fazem sentido para ela, no que seria o material, a partir do qual os outros, os filhos e a filha, conseguiriam dar continuidade ao relato da identidade olhando para o passado, se encontrando com sua história, porém sempre alheia, construída pelo olhar materno:
Eulália dispunha de cinco dessas caixas, todas distintas entre si. Cada qual correspondendo a um filho, e a que só ela tinha acesso. Sem que Madruga jamais se questionasse sobre o que havia dentro. Um material que no futuro permitiria aos filhos contarem suas histórias por meio de fatos ali armazenados11 (PIÑON, 1984, p. 183).
 
Trata-se de histórias que não conformam um espelho com a capacidade de representá-los e sim de provocar se sentirem estranhos ou confrontados por elas (como imagens que se olham umas às outras em forma de réplicas desfiguradas). Há um poder, nesta presença subjetiva que se afirma a si mesma, e sinaliza uma ruptura com os limites impostos à sua condição-posição, já que “Ultimamente Eulália observava Madruga como se lhe pesasse o encargo de partilhar o cotidiano com o marido” (PIÑON, 1984, p. 8). Esta ótica de Eulália coloca as mulheres não só como espectadoras do que acontece ao seu redor, senão como as principais fabricantes da memória12.
Nesse ato de acumulação de objetos pessoais, Eulália queria oferecer aos filhos/as uma oportunidade de materialização do “real”, restituir a legitimidade de vidas que aconteceram no entremeio das identidades nômades. Evidencia o caráter bifurcado e transitório da “identidade” como “entidade” trabalhada durante a penosa jornada de se apegar aos objetos que sinalizem pertença ao entorno, começando pela apropriação do nome.  Do mesmo modo, Eulália outorga ao espaço da caixa a capacidade não só de configurar um sítio para o íntimo, mas também a erige como performance do espaço que se converte em lugar de fala. Um espaço no qual o íntimo é reaberto a cada instante. Não se trata de uma intimidade como uma ideia fechada ou enterrada que descansa em algum resquício do inconsciente coletivo, é um íntimo que se sacode e remove, respeitando a ordem do seu poder de manipulação. Então, se abre como proposta de um território de domínio oposto à dominação oficial, mas em diálogo com ela, para prosseguir com suas analogias e também para desacreditá-las.
Esse objeto instalado na caixa também insinua faltas e ausências que enaltecem o que foi selecionado como substituição tangível do momento que fugiu, para voltar emergindo dentro de novas conotações discursivas. É o vazio dessa filosofia existencial que preenche os espaços entre os objetos, o lugar no qual os personagens criam as perguntas sobre eles/as mesmos/as e conseguem acomodar multíplices possibilidades de percepção: “Acaso sou invejoso, padrinho? A quem invejo nesta casa? (…) Não sei, Tobias, também eu tenho perguntas difíceis a me fazer” (PIÑON, 1984, p. 676).
É o ato de sair coletando pedaços da realidade, os restos da existência, a maioria deles resgatados do lixo, convertidos em objetos de lembrança através da construção simbólica –
partes de frases, bilhetes com pequenos discursos – que Venâncio colocava no berço de Tobias, e iam parar  no fundo da sua caixa para serem digeridos com justiça no futuro, o que conforma o entendimento de uma história que se conta a partir do fato da recopilação.
Essa recopilação fala da construção do lugar e do posicionamento que estão assim atrelados – como no caso da personagem Eulália – a interesses e problemáticas relativas ao poder. Essa problemática que nos permite falar da ação de situar, porque “Ninguém quer perder sua cota de poder, ainda que reduzida” (PIÑON, 1984, p. 157). Esse trecho parece confirmar o argumento de que esse lugar, esse ponto de vista, que a Haraway (1991) sinaliza como “a subjetividade”, não é um lugar só, ou simplesmente uma zona a percorrer com limites definidos. O subjetivo goza de multiplicidade, de mudanças, de conflitos, é tão contraditório quanto fragmentado, daí seu caráter parcial e relativo, potencializa a validez do pós-moderno para operar nos recortes dos objetos, nas formas de conhecer “o real”13. É essa Eulália que, desde o umbral da morte, detém as provas da existência dos personagens, e cada um deles dá um jeito de se desfazer do conteúdo das caixas, como uma virada para a ênfase na subjetividade e como a negação dos limites dos encaixamentos da experiência e da própria produção dos sujeitos, numa dialética que simultaneamente nega e reconstrói a memória:
 
