Caique Franchetto
Universidade Estadual de Campinas (IEL/UNICAMP)
Resumo: A emancipação da leitura nos séculos XVIII e XIX fez com que os autores franceses buscassem alternativas para que seus livros fossem publicados. O jornal, símbolo da leitura de massa, foi a chave para a divulgação da literatura do oitocentos: o folhetim abriu as portas para Dumas, Sue e Alencar publicarem e serem lidos, e os “anúncios” nas “Variedades” divulgavam novas obras e best-sellers editados por livreiros que viam no jornal a publicidade de seus negócios. Com o avanço da produção e da circulação de livros e folhetins, o respaldo nos jornais cariocas foi intenso, revelando efetivas práticas culturais de leitura. Com base nessas informações, este trabalho pretende colaborar com o mapeamento da recepção de folhetins e anúncios do século XIX no jornal O Mercantil, referenciando-se nas leituras sobre a circulação transatlântica de impressos e ideias, sobre a constituição e influência do gênero folhetim e, por fim, sobre as relações entre literatura e imprensa na Europa e no Brasil do século XIX.
Palavras-chave: Imprensa literária; variedades; França e Brasil; século XIX.
Abstract: Culture and Literary Press: French Feuilleton and Advertisement on The “Variétés” of the newspaper O Mercantil (1844-1845) deals with the emancipation of reading on 18th and 19th centuries lead the French writers to look for alternatives in order to publish their books. The newspaper – massive reading symbol – has been the key for the promotion of eighteenth century literature. The feuilleton opens the doors to Dumas, Sue and Alencar. Its advertisement and variétés promoted their new best-sellers, enhancing their business. With growing production and circulation of books and feuilletons, there was an intense support on the part of the cariocas to newspapers. Based on these information, this research intends to contribute to the mapping of the reception of feuilletons and advertisement during the 19th century in the newspaper O Mercantil. It will employ as reference the readings about the transatlantic circulation of printed material and ideas, about the constitution and influence of the genre feuilleton and, at last, about relationship between literature and the press in Europe and in Brazil in the 19th century.
Keywords: Literary press; variétés; France and Brazil; 19th century.
Currículo da autora: Mestrado em andamento em Teoria e História Literária pelo IEL/UNICAMP. Graduação (2011-2015) em Letras (Português/Francês) pela EFLCH/UNIFESP. Desde 2011 tem experiência como professora de Língua Portuguesa e Literatura no Ensino Regular da rede pública e privada de ensino de São Paulo. Atualmente é professor particular de Língua Francesa, pesquisador na área de Teoria e História Literária, Literatura Francesa e Brasileira, circulação e recepção literária (livros e ideias) entre Europa e Brasil no século XIX, e Romantismo e Natureza (Filosofia, História e Literatura) e revisor editorial do periódico acadêmico “De Letra em Letra” do Departamento de Letras da UNIFESP.
CULTURA E IMPRENSA LITERÁRIA: FOLHETINS E ANÚNCIOS FRANCESES NAS “VARIEDADES”
DO JORNAL O MERCANTIL (1844-1845)
Caique Franchetto
Universidade Estadual de Campinas (IEL/UNICAMP)
Introdução
– E por que se entregar ao sofrimento? O que nos custa nossa vida, o assunto que, durante as noites estudiosas, destruiu nosso cérebro. Todas essas incursões pelos campos do pensamento, nosso monumento construído com nosso sangue torna-se para os editores um mau ou um bom negócio (Diálogo entre Lucien e Lousteau, in: BALZAC. Ilusões perdidas, 2010, p. 323).
Abro esse texto a partir da epígrafe acima que retirei das Ilusões perdidas, de Balzac, pois, ela é o ponto de partida do que será tratado ao longo dessas linhas. Antes dos historiadores do livro, Balzac já havia percebido agudamente as relações de circulação do livro entre a imprensa periódica e o sistema editorial. Conservador, ele aponta a mecanização da “aura” da literatura, mas, essas relações entre a imprensa literária e o sistema editorial nos relevam como um livro era produzido, da sua criação até sua circulação e recepção, e revelam também práticas de leitura entre as sociedades ocidentais durante à ascensão burguesa.
