Resenha: "De um duplo a outro" – Marie-Ange Depierre


Marie-Ange Depierre – Resenha sobre Rubem Mauro Machado e Borges

RESENHA – LITERATURA E CULTURA

2016 – 2º semestre.

 

DE UM DUPLO A OUTRO
Borges, Jorge Luis Borges, “La forme de l’épée”. In: Fictions. Paris: Gallimard, 1957. p. 137-143.
Machado, Rubem Mauro. “Deux ennemis”, Dérives, no 37-38-39, 1983: p. 105-108.
 

Marie-Ange Depierre

 
Se o tema do duplo aparece com frequência no gênero conto, não é, entretanto, tratado de maneira uniforme.  Desse modo, por meio da análise comparativa de dois contos, “A forma da espada” do argentino J. L. Borges e “Dois inimigos” do brasileiro Rubem Mauro Machado, jornalista no Rio de Janeiro e autor de vários livros de histórias curtas, entre eles Jacarés ao sol (publicado em 1976 e que inclui o conto que vamos estudar), tentaremos mostrar as diferenças no tratamento do tema do duplo que aparece em ambos, os diferentes processos de escritura usados e as visões diversas da literatura que ali se revelam.
O título do conto de J. L. Borges, “A forma da espada”, nos remete para um problema de forma. A forma semicircular da cicatriz no rosto do personagem principal, forma semicircular de lua que está presente de modo implícito no nome do personagem, John Vincent Moon, e a forma circular engendrada por um movimento de simetria entre o desenrolar diegético e o desdobramento da narrativa que cria assim uma roda de linguagem que poderia girar infinitamente.
Desde o princípio, a narrativa põe em cena o elemento enigmático, a cicatriz: “Um talho rancoroso lhe cruzava o rosto.” A história secreta dessa cicatriz virá a ser a própria base do relato e é ao contá-la que Moon levará a mudar de opinião o proprietário, que não queria lhe vender suas terras. Narrar a história, qualquer história, é, portanto, um argumento convincente, pragmático, um ato do discurso: da mesma forma a ação da narrativa, qualquer narrativa transforma a realidade, segundo a visão borgiana da ficção. Esse problema de venda das terras é, aliás, um índice da ação infamante que originou a cicatriz no rosto de Moon: a venda de seu amigo.
Neste conto, o leitor tem acesso à verdade, ao caminhar ao longo de uma sucessão de mentiras. Mentira inaugural do narrador que quer nos fazer acreditar que a cicatriz é mais importante que o personagem que a carrega: “Tanto faz seu verdadeiro nome. ” Ora, o nome desse personagem importa tanto que se nos for revelado, não haveria possibilidade do texto, pois, na condição de leitores, compreenderíamos tudo. A expressão “seu verdadeiro nome” sugere de maneira invertida que existe um nome falso, “o inglês da Colorada”, que define dessa forma o protagonista da história, ao passo que seu verdadeiro nome definirá o traidor.
O caráter dúbio e turvo do personagem principal já aparece na sua falsa nacionalidade dupla: ele é chamado de “o inglês”, embora seja irlandês e se utiliza de sua condição de “inglês” num país de América do Sul, o Uruguai.
Todo o texto depende de um jogo de identificações: identificação especular invertida da dupla identidade constituída pelo inglês/Moon; identificação do narrador com Moon quando percebe que ele está bêbado, já que Moon nos fora apresentado com um beberão; identificação do inglês com Borges como narrador na hiponarrativa que constitui a história da cicatriz. Essa identificação resultará na identidade de Moon.
A tempestade que se arma no céu, o segredo que se revela aos poucos na história evoca o que Borges dizia da literatura em “Borges e eu”: “vivo e me deixo viver para que Borges possa urdir sua literatura, e essa literatura me justifica.[1]” Escrever seria então urdir mentiras como as produzidas pelas atividades de Moon.
A explicação que Moon dá para sua cicatriz é pontuada de referências intertextuais: Joyce, sem que seja nomeado, na evocação da Irlanda e de seus traidores, e que nos recorda a visão da história irlandesa por este último em Dedalus, o general Berkeley remetendo para o filósofo do mesmo nome, Shakespeare e Schopenhauer. Essa intertextualidade permite ver que para Borges a História mostra a literatura e que a literatura é um traço ilusório da História, o que leva a uma totalidade da ficção, para não dizer a uma ficção totalitária. Há uma contaminação constante da história e da ficção e essa ficção dá à luz a realidade. Esse primado da ficção se manifesta por meio da linguagem e podemos observar que em “A forma da espada”, a traição é um evento da palavra, que se deixe escutar numa biblioteca, lugar borgiano por excelência.
Moon se faz traidor ao denunciar alguém, mas ao mesmo tempo, torna-se herói da história ao se denunciar.  Sua cicatriz serviria então como espelho de uma imagem especular invertida que se manifesta na cadeia paradigmática. Antes da existência dela, Moon é descrito como “invertebrado, covarde, delator”; depois de marcado, se tornará o inglês “enérgico, severo e justo”.
