Deslize na linguagem (uma leitura de Maria Gabriela Llansol)



Tatiana Salem Levy 

Roland Barthes, em sua aula inaugural no Collège de France, afirma que a linguagem é o objeto em que se inscreve o poder. Todo discurso, desde os proferidos pela escola ou pelo Estado até os que constituem a publicidade ou mesmo uma canção, encarrega-se de repetir a linguagem até o momento em que os sentidos das palavras nos pareçam naturais e inatos, como se a linguagem existisse antes mesmo do surgimento da sociedade e de suas construções de poder. A palavra repetida, fora de qualquer encantamento ou magia, Barthes chama de estereótipo. Aceitamos determinadas idéias como verdades puras, entretanto, na maioria das vezes, são estereótipos formados pelo engendramento de um discurso constituído sob a máscara do poder. O estereótipo é, pois, a cristalização de um único sentido da palavra, o cerceamento da multiplicidade do signo imposto por uma determinada ideologia.
O poder, segundo o semiólogo francês, está presente em todas as circunstâncias do intercâmbio social: “não somente no Estado, nas classes, nos grupos, mas ainda nas modas, nas opiniões correntes, nos espetáculos, nos jogos, nas informações, nas relações familiares e privadas, e até mesmo nos impulsos liberadores que tentam contestá-lo”.1 Faz-se uma revolução para acabar com um mecanismo de poder, ele logo reaparece, sob uma máscara nova, mas com os mesmos princípios autoritários e opressores. Parece-nos, assim, que a liberdade humana só é possível fora da linguagem. No entanto, o homem só existe dentro dela, em seu interior, uma vez que é constituído por ela, não havendo separação entre homem e linguagem. Estaremos, então, condenados à prisão perpétua, imbricados nesta rede de poderes que constituem os discursos? É aqui que entra a sábia (e saborosa) idéia barthesiana de trapaça com a língua: não podemos destruí-la, nem viver em seu exterior, mas podemos desviá-la de seus sentidos estereotipados, “jogar” com os signos. E é aqui, também, que entra a literatura de Maria Gabriela Llansol, tentativa máxima de destituir da língua os mecanismos de poder. Seus textos e os elementos que os constituem, tais como as cenas fulgor, o re-contar da História, o mundo textual e as personagens-figuras, giram em torno de uma idéia central: desfazer a impostura da língua. Em entrevista à Lúcia Castello Branco, afirma a autora: “Veja bem, a língua é uma impostura. Tudo aquilo que estamos aqui a falar é uma impostura. Mas é possível, em algum momento, atingir a linguagem, a língua sem impostura. É isso que o meu texto quer”.2
Llansol partilha com Barthes a idéia de que o poder está espalhado por toda a parte, e sua literatura tenta fazer despontar “a exigência da liberdade de consciência de cada ser vivo em face de Deus, do Estado e de sua rede de múltiplos poderes, na tentativa indefinida – sem fim, e sem limites – de alcançar para cada habitante da terra o direito inalienável à autonomia do seu sopro de vida, e à realização de sua natureza”.3 Parece-nos ser esta a grande cena fulgor de seus textos, a tentativa de deslize, a busca de uma brecha na linguagem, onde o homem se possa constituir como intensidade, ou seja, distante dos mecanismos de poder e próximo ao seu sopro de vida.
No diário 2 – Finita -, há algo que incomoda a narradora/autora: a constatação, em 26 de agosto de 1975, um ano e meio após a Revolução dos Cravos, de que Portugal rompeu com o autoritarismo salazarista, mas não se livrou da ligação com o poder. Diz ela:
Quarenta anos, todo um período de opressão que termina por afirmações de poderes, e linguagens pessoais de grupo. Portugal, agora, não é o meio de uma viagem, é uma partida conseguida, a muito custo, para uma viagem errada. Por enquanto estão (estamos) soltos mas ainda não livres. As instituições, as categorias, os poderes, o saber e a ignorância epidêmicos continuam a mediatizar as relações entre as pessoas. (…) Não se fala em abolir os efeitos do poder, mas de suscitar das velhas formas novas formas.4
Não que Llansol subestime a importância nem as conquistas da Revolução; mas incomodam-na as novas formas de discurso, ou seja, os novos estereótipos e a nova verdade elaborados pelo vencedor do momento. Como diz a própria autora, “num e noutro lugar há impostura”,5 e é por isso que sua literatura se desvia dos sentidos habituais das palavras, numa tentativa de contornar a impostura da língua. Em Lisboaleipzig I, Llansol nos deixa claro o que pretende sua escrita, quando, numa conversa em que Augusto “dizia que tinha a impressão de que a existência se dividia em três grandes continentes: o do poder, o da procura dos segredos das coisas, e o do amor”, afirma que recusou em seus textos, “desde logo, o primeiro continente, abandonando todo o poder nas mãos do Príncipe”,6 a quem se opõem o rebelde e o pobre.