No Brasil, boa parte dos romances franceses que influíram na formação da nossa literatura no oitocentos circulou em jornais dentro das rubricas de “Variedades” e de “Folhetim”. Machado de Assis no célebre conto “A missa do galo” (1899) é um desses registros literários. No conto, o narrador lê ebriamente um romance-folhetim, os “Mosqueteiros” do Sr. Dumas, em uma “velha tradução creio do Jornal do Comércio” (ASSIS, 1985, p. 240), o mais importante jornal brasileiro do oitocentos que publicou folhetins e anúncios franceses, além d’A Moreninha, de Macedo, gênese do nosso romance romântico .
Nessa esteira desses autores, esse artigo tem como objetivo a colaboração com o mapeamento da recepção de folhetins, anúncios e outras variedades francesas nos periódicos fluminenses do século XIX, por meio de um estudo e levantamento de dados no jornal O Mercantil em busca de textos franceses e anúncios de livros publicados em seu primeiro ano, entre 1884 e 1845, período no qual se ascendeu a publicação da imprensa literária e a circulação transatlântica de livros entre a França e o Brasil. O estudo dessa circulação além de proporcionar um levantamento de textos literários, permite também que se identifique quais eram os costumes literários no Brasil oitocentista, além de mapear a circulação de livros franceses e suas traduções em língua portuguesa.
Imprensa literária: cultura letrada à francesa e circulação no Brasil oitocentista
Segundo o historiador da imprensa Christophe Charle (2004), a partir das Revoluções de 1789 e 1830, estava presente na França uma política liberal que libertaria a imprensa periódica. Essas “novas formas culturais” (as tipologias da imprensa) pretendiam “todos os tipos de leitores”, difundindo os “saberes” reinventados pela burguesia. O “sucesso social da imprensa” deu-se pelas “rubricas transversais”, que estarão geograficamente em “variedades”, como o “folhetim” ascendendo a “imprensa popular” (CHARLE, 2004, p. 12-15). A partir da imprensa de massa, a “função primeira dos jornais” é democratizar o acesso ao “espaço público” (CHARLE, 2004, p. 20), que ao baratear cada vez a produção e consumo do jornal, possibilita a interação do público com o cotidiano e as novidades culturais, pois, ao possuir um jornal, o leitor poderia ter acesso às “variedades” e aos “anúncios” diversos, inclusive os de livreiros.
Marlyse Meyer (1998) nos diz que, apesar do negativo juízo dos pensadores da estética marxista, o “gênero folhetinesco” (romance-folhetim, fait divers e crônica) dão lugar “às classes laboriosas”, cujo sujeito é “leitor/ouvinte” e lhe é dado “o direito de interpelar o autor e interferir na conduta da ação e dos protagonistas” (MEYER, 1998, p. 124-125). Ou seja, é a primeira vez, e foi possível pela imprensa burguesa, que há uma ideia de “democratização da cultura”, além de que, no caso brasileiro,
Rastrear as Variedades pela imprensa brasileira da primeira metade do século XIX significa tanto ir ao encalço das primeiras manifestações da ficção, como de um espaço livre à criação e à transformação do jornal (MEYER. 1998, p. 127).
Em outro importante escrito de Meyer (2005), folhetim deriva do termo afrancesado do inglês feuilleton, que significa “folha de papel”. No caso da imprensa literária, é uma parte da folha do jornal ou periódico reservada ao final da página, isto é, no “rés-do-chão”, no “rodapé”, ocupando de uma a três páginas, oriundo da antiga rubrica variétés (variedades). Segundo Meyer (2005), o folhetim constitui-se desde o espaço reservado a ele, cuja “liberdade de recriação e recreação” (feuilletes tout court) permitiu que fossem publicados romances, ensaios, crônicas, piadas, relatos, receitas, críticas, esboços, etc., até em um gênero com características estruturais e temáticas específicas: a novela-folhetim, o romance-folhetim e a crônica-folhetim:
(…) inventado pelo jornal, e para o jornal, o feuilleton-roman (…). Nasceu na França, na década de 1830, concebido por Émile de Girardin, que percebeu, na época de consolidação da burguesia, o interesse em democratizar o jornal, a chamada grande presse, e não mais privilegiar só os que podiam pagar por caras assinaturas. Para aumentar o público leitor havia, pois, que barateá-lo (…). Havia já, desde o começo do século, o feuilleton, ou rodapé, tradicionalmente de tom e assunto mais leves que o resto do jornal, muito cerceado pela censura. Podia ser dramático, crítico, tornando-se cada vez mais recreativo. O folhetim vai ser completado com a rubrica ‘variedade’ que é a cunha por onde penetra a ficção, na forma de contos e novelas curtas. O passo decisivo é dado quando Girardin, utilizando o que já vinha sendo feito para os periódicos, decide publicar ficção em pedaços. (…) na origem, e assim vai ser pelo romantismo afora (época em que o romance é o gênero literário dominante), o romance-folhetim é essencialmente uma nova concepção de lançamento de ficção, qualquer que seja seu autor e o campo que abranja. (…) A almejada adequação ao grande público, a necessidade de corte sistemático num momento que deixe a atenção em ‘suspense’ levam não só as novas concepções de estrutura (…) como a uma simplificação na caracterização dos personagens (…). Verifica-se, além disso, genial adaptação à técnica do ‘suspense’ e ao rápido e amplo ritmo folhetinesco dos grandes temas românticos (…) (MEYER, 2005, p. 30-31).
