DO MALLEUS PARA EASTWICK: ONDE O FEMINISMO É CONSIDERADO BRUXARIA
Isabelle Rodrigues de Mattos Costa
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Resumo: O objetivo deste trabalho é investigar a relação entre o feminismo e a bruxaria e de que maneira essa relação transparece na obra As bruxas de Eastwick, que se utiliza do estereótipo da bruxa para expor uma visão negativa da mulher feminista. Para tanto, é realizada uma análise da caracterização das bruxas de acordo com o famoso tratado do século XV, o Malleus maleficarum, ressaltando-se as semelhanças entre o estereótipo ali descrito e o estereótipo da mulher considerada feminista.
Palavras-chave: mulher, feminismo, bruxaria.
Abstract: The purpose of this work is to investigate the relation between feminism and witchcraft and how that relation appears in the novel Witches of Eastwick, which uses the architype of the witch in order to expose a negative view of the feminist woman. In order to do so, I will analyze how witches are described in the famous Malleus maleficarum, a manual from the 15th century, bringing to light the similarities between the archetype of the witch and the architype of the feminist woman.
Keywords: woman, feminism, witchcraft.
Currículo: Mestre em Literaturas de Língua Inglesa pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e graduada em Letras – Inglês/Literaturas de Língua Inglesa pela mesma universidade. Atualmente trabalha na Secretaria de Estado de Educação e pesquisa sobre as diferentes figurações da bruxa em obras literárias, principalmente no âmbito das literaturas inglesa e norte-americana.
DO MALLEUS PARA EASTWICK: ONDE O FEMINISMO
É CONSIDERADO BRUXARIA
Isabelle Rodrigues de Mattos Costa
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
O mais famoso tratado em prol da caça às bruxas, o Malleus maleficarum (1486), também conhecido como O martelo das feiticeiras, foi escrito por inquisidores católicos, que consideravam a mulher inferior ao homem e portanto mais propensa a se aliar ao diabo, pois como era supostamente mais fraca tanto de corpo quanto de mente, também era mais fraca para preservar a fé em Deus. Apoiando-se nesse argumento, o Malleus procurava justificar porque as mulheres eram mais dadas à bruxaria do que os homens – já que historicamente o número de mulheres acusadas de bruxaria e condenadas superou o de homens.[1]
Entre as ideias disseminadas pelo Malleus destacava-se a relação entre as bruxas e a sexualidade, pois, de acordo com o manual, toda bruxaria deriva da luxúria carnal, que é insaciável nas mulheres, e as pessoas com maior inclinação para a bruxaria seriam as mulheres infiéis, ambiciosas ou luxuriosas. Para eles, as bruxas eram obcecadas pelo excesso de amor carnal, e nenhuma vergonha era capaz de persuadi-las a desistir de tais atos, estando inclusive dispostas a deitarem-se com demônios para satisfazerem seu apetite carnal.
O modelo vitoriano de ideal de mulher, o “anjo da casa”, pregava a imagem da mulher como boa mãe e esposa, dócil e submissa. Segundo esse ideal, a mulher deveria ser passiva e assexuada, sendo frequentemente caracterizada como quase etérea e de uma pureza contemplativa, além de, obviamente, obediente à ordem patriarcal.
Em Idols of Perversity (1986), Bram Dijkstra, professor de literatura inglesa da Universidade de Califórnia, estabelece uma oposição dualística: de um lado, a mulher idealizada na figura do “anjo da casa”, e do outro, a perversa, que configura uma ameaça ao ideal de mulher. Dijkstra analisa as representações de mulheres entre os séculos XIX e XX, procurando justificativas para o sentimento antifeminista percebido na vida social e nas obras literárias e artísticas. Segundo ele, mulheres com características consideradas tipicamente masculinas, como agressividade, anseio por poder e sexualidade exacerbada, sofriam preconceito por não se submeterem ao papel esperado delas, fosse desrespeitando a vontade do pai ou do marido, ou ainda rejeitando os deveres de mãe. Desse modo, a mulher que fugia ao padrão e se mostrava demasiadamente assertiva era mal vista pela sociedade, que considerava que esta estaria procurando usurpar privilégios masculinos em vez de se deixar subjugar ao papel feminino esperado dela.