Desse modo, em “A forma da espada”, o tema do duplo aparece numa rede de identificações, de imagens invertidas que podem coexistir, da mesma forma que o texto, na sua duplicidade de ficção-história, pode se utilizar das muitas representações que ele faz surgir ao aceitar sua condição de mentira. Se para Borges o real é uma cópia deficiente das obras de arte, então a forma do duplo importa mais que seu conteúdo. Portanto é o processo mesmo do texto que vai pôr em cena esse duplo num jogo de deformações, transformações e deslocamentos, eles constituem uma combinatória que põe na berlinda o tema da renúncia na narrativa. Esse jogo faz com que será essencialmente pelo trabalho da leitura que vai se concretizar o duplo, acompanhado de perto pelo leitor.
Em “Dois inimigos” de R. Mauro Machado, a narrativa desenvolve uma paródia do duplo que não será mais um reflexo especular, mas um desenvolvimento que conduzirá à unicidade, a duas metades que constituem o Um, a uma unidade física dividida psiquicamente.
Desde o início da história, presenciamos duas identidades com quatro instâncias: “Eu o observo, ele me vigia”, o que já põe em cena dois sujeitos de enunciação, “eu-ele”, e dois sujeitos do enunciado, “eu -ele”, que se enfrentam. O olhar servirá de fio condutor ao longo do conto.
O texto condensado, muito curto, que mal chega a duas páginas e meia, trabalha muito com diferentes tipos de gênero: o gênero meta-ficcional na descrição da preparação para o ato de escrever logo no início, o gênero policial no enigma que nos é colocado a propósito desse personagem misterioso, esse “ele” obsedante, o gênero de aventura quando o narrador começa a descrição da queda do avião.
Essa mistura de gêneros que nunca resulta em nada, que são rapidamente abordados, apenas sugeridos, surpreende o leitor e compõe um conto que se apresenta como um relatório mesclando acontecimentos reais e fantásticos num estilo quase jornalístico.
Não por acaso, o narrador introduz na história o mundo dos jornalistas, a respeito do qual ele se mostra irônico, crítico. Ele os descreve ao mesmo tempo ávidos e simplificadores dos acontecimentos; por fim, mostra a mídia brasileira como mera ficção cientifica.
O mundo da medicina será também parodiado sem piedade. O nome do doutor Kill sugere assassinato, ao mesmo tempo que, por causa de sua profissão, lhe é imputado o poder de curar e livrar da morte. Ele é apresentado como um vaidoso que utiliza seus pacientes para estabelecer uma reputação de herói dos tempos modernos, em que as cirurgias espetaculares tomaram o lugar das provações e proezas do herói clássico. A evocação de seu “primeiro transplante de cérebro” faz dele mais um cientista louco (como o criador de Frankenstein) do que um homem de ciência.
A cadeia paradigmática de suas qualidades parece tão insensata quanto a classificação dos animais que J. L. Borges dá à proposito de certa enciclopédia chinesa: o doutor Kill é obcecado pelo prêmio Nobel, sabe dançar bem a rumba e as mulheres fazem fila para trepar com ele! O narrador golpeia com arte o mito do cirurgião e, implicitamente, levanta o problema da modernização num país em desenvolvimento, modernização essa que produz mais eventos espetaculares do que uma resposta para necessidades vitais, pelo menos na área da saúde. Devemos lembrar que o Brasil é um dos países onde o domínio da cirurgia plástica é dos mais avançados.
Um outro setor da modernidade, a publicidade, será também parodiado. O narrador toma emprestada a retórica do estilo publicitário, enfático, que insiste pesadamente na necessidade da total alegria de viver: “(…) eu que amo o mar e a natureza, eu que sinto dentro de mim a alegria de viver, na inteireza dos meus músculos, porque sou jovem e percebo o pulsar do sangue e do sêmen.” Esse dinamismo imperioso e exibicionista sugere um lugar, uma cidade imensa e trepidante, e um tempo da modernidade voltado para o futuro.
Como em “A forma da espada”, é através de uma hiponarrativa que tomamos consciência do segreda das cicatrizes. Pela leitura, tomamos conhecimento que esse duplo é constituído por duas metades do narrador, vítima de um acidente de avião.  “O incrível capricho da lâmina afiada ao me decepar exatamente no meio, ao comprido, de alto a baixo” só pode evocar o mito do andrógino tal como transmitido por Aristófanes no Banquete de Platão.  Porém se na narrativa mitológica é a espada de um deus que provoca a divisão, em “Dois inimigos” é mais prosaicamente a lâmina de ferro de um avião destroçado. O destino não é concebível num mundo moderno e não há qualquer traço da tragédia na descrição da sorte do narrador. O acidente aparece como um teatro burlesco: “(…) os bombeiros correndo com as minhas duas metades, ainda vivas, transportadas em cobertores.” A mitologia é também parodiada, porque se Zeus fendeu o andrógino de alto a baixo, o doutor Kill, por sua vez, o Zeus das salas de operação, vai costurar e enxertar as “meias frações, cada uma com sua metade de cérebro, nariz, pulmões, olhos” para chegar ao resultado monstruoso de um ser dividido na sua unicidade (e não pela obtenção exitosa de dois seres distintos como na mitologia): “Feito uma anêmona, as duas metades em poucos meses monstruosamente regeneraram, formando dois seres distintos, dois seres repulsivos que se odeiam, nós dois – eu e ele.”