Os romances, novelas e crônicas em folhetim traziam ao leitor temas populares do cotidiano social (público) e familiar (privado); ou seja, o “mundo folhetinesco”, cuja temática girava em torno do crime, da miséria, da prostituição, dos perseguidores e perseguidos, de atrocidades e da História, temas triviais e citadinos, como diria Machado de Assis em suas crônicas. É por meio do folhetim – literatura de baixo custo do jornal – que há a ascensão da leitura de massa; o prazer da leitura de romances-folhetins vem pela representação de ícones da História, como nos romances de Dumas, ou de “tipos” do povo, como Les Mystères de Paris, de Eugène Sue:
Mas o próprio caráter comercial haveria de beneficiar os autores: o jornal é uma plataforma permanentemente aberta aos jovens que querem tentar a carreira literária e experimentar o gênero moderno por excelência que é então o romance (MEYER, 2005, p. 63).
O folhetim é, em primeiro momento espaço, o rez-de-chaussé ou rodapé; depois torna-se um gênero, cuja estrutura é baseada em cortes sistemáticos, diversos núcleos narrativos permeados pelo suspense, e diálogos ligeiros dando ritmo a essa narrativa; por fim, consolida-se como tema, o “folhetinesco”, bebendo da influência do drama romântico e do fait divers, destinado “ao entretenimento” e à “criação imaginativa” da literatura.
Assim como nos lembra Antonio Candido (2006) na Formação da Literatura Brasileira, a burguesia literária se fixa, no Brasil, a partir da “ampliação do público leitor, devida à participação mais efetiva do povo na cultura”, que desenvolve movimentos democráticos como a “imprensa periódica” e a “indústria do livro” (CANDIDO, 2006, p. 430). O romance é a síntese desse desenvolvimento que revela o pensamento romântico que circulava, na maioria dos casos, nos folhetins espalhados pelas páginas dos periódicos:
(…) a intensidade dos folhetins traduzidos diminuiu no momento em que se define a produção local: isto significaria que ela tomou em parte o seu lugar e viria corresponder a necessidade do meio. (…) Os livros traduzidos pertenciam, na maior parte, ao que hoje se considera literatura de carregação; mas eram novidades prezadas, muitas vezes, tanto quanto as obras de valor. (…) Na maioria, franceses, nos títulos o gênero que se convencionou chamar folhetinesco: Quem sabe quais e quantos desses subprodutos influíram na formação do nosso romance? Às vezes, mais do que os livros de peso em que se fixa de preferência atenção (CANDIDO, 2006, p. 439-440).
No Brasil, o interesse pelo romance estava relacionado ao próprio ideal romântico de formação da identidade cultural, artística e literária. Por meio da “importação” do modelo francês, autores como Macedo e Alencar começaram a produzir a “nova narrativa”. Ainda na esteira de Candido (2006), o gênero romance só se fixou no Brasil por conta de Alencar relacionado, justamente, às primeiras manifestações românticas e ao desenvolvimento do jornalismo.