Tendo isso em vista, percebemos que a figura da bruxa representa essencialmente uma mulher perversa, destoante do ideal “anjo da casa”. Uma breve análise de relatos históricos da caça às bruxas revela que muitas mulheres acusadas de bruxaria entre os séculos XV e XIX possuíam uma personalidade considerada conturbada: falavam palavrão, questionavam os outros e defendiam sua opinião, fosse discutindo com o marido ou com autoridades; enfim, eram mulheres de personalidade forte, que não se sujeitavam ao papel submisso que se esperava delas (KARLSEN, 1998, p. 310).
Tendo o Malleus malleficarum como contrapartida, verificamos que o tipo de mulher que Dijkstra chama de “perversa” correspondia justamente ao estereótipo da bruxa, pois as mulheres com maior probabilidade de serem acusadas eram justamente as mulheres que fugiam às normas da sociedade, mostrando-se demasiadamente assertivas ou agressivas: mulheres que discutiam com o marido ou os vizinhos, falavam palavrão ou de outro modo portavam-se de maneira desagradável, mostrando-se invejosas ou mal-humoradas. Segundo o Malleus, “(…) a mulher perversa é, por natureza, mais propensa a heresitar na sua fé e, consequentemente, mais propensa a abjurá-la – fenômeno que conforma a raiz da bruxaria” (KRAMER; SPRENGER, 2014, p. 117).
Se analisarmos as características da mulher perversa de Dijkstra, percebemos que elas não destoam da figura da mulher feminista, pois quem mais procurava contestar a ordem patriarcal e “usurpar” privilégios até então masculinos, buscando a igualdade de direitos entre os sexos? Desse modo, não é surpreendente que muitas mulheres que foram acusadas de bruxaria nos séculos passados hoje em dia poderiam ser consideradas feministas.
Como afirma Joanne Hollows, o movimento feminista busca explicar e modificar a relação de poder entre homens e mulheres (2000, p.3), sendo tradicionalmente dividido em três momentos, chamados de ondas: a primeira, marcada pelo sufragismo, que ocorreu nos séculos XVIII e XIX; a segunda, que abarca as décadas de 60 a 80; e a terceira, que diz respeito à época contemporânea.
Entre as reivindicações das feministas da segunda onda estavam a igualdade no acesso à educação e ao mercado de trabalho, igualdade de salários entre homens e mulheres e independência legal e econômica. A questão da liberdade sexual e a possibilidade de as mulheres usarem métodos contraceptivos ou mesmo terem acesso ao aborto também foram importantes reivindicações desse momento. Partindo do preceito que o sexo feminino era subjugado pelo masculino, muitas dessas feministas consideravam “(…) femininity as inferior to masculinity: that is, that equality between men and women might be achieved if women rejected feminine values and behaviour in favour of masculine values and behavior” (HOLLOWS, 2000, p. 10), o que nos lembra o estereótipo da mulher perversa, que era considerada uma ameaça à sociedade justamente por usurpar características masculinas. Não surpreende assim que uma imagem estereotipada da mulher feminista evoque aspectos antes atribuídos à mulher perversa: a típica feminista passa a ser considerada uma mulher masculinizada e que rejeitava apetrechos femininos: “The figure of the bra-burning, mannish and fanatic feminist has dominated popular representations of feminism (…) Moreover, the figure of the unattractive bra-burner also cemented into the public’s mind the perception of feminism as anti-feminine” (GENZ; BRABON, 2009, p. 22), sendo por vezes também considerada uma mulher que não se depila, usa o cabelo curto, odeia os homens e se mostra agressiva e irritada: ou seja, uma mulher nada feminina.