Encontramos freqüentemente, em seus livros, palavras soltas, numa estranha disposição pela página, sem conexões sintáticas e, sobretudo, desprovidas de seus significados. Llansol pretende, assim, esvaziar os signos de suas marcas de poder, trazer à literatura as palavras em seus estados nascentes. Diz ela: “Não ligues excessivamente ao sentido. A maior parte das vezes, é impostura da língua”.7 Descarregando as palavras de seus sentidos banais e estereotipados, Llansol pode desenvolver seu projeto de recontar a História, tirando das mãos do Príncipe a palavra e dando-a aos pobres. Vale ressaltar, uma vez mais, que não se trata de destruir a língua, mas de trapaceá-la, já que, “na linguagem dos homens, as palavras que nos libertam do Poder desde sempre lá se encontraram disponíveis, lá repousam as palavras que darão outro desfecho à batalha de Frankenhäusen”.8 Llansol desperta tais palavras para que circulem em seus textos, espaço onde a História ganha um outro sentido.
Para falarmos da relação da literatura de Llansol com o poder, não nos podemos esquecer da rapariga que temia a impostura da língua, personagem que bem demonstra a busca de uma brecha na linguagem. Presa a cabra a um castanheiro, cena que abre Um beijo dado mais tarde, cortam-lhe a língua com uma faca, e uma outra língua, “com parte no céu-da-boca”, principia-lhe a nascer. Ao final desta descrição, afirma a narradora (o eu que, por vezes, se confunde com a própria Témia): “O lugar da interseção da língua arrancada com a outra língua transparente é herança da rapariga que temia a impostura da língua. Por isso eu tenho de encontrá-la, e traze-la para fora de sua nostalgia infinita”.9 Nostalgia essa que provém do grande mistério que ronda a casa e que a narradora revela sob a forma de uma parábola:
A é serva; quando engravida de B, o filho da casa, só pode cantar o amor de boca fechada; alguns anos mais tarde, o filho da casa contrai matrimônio, e dessa união tem uma filha ________; o primeiro filho – o da serva – foi abortado; e sobre esta casa pairou um mistério, um não-dito, que alisou, numa pequena pedra, uma irreprimível vontade de dizer. Deste mistério, e no fim de um trabalho executado a som e a cinzel, fez-se a rapariga que temia a impostura da língua e que queria, através da palavra, fazer ressoar fortemente, o seu irmão morto.10
A rapariga não passou por escolas nem outras instituições onde se inscreve o poder (“ninguém educou Témia”); por isso, sua relação com a linguagem é livre, longe dos estereótipos. A única pessoa que lhe ensinou algo foi seu companheiro filosófico para brincar, com quem se mete em aventuras para descobrir imagens, novas cenas fulgor. Com o tempo, a rapariga passa a não temer mais a impostura da língua, aproximando-se do fulgor das palavras, ou seja, de suas existências cintilantes. Cada dia sente-se mais à vontade para ir “brincar ao pensamento”, para correr “ao leito extrair da água as cenas fulgor”. Não será aqui, nesta passagem do medo do poder à conquista da liberdade de consciência, que Maria Gabriela Llansol encontra quem é em Témia? Que as duas se fundem na constituição do texto literário, deformando as fronteiras entre autor, narrador e personagem? Podemos, ao menos, afirmar que é certamente nesta passagem que a literatura de Llansol efetiva sua trapaça com a língua, constituindo-se fora das relações de poder, muito distante do olhar do Príncipe.
Que outras evidências do texto llansoliano nos levam a afirmar que sua escrita constitui-se fora das redes de poder? Quais são as estratégias utilizadas pela autora para desviar a língua de seus traumas, de suas marcas ideológicas e estereotipadas? Sem dúvida, não daremos conta de todas no presente trabalho. Enfatizaremos, portanto, de que forma a obra de Llansol foge ao modelo representativo da literatura, por acreditarmos ser este um ponto fundamental para a realização do desvio na linguagem. Afirma a autora: “se eu procurar abrir caminho a um texto que não represente (e por isso mesmo, antes de mais, diga), abrirei caminho a um, cuja fonte não seja nem a agressão, nem a impostura”.11
Encontramos, na literatura contemporânea, uma certa tendência ao questionamento do que é o escrever no interior do próprio texto literário. Levado ao paroxismo, esse tipo de escrita propõe uma ruptura com o modelo da representação, que pretende produzir no leitor uma espécie de reconhecimento do seu mundo. Enfatizando o conteúdo temático da narrativa, em função de tornar novamente presente algo que se dá no real, a literatura representativa fixa as coisas diante de si, tornando-as previsíveis, controláveis e comunicáveis. A comunicação se faz possível na medida em que a escrita funciona sobretudo como simulacro de um mundo já formado, o mundo do próprio leitor. Este, embebido na ideologia do poder, sente-se seguro em abrir um livro e lá encontrar seu mundo retratado, da forma mais semelhante possível ao real.