Na primeira metade do oitocentos brasileiro, o preço baixo do jornal e dos romances “pós-folhetim” atraiam leitores de diversas classes sociais. No jornal, esse romance “cortado e seriado” interage com as demais notícias e com os anúncios dos livreiros que divulgavam suas listas de acervo e de chegada de novos romances (traduções ou edições europeias) que se tornariam os best-sellers do século XIX. Surgem, então, sobretudo no Brasil “afrancesado”, novos tipos de espaços e novos gêneros narrativos a serem publicados: as “Variedades” que publicavam textos diversos de e/ou sobre literatura; o folhetim que estrutura o gênero romance-folhetim; os suplementos que publicavam notícias extras e outros romances-folhetim ao mesmo tempo; e, por fim, a rubrica de “Anúncios” que divulgava, como o caso que estudaremos a seguir, livros clássicos e edições traduzidas dos mesmos romances que estavam sendo publicados em folhetim, um ou duas páginas atrás no mesmo jornal. Essa transformação da técnica de produção literária e de mentalidade de apropriação cultural expande o mercado editorial e livreiro, atingindo assim diversas camadas sociais, inclusive o proletariado. Os avanços do jornal e da facilidade de acesso ao livro contribuíram para a ascensão da leitura e da estética moderna.
Folhetins, variedades e anúncios n’O Mercantil
Essa longa contextualização que veio sendo trabalhada até então nos permitiu vislumbrar quais foram as situações nas quais a imprensa francesa e se formou, bem como os gêneros literários vinculados a ela, e como e em quais circunstâncias ela se tornou a matriz importada pelo Brasil em plena formação intelectual, cultural, sócio-política e, sobretudo, literária. A partir da Imprensa Régia, o jornal brasileiro passa por constantes transformações e são fundados diversos títulos para emancipar o mercado editorial e difundir os ideais políticos da cultura letrada formada pela elite vigente no período. Assim como nas pesquisas e nos levantamentos sobre circulação transatlântica de impressos no século XIX, a transição dos anos 1844 e 1845 no jornal O Mercantil apontou a predominância de folhetins e variedades de origem francesa, que eram publicados periodicamente, além de inúmeros anúncios de livros, sobretudo romances franceses, brasileiros e de outras nacionalidades já em traduções em português.
O jornal escolhido nessa pesquisa foi O Mercantil, derivado e fundado pelos mesmos editores-impressores do Correio Mercantil. Herdeiro de um dos principais jornais fluminenses do período, o Mercantil foi imprenso entre os anos de 1844 e 1848, quando deixa e volta a ser intitulado como Correio Mercantil. Independente do título com o qual circulava, o Mercantil era um dos principais concorrentes do Jornal do Commercio, este que era o maior periódico do país até então cujo posicionamento político era o conservador e monarquista. Assim como a problemática e contraditória política brasileira, que se dividia entre dois partidos: os monarquistas a favor do Imperador, e os liberais, estes que se subdividiam entre os republicanos democratas e os socialistas, o Mercantil defendia o liberalismo e o abolicionismo, contudo, não poderia ser considerado um jornal “socialista”, pois, ainda estava ao lado da elite liberal-republicana contra a monarquia. Para Morel & Barros (2003), o jornal revela seu perfil de público leitor, isto é, uma elite que constitui a “opinião pública”:
Dessas proposições, emerge o perfil de um público – se não o existente, pelo menos o desejado: o espelho de uma identidade ao mesmo tempo cultural, social e política. Um público ilustrado e poderoso, integrado por sábios, homens instruídos, lado a lado com ricos proprietários – isto é, um conjunto de cidadãos e leitores ativos (MOREL; BARROS, 2003, p. 39).
Pensando a imprensa como o principal espaço de divulgação e discussão dos assuntos políticos e citadinos da sociedade oitocentista – assim como hoje, ao lado das demais mídias televisivas e digitais – o jornal comum e geral do período equilibrava, entre os editais e rubricas, notícias políticas e de costumes e o folhetim (que poderia ser ficção ou resenhas, sobretudo as teatrais) nas duas primeiras páginas, as “Variedades” e notícias do porto na terceira e, por fim, na quarta página, os anúncios, além dos “Suplementos” ou edições especiais com mais páginas dando enfoque em determinadas notícias e acontecimentos importantes, sobretudo os intensos debates sobre a continuidade ou não do Império independente. Menos político do que o Correio…, o Mercantil era um jornal menor, com apenas quatro páginas, e que dava mais espaço aos folhetins, às variedades e aos anúncios; nesse âmbito, concorria cabeça-à-cabeça com o Jornal do Commercio, publicando concomitante os best-sellers AlexandreDumas e Eugène Sue, nos rodapés e nas colunas em meio às suas páginas.