Alguns teóricos, como Kimberly Ann Wells, identificam similaridades entre a caça às bruxas e o movimento feminista por ambos denotarem alguma forma de opressão ao sexo feminino. A bruxa, contudo, não se assemelha à feminista apenas por ser oprimida, mas principalmente pelo seu desejo de equiparar-se ao homem, por se rebelar contra a opressão e exigir seus direitos. Desse modo, a bruxa se mostra um símbolo forte para o movimento feminista: “Characteristically, women writers have seen in the witch a figure of all that women could be were it not for patriarchy […] To be recognized as a witch is to be recognized as free and independent” (PURKISS, 2010, p. 22). Para Wells, é notável
(…) how strongly connected the concept of independent woman and our modern concept of witch has been ever since. Both feminist and witch are scapegoated as evil, with evil meaning those who endanger society’s family values and therefore who must be punished for exercising powers that patriarchy defines as more rightly belonging to men: independence, outspoken belief in oneself, sexual freedom, education, and choice in occupation. Both groups are women who struggle with patriarchy and power (WELLS, 2002, p. 7).
Assim sendo, não surpreende que as feministas sejam atraídas pela figura da bruxa, que popularmente é representada como uma mulher que transgride as normas sociais e ameaça causar mudanças no sistema: que é justamente o que as feministas desejam. Dito de outro modo, a figura da bruxa é essencialmente ligada ao feminismo, pois se refere à figura da mulher empoderada: a bruxa transgride convenções ao mostrar comportamentos considerados inadequados e reclamar para si poderes que não deveria possuir.
Justyna Sempruch, pesquisadora do Instituto de Estudos Sociais da Polônia, por sua vez, chama atenção para o fato de que
As a radical feminist identity, the ‘witch’ strategically represents both the historical abject figure subjected to torture and death, and a radical fantasy of renewal in the form of a female figure who desires (and articulates) a cultural transformation ‘that has not happened yet’ and also the one who already marks that transformation. Thus, the feminist witch succeeds in subverting her own (abject) identity by converting it into a political fantasy (…) (SEMPRUCH, 2004, p. 115).
Tendo em vista as similaridades entre a figura da feminista e a da bruxa, não é difícil identificar tais relações no romance As bruxas de Eastwick, de John Updike – publicado em 1984, a estória se passa no final da década de 1960, que, como sabemos, foi o período correspondente à segunda onda do movimento feminista. Assim, não surpreende que a questão feminista esteja muito presente na obra: a própria escolha do cenário (a cidade de Eastwick, em Rhode Island) é muito sugestiva, pois o autor revela que Anne Hutchinson, uma puritana que presidia debates sobre questões espirituais, fora banida para lá no século XVII, pois, por ser uma mulher num papel de liderança espiritual, Anne desagradou as autoridades e acabou sendo banida da colônia de Massachusetts. Ao citar Anne Hutchinson, o autor acaba criando uma analogia entre sua transgressão e a das bruxas que habitam Eastwick, igualando as bruxas à Anne ao tratar ambas figuras como marginais.
As bruxas de John Updike sem dúvida apresentam muitas das características descritas no Malleus maleficarum. Alexandra, Sukie e Jane são mesquinhas e egoístas, como as típicas bruxas citadas no manual, e possuem estranhas protuberâncias pelo corpo, os mamilos de bruxas, que se acreditava ser por onde os Espíritos Familiares alimentavam-se. As três também usam sua magia para fazer malefícios e punir pessoas que de algum modo as incomodassem.