Os netos já lhes rondavam a casa, prontos a devorar as lembranças ingenuamente acumuladas nos anos de América. Não tinha importância. Há muito os objetos vinham-lhe pesando. E depois queimar retratos, documentos, bilhetes, era a tarefa inadiável dos sobreviventes, pensou com certa angústia (PIÑON, 1984, p. 15).
Não lhe disse que a memória é ingrata? O que se vive uma vez é sepultado para sempre, disse Eulália, uma frase aliás constantemente repetida  (PIÑON, 1984, p. 69).
 
E Piñon escreve: “A gente só pode esquecer, se inventa depressa, para nada ficar faltando” (1984, p. 80). O fato de trazer, como exercício da consciência, uma seleção de elementos da experiência pessoal para justificar o lugar de onde se fala, exclui, seguramente, outros elementos dessa mesma experiência, e, simultaneamente, os modifica, porque são recriados através dos discursos. Isso aparece de modo explícito na narrativa como uma advertência: “Cuidado, Eulália, desconfie das palavras. Elas tanto afirmam quanto desdizem” (PIÑON, 1984, p. 14). E continuo com as perguntas: quem decide os aspectos importantes para situar o conhecimento? Essa escolha é ingênua? Bento, um dos filhos de Eulália, coloca os objetos recordados em envelopes para serem abertos depois da sua morte. Ele exacerba o significado de morte e perda, porém, dentro do contra-jogo às formas de silenciamento tradicionais, fortalecendo a ideia de objeto arqueológico preparado para ser rastreado, e com uma força bem antiga, a da intenção de transcendência dos sujeitos. De certa forma, seu desejo é prolongar a missão que Eulália arquitetou, a de legado. Então, essa narrativa se explica paralelamente como a oportunidade de criação de uma fonte explicativa, não necessária em termos racionais logofalocêntricos, e sim em termos da conjunção de poética e política, que recoloca as mulheres, talvez, num referente diferenciado de sujeito histórico.
Esse potencial literário, de conexões intersubjetivas, fala de uma política que não fica no pessoal (no que vive uma pessoa na suposta esfera íntima-privada), assume a ambiguidade do “de adentro e o de fora”, a intersubjetividade, que representa e recria, é o pessoal feito público, o público feito pessoal, portanto, a intersubjetividade é política. Trata-se também da política da imaginação, da utopia do possível, já que “a potencialidade também tem uma certa realidade” (MORIN, 2008, p. 131), o que Piñon acompanha com as frases de seus personagens: “Não se pode conviver com a justiça social sem uma clara visão poética da realidade (…). E repito ainda: fora do estabelecimento de regras poéticas com que pautar o mundo, sobrevém a perdição e o escárnio público” (PIÑON, 1984, p. 130).
Com esse conjunto das caixas no armário repousando num silêncio desestabilizador, acho possível o resgate da dimensão imaginação-ficção, porque as caixas anunciam que nós, como os personagens, não estamos e não existimos, unicamente dentro de posições inteligíveis, visíveis, senão também em outras, invisibilizadas, susceptíveis de interpretação e tradução, porque cada posição é um palimpsesto de superposições, interseccionalidades, de imbricações, entre variáveis como gênero, classe, raça e geração, e outras, como a profissão, relação com a história de antepassados, sistema de crenças, religião, ideologia, expectativas, e o acesso às oportunidades, Neste ponto, trago uma autora que repara como:
 
A imaginação deixa de ser negativa e a realidade material já não deve ser a única referência na enunciação de si, da mesma forma que, para além do pensamento racional, o que é sentido, e muitas vezes não chega sequer a ser posto em palavras, todo campo da afetação e dos movimentos desejantes, passa a ser necessariamente reconhecido como fundamental na experiência que cada um pode ter de si mesmo e da relação com o outro (CUNHA, 2009, p. 68).
 