Dentre os franceses, o principal romance publicado foi Os Mistérios de Paris, de Sue. Retomo mais uma vez o que Meyer (2005) tem a nos dizer quanto ao seu anúncio:
(…) finalmente, chegam ao rodapé, em português, os tão esperados Mistérios de Paris. A data é 1º. de setembro de 1844, tradução de R. (Joaquim José da Rocha). Salvo uma ou outra interrupção, “vem à luz” todos os dias e ocupa praticamente o suplemento dominical inteiro. (…) e ocupa quatro rodapés até o FIM, em 20 de janeiro de 1845. Mas, nem um mês depois de iniciada a publicação, em 1º. de outubro de 1844, sai, pela primeira vez na história do jornal, um reclame enorme, com tipos garrafais, ocupando toda a sua largura, em rodapé: “ACHAM-SE à venda em casa de J. Villeneuve & Cia., rua do Ouvidor, 65, OS MISTÉRIOS DE PARIS. Primeira Parte – um volume – nítida edição – 1$00” (MEYER, 2005, p. 283).
O relato da autora é referente ao … Commercio; no entanto, o mesmo padrão é percebido no Mercantil, conforme o Quadro I, abaixo:
TÍTULO
AUTOR MÊS – ANO DIAS DE PUBLICAÇÃO
O monte do diabo ou o aventureiro E. Sue Setembro – 1844 16, 17, 20, 22, 23, 26, 27, 28, 29
O monte do diabo ou o aventureiro E. Sue Outubro – 1844 2, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 12, 15, 16, 17, 18, 19, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 28, 29, 30, 01 (de Novembro)
Safia, ou os mysterios de Veneza R. de Beauvoir Novembro – 1844 2, 3, 4, 5, 6, 7, 9, 10, 13, 14, 15, 16, 18, 19, 20, 21, 22, 24, 25, 26, 27, 29, 30
Os trez mosqueteiros A. Dumas Dezembro – 1844 1, 2, 4, 6, 7, 8, 9, 10, 12, 13, 14, 16, 17, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 27, 29, 31
Os mysterios de Paris
(em “Suplemento”, caderno à parte do folhetim) E. Sue Dezembro – 1844 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29
Os mysterios de Paris E. Sue Janeiro – 1845 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 (suplemento), 12
Ramalhet das damas
(resenha do anúncio de peça teatral escrita) Torquato e Eleonor Janeiro – 1845 6
Amory A. Dumas Janeiro – 1845 12, 16, 19, 20 [em variedades], 26 [em variedades]
Gérolstein ————- Janeiro – 1845 12
Os trez mosqueteiros A. Dumas Janeiro – 1845 19, 20**, 26, 27, 28, 29, 30
Os trez mosqueteiros A. Dumas Fevereiro – 1845 2, 3, 6, 10, 17, 25, 28
Os trez mosqueteiros A. Dumas Março – 1845 1, 2, 3, 5, 7, 9, 11, 12, 14, 15, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24
Quadro I. Levantamento de folhetins publicados entre setembro de 1844 e março de 1845.
Enquanto o …Commecio iniciava em setembro de 1844 os Mistérios, o Mercantil iniciou, quase diariamente, e por dois meses, a publicação de uma novela do mesmo Sue, O Monte do Diabo ou O Aventureiro, que se estendeu por dois meses, até, enfim, ser publicado no “Suplemento” do mesmo, diariamente, entre dezembro de 1844 e janeiro de 1845. Antes de iniciado os Mistérios de Sue, outros “mistérios” eram publicados: Os mistérios de Veneza, de Beauvoir, revelando a imensa força da “mania dos mistérios”, que fez “pipocar” no curto período de uma década, inúmeros folhetins com o mesmo título, como bem podemos lembrar dos Mistérios de Lisboa, de Camilo Castelo Branco, o Mistérios do Brasil e Mistérios do Rio, publicado no … Commercio entre 1847 e 1854 (MEYER, 2005, p. 285). Seria uma manobra publicitária dos editores do Mercantil publicar os Mistérios de Beauvoir? Estou tentado a dizer que sim, pois, publicou este enquanto não possuía um outro folhetim de força como Os três mosqueteiros, cujo início é a partir de dezembro de 1844 concomitante aos Mistérios de Sue que inicia em 23 de dezembro de 1844 no “Suplemento”.