De acordo com o manual, as bruxas eram capazes de invocar tempestades e relâmpagos, que é o que Alexandra faz quando está na praia com seu cachorro e quer expulsar as pessoas que a chamaram de megera pelas suas costas. Consta no Malleus que as bruxas também podiam preparar um unguento de acordo com as instruções do diabo, que usariam para untar uma cadeira ou vassoura em que poderiam voar. Sabemos que pelo menos Jane podia voar, pois
‘Ontem à noite’, disse ela, ‘fiquei tão chateada e com raiva disso tudo que não consegui dormir, e acabei acordando e me esfregando inteira com capuz-de-fradinho e creme para as mãos Noxema, com um tiquinho só daquela cinza fina que fica depois de colocar o forno na função de limpeza automática, e saí voando até a mansão Lenox. Foi maravilhoso! (UPDIKE, 2010, 278).
Não podemos esquecer que o diabo também era frequentemente mencionado no Malleus maleficarum, aparecendo como condição necessária para a existência da bruxa, pois lhe daria poderes sobrenaturais caso ela fizesse um pacto com ele, que deveria ser selado pela assinatura da bruxa em um livro. Assim, a associação do diabo com a bruxa é notável, e também está presente na obra de John Updike, embora de maneira velada: em nenhum momento o autor afirma que o personagem Darryl van Horne se tratava de fato do diabo, mas faz diversas alusões irônicas, que ficam ainda mais explícitas na adaptação cinematográfica, em que Darryl chega a adquirir uma forma monstruosa e com chifres. O próprio nome do personagem sugere que se trata do diabo disfarçado: “Darryl” possui uma sonoridade parecida com “Devil”[2] e “Horne” poderia tanto se referir aos supostos chifres (horns, em inglês) quanto ao caráter sexual do diabo (horny[3]), uma vez que Darryl é um personagem altamente sexualizado. De acordo com o Malleus, o diabo mantinha relações sexuais com as bruxas durante o “sabá”: momento em que as bruxas se reuniam na floresta numa espécie de congregação para adorar ao diabo. John Updike faz uma releitura do sabá, adaptando-o para o século XX: no romance, as bruxas criaram o hábito de se encontrarem com Darryl em sua mansão, onde jogavam uma partida de tênis e depois iam para a banheira, onde bebiam, fumavam maconha e, é claro, tinham relações sexuais – série de eventos que repetia quase ritualisticamente toda quinta-feira.
Até mesmo a caracterização de Darryl evoca aspectos diabólicos, pois sua temperatura é mais fria que o comum e não era muito agradável para as bruxas fazerem sexo com ele: nos relatos históricos, muitas mulheres acusadas de bruxaria, ao confessarem terem tido relações sexuais com o diabo, afirmavam que sua temperatura era mais fria do que a de um homem normal, e ainda que as relações não eram prazerosas (ROPER, 2004). Também é interessante reparar que quando estava na banheira, Alexandra sentira um ímpeto de beijar as nádegas de Darryl, o que é no mínimo curioso se considerarmos que em muitas descrições do sabá “(…) in place of the kiss of peace in the Mass, they had to kiss the Devil’s anus” (ROPER, 2004, p.113), numa forma de demonstrar sua adoração por ele.
Além disso, o interior de sua mansão fede a enxofre, odor que “Van Horne não pareceu notar, pois aquele era o seu elemento” (UPDIKE, 2010, p. 100), e também se afirmara que um dos talentos de Darryl era “fazer as pessoas assinarem pactos” (UPDIKE, 2010, p. 346), numa referência ao pacto demoníaco da bruxa ou mesmo ao pacto faustiniano,
Pois Van Horne havia lhes garantido solenemente que Thumbkin [a gata de estimação de Darryl], por baixo de sua forma felpuda, era a alma reencarnada de um advogado setecentista de Newport que havia desviado dinheiro do seu escritório (…) e que, para salvar a si mesmo da prisão e a família da desgraça, vendera seu espírito após a morte para os poderes das trevas (UPDIKE, 2010, p. 278).