Não por acaso cada personagem manifesta seu temor diante do que vai encontrar como objeto de lembrança:
 
A mãe nada mais fez que selecionar memórias e guardá-las nesta caixa. Mas por que não me consultou antes, para saber se eu estava de acordo? Tinha a mãe o direito de colecionar fragmentos da minha vida, da mesma forma como se colecionam mariposas espetadas com um alfinete na cortiça? (PIÑON, 1984, p. 647).
 
 
A partir daí, começa a necessária autorrelativização do observador, que pergunta “quem sou eu?”, “onde estou eu?” (MORIN, 2008, p. 21). Será que nós não temos como fugir, que nós não temos como situar fixamente, que, como lembra Berman (1986), “tudo que é sólido desmancha no ar”? De onde vem a necessidade de situar, justificar, o que conhecemos, e como o conhecemos?
 
Há muitas pessoas que consideram essas perguntas um convite ao relativismo. Reformulando-as em seus próprios termos favoritos, elas nos perguntam se gostaríamos de dar à falsidade os mesmos direitos que à verdade, ou se gostaríamos que sonhos fossem tratados com a mesma seriedade que relatos de realidade (FEYERABEND, 2011, p. 99).
 
 
Entretanto, como esta escrita de Piñon me permite assinalar, não existe uma relação direta causal, linear, entre posição, situação e nosso arsenal cognitivo (ainda que sejam simultaneamente tanto objetivas como subjetivas). Isto porque, como o próprio desenvolvimento da história debate-se em diversas dialéticas, nossa história pessoal não está isenta desse conflito.
As cinco caixas de Eulália na República dos sonhos me remetem à necessidade de localizar a objetividade dos posicionamentos na construção das identidades para, ao final, trazer uma lição maravilhosa, mesmo que venha do discurso da ficção: essa necessidade de materialização fixa poderia não fazer mais sentido, e sim o ato de entender sua dinâmica que pode ser preservada através da construção do próprio discurso, que cada personagem renova sobre si, inseridos em seus conflitos de poder.
Portanto, me permito finalizar dizendo que o conhecimento é situado, mas não é somente situado, também ele é ressituado, recolocado, traduzido, translocalizado, construído nos espaços de entre-lugares e entre-tempos. E que o literário encerra potencialidades de visualizar as mulheres como protagonistas da sua própria história, a saber, com seus constructos tanto objetivos como subjetivos: o qual se faz evidente em Nélida Piñon quando declara, como outras tantas autoras das Américas, que “narra porque é mulher”.
 