A transição de Sue para o “Suplemento” permite que seja publicado mais de um romance-folhetim ao mesmo tempo, no caso, o início de outro best-seller, os Mosqueteiros de Alexandre Dumas, que sob pequenas interrupções, domina o rodapé de 1 de dezembro de 1844 até seu fim em 24 de março de 1845. Encerrado os Mistérios, o espaço e a atenção voltam-se a Dumas, publicando, como veremos a seguir, no “Folhetim” e nas “Variedades” a novela Amory junto aos Mosqueteiros.
Enquanto o “Folhetim” estava convenientemente preenchido por Sue e Dumas, as “Variedades” do Mercantil eram mais incertas. Ora elas apareciam ora não, dependendo da demanda de publicações. Para (2005), as “Variedades” eram os espaços para os textos diversos, e esse caráter de liberdade repetia-se no Mercantil, publicando pequenos textos literários, como podemos observar no Quadro II.
TÍTULO AUTOR MÊS – ANO DIAS DE PUBLICAÇÃO
Amory A. Dumas Outubro – 1844 20, 29, 30.
Amory A. Dumas Novembro – 1844 1, 11, 14, 17, 19, 22, 23, 25, 27, 28
Uma viagem de duas mil léguas C. Lagrange Novembro – 1844 12
Amory A. Dumas Dezembro – 1844 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 9, 10, 13, 16, 19, 22
Amory A. Dumas Fevereiro – 1845 7,14, 17
O assassínio. (conto moral) P. Méry Março – 1845 24
Um acto de desespero P. Méry Março – 1845 25, 26
Quadro II. Levantamento das variedades publicadas entre setembro de 1844 e março de 1845.
Devido ao caráter “menos político” do Mercantil, era de se esperar que as “Variedades” fossem preenchidas, em seu primeiro ano, exclusivamente pelo texto literário, no caso, pequenas novelas que caminhavam ao mesmo tempo em que grandes romances-folhetins eram publicados. Com a força do “Folhetim”, o espaço de “Variedades” aparenta ser apenas o “preenchimento” do jornal, logo, sua publicação é permeada de inúmeras interrupções. Um motivo para esse padrão incerto é que o romance no jornal é um triplo negócio: para o autor, que vê na imprensa a oportunidade de publicar e de se profissionalizar; para o leitor, que se alimenta dessa ficção histórica ou realista e assim começa a construir sua visão de mundo; e, por fim, para o editor, que ganha com as vendas do jornal e “o negócio se estende à republicação em volumes” (MEYER, 2005, p. 288) posteriormente.
Como vimos no Quadro I, enquanto era publicada a novela de Sue, Amory preenche as “Variedades” e a “ânsia” de ficção narrativa exigida pelos leitores e editores famintos, até ser publicada concomitantemente aos Mosqueteiros. O Mercantil era nitidamente forrado por Dumas que, pela diversidade de seus escritos, ia do romance histórico à aventura de um herói romântico, atraindo um público leitor mais amplo:
Alexandre Dumas, na esteira de Walter Scott, com as artimanhas do excelente dramaturgo que é, cavouca segredos da alcova e mexericos de outros tempos, ressuscita espadachins e suas bravatas, ministros, rainhas, lançando o caudal do folhetim histórico, aquele que para muitos de nós fez as vezes da verdadeira História (MEYER, 2005, p. 67).
Enquanto não retomava os Mosqueteiros depois do fim dos Mistérios, o “Folhetim” foi preenchido pela novela Amory, de Dumas. Voltando o romance-folhetim, a novela migra novamente às “Variedades” até acabar em 17 de fevereiro de 1845. Encerrada a novela de Dumas, mas ainda ao mesmo tempo dos Mosqueteiros, são publicados dois pequenos contos: O assassínio (conto moral) e Um ato de desespero de Paul Méry, autor pequeno, esquecido atualmente, mas, um autor de “carregação” como diria Candido (2006), muito lido em seu tempo. As “Variedades” do Mercantil estavam ocupadas por ficção, contudo, um fato curioso foi encontrado e percebido em meio às páginas de março de 1845: a rubrica “Litteratura”. Podemos considerá-la uma extensão das “Variedades”, espaço que publicou a então “crítica” e “resenha” como afirmou Meyer (1998) como no Quadro III.
TÍTULO
AUTOR DATA DE PUBLICAÇÃO
Torquato Tasso. Ariosto – Virgílio – Homero Hellum 15 – Março – 1845
Luminares do séc. XIX – Napoleão, Chateaubriand e Bolívar [anônimo] 20 – Março – 1845
Quadro III. Textos publicados no espaço “Litteratura” em março de 1845.