Apesar de o autor sugerir que este personagem se trata do diabo, o objetivo de Darryl na obra não fica muito claro: além de envolver-se sexualmente com as três mulheres, sabemos por exemplo que ele procurava incentivar a criatividade delas: queria que Alexandra melhorasse suas esculturas e fizesse exposições em Nova York, tocava música com Jane e sugerira diversas vezes que Sukie escrevesse um romance. Daryl incentivava tanto as inclinações artísticas quanto a prática de bruxaria, que pareciam interligadas[4], uma vez que “O dom da escultura havia surgido junto com seus outros poderes (…)” (UPDIKE, 2010, p. 24-25). Talvez a presença do diabo nessa obra servisse apenas para acentuar a condição de bruxa dessas mulheres, além de seu caráter devasso, uma vez que se envolviam sexualmente com o diabo:
Stories of this kind were at the heart of the witch craze. The witch was a human who had sex with the Devil. This was what made her “his”, sworn to harm all other Christians (…). Intercourse with the Devil was the physical counterpart of the pact with him – and it was sex with the Devil which many accused witches talked about at length, rather than the pact which, according to demonological theory, actually made them Satan’s own. (ROPER, 2004, p. 84).
Como bruxas, e principalmente como mulheres livres (sem maridos), elas podiam fazer sexo com quem bem quisessem, ao contrário das outras mulheres da cidade, que ainda estavam agrilhoadas ao papel tradicional de esposa e mãe. Contudo, antes de se mudarem para Eastwick, Alexandra, Sukie e Jane eram donas de casa que desempenhavam seus papéis de esposa e mãe, mesmo que odiassem ou ficassem deprimidas por fazê-lo: “(…) anos antes, quando, ainda tentando fazer as coisas que se esperava de uma esposa, acompanhara Ozzie a um concerto” (UPDIKE, 2010, p. 16). Ao libertarem-se de tais papéis, libertam-se então da escravidão das convenções sociais, que ditavam como uma mulher deveria portar-se: Alexandra para de se pesar na balança o tempo todo, enquanto Jane se recusa a usar maquiagem.
Assim, nessa obra, ao tornarem-se bruxas, as mulheres se veem “recém-liberadas das amarras do trabalho doméstico” (UPDIKE, 2010, p. 25), de modo que Alexandra, Jane e Sukie, ao passo em que iam descobrindo seus poderes e tornando-se bruxas, deixaram de desempenhar seus papéis de esposa e mãe: “(…) esses instantes maternais lhe ocorriam cada vez mais raramente à medida que ela ia adquirindo controle sobre si própria, uma semideusa maior e mais austera do que qualquer dos usos que os outros pudesse ter para ela” (UPDIKE, 2010, p. 122). Tarefas domésticas, como cozinhar e cuidar do jardim, parecem um martírio que elas evitam ao máximo e do qual se ressentem:
Quando Ozzie e eu nos mudamos para Eastwick, eu sempre fazia geleia com as frutinhas das roseiras’.
‘Você e Oz eram mesmo uma gracinha.’
‘Era patético. Eu era tão dona de casa.’ (UPDIKE, 2010, p.329).
Como consequência, elas passam a não querer cozinhar para os filhos, preferindo comprar comida congelada ou dar-lhes biscoitos, e seus quintais são desorganizados por falta de cuidados: o quintal dos fundos de Alexandra precisava ter a grama cortada e parecia uma selva descontrolada; Jane também não tinha jeito para jardinagem, e seu jardim consistia em um “abandonado emaranhado de rododentros, hortênsias, tuias, berberes e buxinhos em volta dos alicerces da casa” (UPDIKE, 2010, p. 27).
Percebemos então que nesse romance, o papel de dona de casa e esposa é incompatível com o da bruxa, assim, os maridos obrigatoriamente devem sair de cena, como se um fator automaticamente excluisse o outro: toda divorciada deve ser uma bruxa, e uma bruxa não pode ser casada:
Seu próprio ex-marido, Oswald Spofford, repousava dentro de um vidro com a tampa de rosca bem fechada em uma prateleira alta da cozinha, reduzido a um pó multicolorido. (…) Quando eles de fato se divorciaram, seu antigo mestre e senhor se transformara em pó (…) que ela havia varrido e guardado de lembrança dentro de um vidro. As outras bruxas haviam passado por transformações semelhantes em seus casamentos; o ex-marido de Jane Smart, Sam, estava pendurado no porão da casa de fazenda dela, em meio às ervas secas e poções, sendo ocasionalmente salpicado em algum filtro (…) e Sukie Rougemont havia plastificado o seu e o usava como jogo americano (UPDIKE, 2010, p.11-12).