NOTAS
1 Esta ideia discute, assim, as noções de objetividade ligadas ao “real”.
2 Breta é a personagem escritora do romance, jornalista e neta de Eulália. Breta representa um novo paradigma de mulher e, ao mesmo tempo, é a responsável pela escrita da história de Madruga, como uma história que se confunde com o mito de fundação do Brasil e da própria América.
3 El conocimiento ya no es una “representación” o un “reflejo” de la realidad, una actitud de creencia y aceptación de un contenido proposicional; sino una relación, una interacción concreta entre los agentes del conocimiento y sus objetos de estudio (GARCIA, 1999, p. 48).
4 Alguns de nossos pontos nodais (COSTA, 2002), isto é, identificações que servem em uma situação concreta para unirmos na consecução de fins políticos que dão coerência aos movimentos (neste caso, feministas), não é condição suficiente para situar, de uma vez por todas, o conhecimento. Porém, ele apareça como situado nesse momento, mas esse processo não responde a toda objetividade para “o feminismo”. Senão há uma estratégia política como no caso da teoria do standpoint e do essencialismo estratégico.
5 Los análisis feministas son inherentemente evaluativos y no pueden, por tanto, pretender una simetría que es metodológicamente imposible (porque todo conocimiento y todo análisis es siempre situado) y políticamente indeseable (porque es preciso identificar y denunciar las asimetrías de poder asociadas al género) (GARCIA, 1999, p. 52).
6 Zygmunt Bauman (1925), sociólogo polonês escritor de diversas obras sobre pós-modernismo, entre elas, Vida líquida (2005) e Tempos líquidos (2006).
7 Venâncio é o amigo de Madruga, personagem que o acompanha na travessia pelo Atlântico no sonho de fazer a América, também seu alterego. Madruga delegou nele a capacidade de sonhar.
8 O subjetivo é objetivo num entendimento dialético da relação O-S, que defendo desde a postura marxista de sua compreensão. Para começar, concordo com que “existe uma ligação inaudita entre a intersubjetividade e a objetividade” (MORIN, 2008, p. 42). E aproveito para revelar que a minha postura, neste ponto, é principalmente marxista, porque acredito na presença do subjetivo no objetivo, e vice-versa, como unidades inseparáveis que caracterizam nossos modos de produção e reprodução, como seres sociais. Neste sentido, de se colocar frente à problemática da relação objeto-sujeito, também encontramos o consenso da objetividade presente nos feminismos, sobretudo quando se fala e se defende que o conhecimento é situado.
9 E também sutil, simbólica, da dominação masculina nos termos do sociólogo Pierre Bourdieu (1930-2002).
10 A saga de Madruga é uma narrativa constante sobre a alteridade e seus dilemas pessoais que colocam os indivíduos num cenário que às vezes é usurpado pela falta de legitimidade social que provoca a migração como uma marca.
11 Como se, de algum modo, inexplicável pudessem se armazenar os fatos.
12 Essa imagem remete ao outro romance de Piñon, Vozes do deserto (2004). Podemos destacar esta ideia como uma preocupação da autora por posicionar as mulheres diante da memória como recurso que lhes outorga poder político nesse sentido neste romance de 2004 ela resgata a personagem de Scherazade.
13 “Não é dar a receita que fecharia o real numa caixa, é fortalecer-nos na luta contra a doença do intelecto – o idealismo –, que crê que o real se pode deixar fechar na ideia e que acaba por considerar o mapa como o território, e contra a doença degenerativa da racionalidade, que é a racionalização, a qual crê que o real se pode esgotar num sistema coerente de ideias” (MORIN, 2008, p. 140).
 
 
REFERÊNCIAS
 
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COSTA DE LIMA, Claudia, O sujeito no feminismo. Cadernos Pagu (19) Campinas, Unicamp, 2002: p. 59-90.
BAUMAN, Zygmunt. A arte da vida. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
FEYERABEND, P. A ciência em uma sociedade livre. In: idem. A ciência em uma sociedade livre. São Paulo: Unesp, 2011.
GARCIA, M. I. G. El estudio social de la ciencia en clave feminista: género y sociología del conocimiento científico. In: BARRAL, M.J. et al. Interacciones ciencia y género: discursos y prácticas científicas de mujeres. Barcelona: Icaria, 1999: p. 39-63.
HARAWAY, D. Ciencia, cyborgs y mujeres: la reinvención de la naturaleza. Madrid, Cátedra, 1991.
MIES, M. ¿Investigación sobre las mujeres o investigación feminista? In: BARTRA, E. Debates en torno a una metodología feminista. México (DF): Universidad Autónoma Metropolitana, 1998. p. 35-63.
MORIN, E. Ciência como consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.
PHILLIPS, Anne. Las pretenciones universales del pensamiento político. In. BARRET, M. e PHILLIPS, A. Desestabilizar la teoria. Debates feministas contemporáneos. México: PUEG/UNAM. 2002. p. 203-222.
PIÑON, Nélida, A república dos sonhos. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1984.
SCHMIDT, Rita Terezinha. A crítica na mira da crítica. Florianopólis: Editora da UFSC, 1996, p. 103-125.
SOUSA SANTOS, Boaventurade. Um discurso sobre as Ciências. São Paulo: Cortez, 2008.
VIANNANETO, Arnaldo Rosa. Américas sem nome: Cartografias narrativas de Nélida Piñón. RevLet – Revista Virtual de Letras, v. 03, nº 02, ago/dez, 2011: p. 152-164.