Os dois textos publicados revelam as paradoxais dicotomias entre Antigos e Modernos do Romantismo: o primeiro texto é uma análise comparativa de Torquato Tasso com as obras de Virgílio e Homero, referências clássicas que ainda estavam presentes e faziam parte das práticas de leituras no oitocentos. Já o segundo, é uma análise dos feitos de grandes homens que influenciaram o que o autor anônimo chama de “era moderna”, a partir de seus atos políticos, como Napoleão, e artístico-literários, a partir do Romantismo francês com René-François de Chateaubriand.
Pensando o conceito de best-seller e a lista de títulos mais impressos e pedidos realizada por Martin Lyons (1987), esses nomes que estavam na rubrica “Litteratura”, bem como os demais nos “Anúncios”, eram os mesmos tanto na França como no Brasil.
Uma seleção de best-sellers de longa duração coloca em evidência as estruturas mentais profundas da sociedade francesa moderna. Estas obras representam os gostos literários tradicionais que teriam perdurado; é a sociedade mesma que os haviam designado como representativos de sua própria cultura. Os títulos que se acham em nossas listas de best-sellers sugerem que essa cultura havia sido profundamente marcada pelo classicismo do século XVII e, em menor escala, pelas Luzes do século seguinte (LYONS, 1987, p. 95).
Entre os Clássicos ainda presentes, a audiência era bem dividida com os românticos, como os próprios Chateaubriand e os folhetinistas.
Preenchido devidamente os espaços ficcionais e críticos do Mercantil, eis que podemos avançar para mais um de seus capítulos: a rubrica “Anúncios”, onde também estavam presentes esses best-sellers. Com base no trabalho de Heineberg (2004), percebe-se que os anúncios de livros deste período entre O Mercantil e o … Commercio eram semelhantes, apesar da pequena diferença de quatro meses dos primeiros anúncios dos Mistérios no … Commercio em setembro, e o primeiro anúncio do mesmo romance e edição em volume no Mercantil em 18 de janeiro de 1845, enquanto caminhava para o fim sua publicação em folhetim, conforme podemos ver no Quadro IV.
TÍTULO
AUTOR DATA DE PUBLICAÇÃO
Os mysterios de Pariz E. Sue 18/01/1845
Os três mosqueteiros A. Dumas 25, 26, 27, 28, 29, 30/01/1845
Os três mosqueteiros A. Dumas 04, 06, 08,09, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 24, 26, 27, 28/02/1845
O perigo das paixões Madame d’Uncy
[tradução portuguesa de A. M. Couto] 15/02/1845
Rosa encarnada A. Dumas 15/02/1845
Os Natches Chateaubriand 20/02/1845
Os três mosqueteiros A. Dumas 03, 04, 05, 06, 07, 08, 09, 10, 11, 14, 16, 17, 19, 20, 21, 23, 24, 30, 31/03/1845
Quadro IV: Anúncios de publicados entre janeiro de 1845 a março de 1845 de obras francesas
No Mercantil não havia indicação precisa dos livreiros anunciantes, porém, os endereços das instituições onde poderiam ser encontrados os exemplares eram os mesmos mencionados nos demais jornais anunciantes, bem como os anunciantes eram as tipografias das ruas da Quitanda e do Ouvidor, sobretudo da tipografia de Villeneuve .
O mais curioso dos anúncios, além da publicação acirrada ao mesmo tempo dos folhetins, é que todas as edições anunciadas eram traduções portuguesas ou brasileiras, impressas na França, em Portugal e, inclusive, no Brasil. Não apenas os Mistérios de Sue, mas os Mosqueteiros de Dumas foram anunciados ao mesmo tempo em que eram publicados em folhetim, sobretudo a partir de janeiro de 1845, em que o Mercantil era completamente dumasiano.
Assim como nos lembra Alencar em Como e porque sou romancista, suas preferências de leitura eram esses romances anunciados e publicados em folhetim: “acabei o volume de Balzac; e no resto li o que então havia de Alexandre Dumas e Alfredo de Vigny, além de muito de Chateaubriand e Victor Hugo” (ALENCAR, 2005, p. 40). Das obras de Dumas, sabemos bem o que Alencar lia: os Mosqueteiros e outras novelas publicadas; de Chateaubriand, os Natchez e os Martírios, que circularam assiduamente entre os nossos românticos.