Roland Barthes, ao argumentar sobre a força representativa da literatura, afirma: “desde os tempos antigos até as tentativas da vanguarda, a literatura se afaina na representação de alguma coisa. O qué? Direi brutalmente: o real”. E prossegue: “o real não é representável, e é porque os homens querem constantemente representá-lo por palavras que há uma história da literatura”.12 O texto de Llansol foge a essa história da literatura, na medida em que rompe com o elo entre real e linguagem (talvez, quem saiba?, porque não haja separação entre ambos. – Isto é o que nos leva a crer Infausta, heterônimo feminino de Aossé, que se sente “dentro da vida sem nenhuma cortina de separação entre o visível e o invisível; o real e o irreal”).13
Sua escrita dobra-se sobre si mesma, provocando uma crise da representação. Seu texto não é o retrato de nossa realidade, mas uma outra realidade em que o leitor não se reconhece mais. Maria Gabriela Llansol é autora de um texto em que o fazer e o pensar literários se constróem simultaneamente. A língua não é, para ela, um instrumento de escrita, é a própria escrita realizada. Restringindo a amplitude temática de seu texto, Llansol possibilita a discussão em torno do que é o escrever. No percorrer de seus livros, podemos observar que a autora, através de pensamentos soltos, considerações e fragmentos, constrói a sua própria teoria textual.
Em sua obra, ela propõe um abandono da literatura, não para se aproximar ainda mais da vida, mas para elaborar um texto na margem da língua. Renegar a impostura da língua e tudo aquilo que possa cercear os afetos, esta é a sua “batalha”. Para isso, a autora experimenta uma escrita-laboratório, lugar de pensamento constante, onde para tudo há vez, menos para a regra, a autoridade, o enquadramento. Em seu projeto de escrita, Maria Gabriela Llansol desfaz a unicidade introduzida pela impostura da língua, para que a diferença circule em seu texto: “decido, nessa altura natalícia, tirar o d de deus, e chamar eus ao que for a diferença que o prive de ser a sua vontade”.14 Se a autora afirma não haver literatura (“Não há literatura. Quando se escreve só importa saber em que real se entra, e se há técnica adequada para abrir caminho a outros”.15), é porque não existe, como afirma Silvina Rodrigues Lopes, “um saber fazer definitivo, mas um saber fazer em aprendizagem, aqui definido por uma interrogação dos limites da linguagem, continuamente variáveis”.16
Esta afirmação remete-nos ao conceito de verdade em nossa civilização ocidental. Para Platão, pensar é o mesmo que buscar e reconhecer a verdade, única e universal. Haveria, nesse sentido, um absoluto a ser atingido, ou seja, “um saber fazer definitivo”, que a tradição ocidental não fez senão repetir. No entanto, F. Nietzsche propõe a verdade como processo de criação. Para este filósofo, nenhum sentido é eterno e tudo depende das relações de força que o constituem. Retomando o pensamento de Barthes, podemos relacionar o que ele chama de estereótipo com a verdade universal que cada época pretendeu alcançar. Já o que Nietzsche chama de verdade é a tentativa de decomposição de tais estereótipos, ou seja, é a arte, no seu sentido de multiplicidade, de diversidade.
Esta passagem pela concepção de verdade ajuda-nos a melhor entender a literatura representativa e aquela que quebra este modelo. O texto que tem como função proporcionar o reconhecimento ao leitor precisa-se manter o mais fielmente possível ao lado da suposta verdade, para que não haja estranhamento, constituindo-se, assim, sob os meandros do poder, que, como já vimos, estipula qual é a verdade dita “universal”. No avesso dessa proposta, uma literatura não representativa – como a de Llansol – anseia por “descobrir, inventar novas possibilidades de vida”. 17 Em Um beijo dado mais tarde, uma cena fulgor revela-nos como o texto de Llansol dialoga com a idéia nietzscheana de que nenhum sentido á eterno: “vão partir para outro lugar do meu entresser. Dei-lhes em troca os gomos da verdade, e, agora, as imagens do seu suco vesperal: uma verdade móvel.” Esta imagem é, sem dúvida, bastante libertadora, uma imagem do despoder.