Quanto aos filhos, caíram numa espécie de esquecimento, sendo largados sozinhos em casa, famintos e encardidos. As protagonistas são diversas vezes chamadas de péssimas mães, e sua devassidão também não passa despercebida, passando a noite com vários homens ao longo dos anos. Para elas, “Ser mulher e divorciada em uma cidade pequena era mais ou menos como jogar Banco Imobiliário, depois de algum tempo, você acaba caindo em todas as casas” (UPDIKE, 2010, p. 32). Por rebelarem-se desse modo contra as normas sociais, essas mulheres escandalizaram a cidade, sendo alvo de fofoca dos outros habitantes: “(…) não sei por que essas mulheres se dão ao trabalho de continuar vivendo, são umas putas que vão para a cama com metade da cidade e sequer são pagas por isso. E aqueles coitados daqueles filhos delas, todos abandonados, é mesmo um crime” (UPDIKE, 2010, p. 150). Outro aspecto que parece ter influenciado o ponto de vista negativo com que essas mulheres eram vistas é o fato de elas trabalharem – por não possuírem um marido para sustenta-las, Alexandra, Sukie e Jane tinham que ingressar no mercado de trabalho para conseguirem dinheiro.
As protagonistas apresentam às vezes uma postura deveras feminista. Alexandra, por exemplo, vestia-se com roupas de homem e também apresentava um andar masculinizado, espelhando o estereótipo da feminista e da mulher perversa, que, como já discutimos, eram consideradas mulheres masculinizadas. Seu discurso também evocava um certo criticismo:
Alexandra cada vez mais achava as roupas masculinas confortáveis; primeiro começou a comprar sapatos e luvas de homem, depois calças (…) por que eles deveriam ficar com todo o conforto enquanto nós nos martirizamos com saltos agulha e todas as outras modas escravizantes que veados sádicos inventam para nós? (UPDIKE, 2010, p. 258).
Jane, por sua vez, tinha opiniões mais agressivas: “Homens são violentos (…). Até os mais gentis. É biológico. Eles são cheios de raiva porque são apenas acessórios para a reprodução” (UPDIKE, 2010, p. 184). No romance de John Updike, o feminismo parece intrinsicamente ligado à bruxaria: as mulheres divorciadas (autossuficientes e assertivas) só poderiam ser maléficas e poderosas. Assim, percebemos que o fato dessas personagens parecerem feministas era justamente o que as tornava mal vistas para a comunidade de Eastwick – o fato de trabalharem e de não serem casadas gerava diversos comentários maldosos, como se não estivessem cumprindo seu papel de mulher, além, é claro, de a sua liberdade sexual escandalizar os outros habitantes da cidade.
As bruxas de Eastwick são personagens perversas porque, de acordo com a obra, uma bruxa deveria sê-lo, enquanto que demonstrar um pouco mais de humanidade – como quando Alexandra confessou estar sentindo culpa por terem enfeitiçado Jenny, as outras a acusaram de estar “perdendo seu temperamento de bruxa” (UPDIKE, 2010, p. 303), como se uma bruxa não pudesse sentir compaixão ou arrependimento pelos seus atos maléficos.
Segundo Wells, o sentimento antifeminista transparece claramente nas páginas de John Updike, que se utiliza do típico estereótipo da bruxa para atacar o feminismo: “In his portrayal of three modern witches who mouth feminist rhetoric, and his setting of the novel retroactively during the “birth” of second wave feminism, he critiques women and the feminist movement quite deliberately (…)” (WELLS, 2002, p. 231-232).