Todo o processo narrativo joga com essa divisão física de um sujeito fictício e mesmo fantástico, para remeter o leitor a um sujeito psiquicamente dividido, ele mesmo e o outro, que somos todos, o eu e o outro que surgirá , sua parte de sombra que, tal como o inimigo, é “tímido, encolhido, contrafeito, hesitante, (…) não sabe, não consegue, maturar sua personalidade, manipular aquela carga de conhecimento humano e sensibilidade que acabei lhe transmitindo, [e que tem] o olhar baixo de medo e angustia do outro”. No entanto essa cesura corporal, seguida da divisão psíquica de um ser de duas cabeças, parece antes de tudo funcionar como a imagem icônica do corte perpetrado por uma modernização exagerada e fora do controle num mundo de tradição, de culturas diversificadas. O inimigo seria o Outro, o autóctone, o Índio, o recalcado, o arcaico, o imutável que o país deve arrastar com ele para permanecer numa dimensão humana.  Do mesmo modo, se em “A forma da espada”, Borges trata do tema do duplo numa dimensão metafisica, se ele usa a história de um país, a Irlanda, à procura da sua identidade como tela de fundo do seu conto, já Mauro Machado retrata uma realidade mais tangível, um corpo humano, e um tempo mais determinado, o advento de um acidente de avião e de uma operação cirúrgica para parodiar o duplo fracassado, produto da tecnologia e da ciência do homem. Mauro Machado faz uma apresentação burlesca e até mesmo grotesco do mundo, do homem, para propor ao leitor o problema da tolerância em relação ao outro, de seu eu dividido, seu lado desconhecido, mas também para propor o problema da modernização nos países que não levam mais em conta suas raízes culturais e etnológicas.
Na reescritura de Borges, é a escritura da História – a guerra, a conspiração e sua produção de heróis e traidores – que alimenta a narrativa, ao passo que na escritura de Rubem Mauro Machado é o cotidiano do homem moderno nos seus aspectos acidentais, porém banalizados que enseja a oportunidade de contar uma história. Uma história ancorada na modernidade: presenças do avião, do hospital, do corpo médico, do grupo de jornalistas, o que nos situa no macrocosmo de uma cidade, para nos introduzir paradoxalmente no microcosmo da vida interior, a história individual de um ser aprisionado nos seus sofrimentos físicos. O desfecho do conto, desvendando a existência de um homem de duas cabeças, produto do desejo megalômano do cirurgião, dá de súbito ao corpo a dimensão de uma narrativa, de uma memória viva, de uma história que se faz transparente.
Assim, uma das diferenças no tratamento do duplo em “A forma da espada” e em “Dois inimigos” seria talvez o fato de que Borges, no seu conto, não utiliza o corpo na sua materialidade, mas antes no seu efeito, através da sua função de continente que permite ao homem pensar, tomar decisões, trair ou tornar-se herói. Já Mauro Machado situa o corpo, desde o início, em todo a sua densidade, com suas cicatrizes, seu olhar de ódio, sua presença, aqui e agora, independentemente de todo tratamento psicológico ou metafisico. Essa densidade como que provoca um efeito de distanciamento por meio de um estilo grotesco.
O conto de Borges está mais próximo do ensaio filosófico, metafísico e literário, ao passo que o conto de Mauro Machado se lê como um texto musical, uma partitura que permite tocar uma gama de estilos narrativos, de níveis de leitura, num ritmo enxuto, feito de rupturas e novidades.
A escritura de Borges brinca com a repetição que gera o mesmo, a mentira verossímil, enquanto a escritura de Mauro Machado recorre ao registro do Outro, ao efeito do novo que gera surpresa, o inacreditável sobre um fundo de verdade.  Os dois contos, que tratam de um mesmo tema, o duplo, manifestam, entretanto, dois procedimentos narrativos diferentes, duas utilizações contrarias do mundo referencial e talvez, generalizando, duas visões divergentes da literatura.
 
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Terapeuta em psicomotricidade, Marie-Ange Depierre é doutora em Literatura Comparada. Sua tese junta dois vieses de pesquisa: o corpo e a psicanalise, o corpo e a escritura. Colabora com diferentes revistas de Québec, é tradutora de espanhol e ensina na École des Interprètes et Traducteurs da Universidade de Ottawa. É autora de coletânea de narrativas curtas publicada pela editora Triptyque: Une petite liberté (narrativas), que inclui seu trabalho “Dire oui à Clarice Lispector”.
 
Tradução de Stéphane Chao
[1] 1. Jorge Luis Borges, “Borges et moi”. In: L’Auteur et autres textes. Paris: Gallimard, 1965. p. 103-105.