Após este breve percurso pelo conceito de literatura da não-representação, podemos afirmar que o texto llansoliano se constitui à margem de um padrão narrativo mimético. Vimos que a autora recusa um modelo de linguagem e faz nascer uma nova língua. Analisemos, pois, alguns traços dessa nova narrativa llansoliana.
No discurso proferido por ocasião do Grande Prêmio do Romance e da Novela de 1990 atribuído ao romance Um Beijo dado mais tarde, Llansol esclarece alguns pontos da sua concepção de escrita. “Para que o romance não morra é uma bela manifestação da urgência de se substituir uma antiga forma literária – que tem como centro a narratividade – pelo que a autora chama de textualidade. Llansol, em momento algum, mostra-se pessimista em relação ao destino do romance. Ao contrário, enfatiza a importância dele e, se pretende mudar sua forma, é exatamente para que não morra. Diz ela, num bonito movimento de amor à escrita:
__________escrevo,
para que o romance não morra.
Escrevo, para que continue,
mesmo se, para tal, tenha de mudar de forma
mesmo que se chegue a duvidar se ainda é ele,
mesmo que o faça atravessar territórios desconhecidos,
mesmo que o leve a contemplar paisagens que lhe são tão
difíceis de nomear.18
A narratividade – ou o ato de contar estórias uns aos outros – foi, por longo tempo, uma possibilidade de levar o homem à sua liberdade de consciência. No entanto, “acontece, está acontecendo há muito, que a narratividade perde seu poder de fascínio”.19 E “o diagnóstico é conhecido”, afirma a autora. Esta forma de romance é controlada pelo princípio da representação do real, por uma preocupação com a verdade e, por isso, “só pode existir no âmbito da racionalidade que modula (…) os materiais que o mito (…) é obrigado a pôr à sua disposição”.20 Diante da constante repetição desse trabalho, que acabou por fazer esgotar a energia criadora, Llansol põe-nos as seguintes questões:
Como continuar o humano?
Que vamos nós fazer de nós?
Que sonhos vamos nós sonhar que nos sonhe?
Para onde é que o fulgor se foi?
Como romper estes cenários de “já visto” e “revisto”
que nos cercam?
Ela mesma é quem responde, introduzindo sua proposta estética: “é minha convicção que, se puder deslocar o centro nevrálgico do romance, descentrá-lo do humano consumidor de social e de poder, operar uma mutação da narratividade e faze-la deslizar para a textualidade, um acesso ao novo, ao vivo, ao fulgor, nos é possível”.21 O que a textualidade nos pode dar de diferente da narratividade é o acesso ao dom poético, “a imaginação criadora própria do corpo de afectos, agindo sobre o território das forças virtuais, a que poderíamos chamar de existentes-não-reais” (contrapondo-se ao real-não-existente, ou verossimilhança, que orienta a narratividade). Além disso, a textualidade “abre caminho à emigração das imagens, dos afectos, e das zonas vibrantes da linguagem,” permitindo uma pluralidade de olhares contínuos, numa “paisagem onde não há poder sobre os corpos”. 22
 
Referências Bibliográficas
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1 BARTHES, Roland, Aula, Trad. Leyla Perrone-Moysés, São Paulo, Cultrix, 1978, p. 11
2 BRANCO, Lucia C. “Encontro com escritoras portuguesas”. In: Boletim CESP, Belo Horizonte, v.13 n.16, jul./dez. 1993, p.108
3 LLANSOL, Maria Gabriela, Lisboaleipzig I, o encontro inesperado do diverso, Lisboa, Rolim, 1994, p. 131
4 ____________ Finita (Diário 2), Lisboa, Rolim, 1987, p. 52, 53
5 ____________ Um beijo dado mais tarde, Lisboa, Rolim, 1990, p. 9
6 LLANSOL, 1996, p. 46, 47
7 LLANSOL, 1990, p. 113
8 LLANSOL, 1987, p. 53
9 LLANSOL, 1990, p. 9
10 idem, p. 12
11 LLANSOL, 1987, p. 67
12 BARTHES, 1978, p. 26
13 LLANSOL, 1994, p. 68
14 LLANSOL, M. G., Um Falcão no Punho (Diário 1), Lisboa, Rolim, 1985, p. 16
15 idem, p. 55
16 LOPES, Silvina Rodrigues, Teoria da Des-Possessão, Lisboa, Black Son Editores, 1988, p.29.
17 DELEUZE, Gilles, Nietzsche e a filosofia, Rio de Janeiro, Ed. Rio, 1976, p. 83
18 LLANSOL, M.G., “Para que o romance não morra”, In: Lisboaleipzig I, Lisboa, Rolim, 1994, p. 115
19 idem, p. 118
20 idem, p. 118
21 idem, p. 120
22 idem, p. 121