As bruxas de Eastwick apresentam muitos aspectos estereotipados pelo Malleus maleficarum e surgem como uma resposta ao movimento feminista, exibindo mulheres que transgrediam as normas sociais e portanto eram mal vistas pela sociedade a sua volta. A relação entre o feminismo e a bruxaria fica clara no romance ao relatar que Alexandra, Sukie e Jane, ao se tornarem bruxas, rejeitam seu papel como dona de casa, desfazendo-se dos maridos e abandonando os filhos em casa enquanto saem para cuidar das próprias vidas. Desse modo, o romance nos mostra claramente um sentimento antifeminista.
Como afirma Margaret Atwood, o que uma cultura tem a dizer sobre bruxaria tem muito a ver com suas visões a respeito de sexualidade e poder, e principalmente de que maneira o poder é dividido entre os sexos (ATWOOD, 1984). E por ter sido escrito nos anos oitenta, época dominada pelo discurso feminista, não é a toa que, de acordo com o romance, as mulheres que se tornavam livres do papel tradicional de mãe/esposa e, portanto, poderosas, automaticamente representariam um perigo para a sociedade a sua volta.
Referências:
ATWOOD, Margaret. Wondering What It’s like to be a Woman. New York Times, New York, 13 maio 1984. Review of Books. Consulta online. Disponível em: <http://www.nytimes.com/1984/05/13/books/wondering-what-it-s-like-to-be-a-woman.html?pagewanted=all>. Acesso em: jun. 2016.
KARLSEN, Carol. The Devil in the Shape of a Woman: Witchcraft in Colonial New England. New York: Norton, 1998.
KRAMER, Heinrich; SPRENGER, James. O martelo das feiticeiras. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2014.
DIJKSTRA, Bram. Idols of Perversity. Oxford: Oxford University Press, 1986.
GENZ, Stéphanie; BRABON, Benjamin. Postfeminism: Cultural Texts and Theories. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2009.
HOLLOWS, Joanne. Feminism, Femininity and Popular Culture. Manchester: Manchester University Press, 2000.
PURKISS, Diane. The Witch in History: early modern and twentieth-century representations. New York: Routledge, 2010.
ROPER, Lyndal. Witch Craze: Terror and Fantasy in Baroque Germany. New Haven: Yale University Press, 2004.
SEMPRUCH, Justyna. Feminist Constructions of the ‘Witch’ as a Fantasmatic Other. Body and Society, 2004, v. 10, n. 4, p.113-133.
UPDIKE, John. As bruxas de Eastwick. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
WELLS, Kimberly. Screaming, Flying, and Laughing: Magical Feminism’s Witches in Contemporary Film, Television, and Novels. Texas: [s.n.], 2002. Disponível em: <http://repository.tamu.edu//handle/1969.1/6007>. Acesso em: jun. 2016.
Notas ao texto
[1] De acordo com Carol Karlsen, professora da Universidade de Michigan que realizou um estudo demográfico sobre os casos de bruxaria nas colônias americanas, cerca de 80% dos acusados entre 1620 e 1725 eram do sexo feminino (Cf. KARSEN, 1998).
[2] “Diabo”, em inglês.
[3] Horny, em inglês, é frequentemente utilizado para indicar que alguém está sexualmente excitado.
[4] É interessante reparar que as bruxas de Eastwick possuem inclinações artísticas, pois Alexandra é escultora, Jane musicista e Sukie jornalista – a única cuja ocupação talvez não possa ser considerada exatamente artística, embora devamos reconhecer que seu trabalho exigia certa criatividade e estilo, não sendo de todo destoante. A relação entre a bruxaria e as Artes também não escapa aos olhos de Wells, para quem o poder da mulher é definido ao se colocar criatividade, feminismo e poder na mesma categoria (WELLS, 2002, p. 9).