Nesse clima de leituras francesas nas tipografias e nos folhetins, surge no final do ano de 1844 o marco inicial do romance romântico brasileiro: A Moreninha de Joaquim Manuel de Macedo, anunciado em todos os jornais fluminenses, inclusive no nosso querido Mercantil, em fevereiro de 1845 e, depois, anunciado constantemente durante o mês de março de 1845. A novidade que o romance de Macedo causa na cultura literária brasileira é tamanha e perceptível quando observamos outras chamadas do mesmo livro publicadas diariamente em março de 1845 fora dos ‘Anúncios’, espalhadas pelos avisos e páginas do jornal, conforme houvesse espaço disponível:
A MORENINHA
Acha-se no prelo, e sairá brevemente à luz, este romance com 5 lindíssimas estampas; subscreve-se na rua da Quitanda n.77, S. José n.64, Ouvires n.127 e largo do Rocio n.64, a 2$rs. por exemplar.
Está iniciado o “tímido” romance no Brasil, entre os modelos romance-folhetim, romance-histórico e romance-realista, permeados pelos costumes franceses, junto à ascensão da imprensa periódica que dominará as práticas culturais dos leitores do século XIX à atualidade.
Considerações finais
Nesse interim, podemos encaminhar algumas reflexões e conclusões. O objetivo desse trabalho não era apenas expor uma série de dados de um levantamento realizado em um jornal brasileiro do século XIX, mas era também retomar discussões que ainda são temas na teoria literária, como o embate da estética e a democratização da cultura. Como vimos em Charle (2004), entre os séculos XVIII e XIX, a transformação social que a Revolução Francesa exige que a nova demanda de produtores e consumidores de cultura criem suportes, gêneros e temas de leitura. Para uma sociedade analfabeta, o jornal torna-se, talvez, a única ferramenta de práticas de leituras, de executar a recém alfabetização obrigatória, além de ser um bom negócio para autores e editores que almejavam enriquecer à custa da “técnica da escrita” em pleno capitalismo. Ainda que massifique, a literatura no jornal nos revela muito mais do que os grandes cânones, como o início da formação e, posteriormente, ampliação de público leitor; formação da estética e temática romântica, bem como foi a possibilidade de acesso à leitura por meio do baixo custo do jornal. Se em Balzac, o mercado editorial aniquila a “aura” literária, em Machado e nos jornais fluminenses, ele revela como os livros franceses chegaram e foram aclimatadas no Brasil. Fazer esse movimento é compreender os processos de formação cultural e literária antes dos livros se tornaram edições canônicas.
O nosso caro O Mercantil não estava atrás de outros jornais como o Jornal do Commercio. Salvo com alguns atrasos e interrupções, esse pequeno jornal nos mostra que o processo de recepção de livros franceses dependia apenas do tempo de viagem rumo ao Brasil, período no qual, o romance era traduzido no navio, pronto para circular imediatamente em sua chegada nas livrarias, bibliotecas, gabinetes de leitura e jornais que estavam nesse “afã” pelo alimento da ficção. Para o bem ou para o mal, jornais como O Mercantil cumpriram seu papel em seu devido momento histórico, democratizando o acesso à informação, à cultura e à literatura a partir das suas questionáveis “missões” e “empreendimentos” civilizadores, como publicou Le Siècle em 1º. de julho de 1836, em Paris.
Referências
ALENCAR, José de. Como e porque sou romancista. 2ª ed. São Paulo: Pontes, 2005.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira – Momentos decisivos 1750-1880. 10ª ed. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2006.
CHARLE, Christophe. Le siècle de la presse (1830-1939). Paris: Seuil, 2004.
HEINEBERG, Ilana. La suíte au prochain numéro: Formation du roman-feuilleton brésilien à partir des quotidiens Jornal do Commercio, Diário do Rio de Janeiro et Correio Mercantil (1839-1870). 2004 (Thèse de Doctorat). Université de La Sorbonne Nouvelle – U.F.R. d’Études Ibériques et Latino-Américaines, Paris.
LYONS, Martin. Le Triomphe du Livre: Une histoire sociologique de la lecture dans la France du XIXe siècle. Paris: Promodis, 1987.
MEYER, Marlyse. As mil faces de um herói canalha e outros ensaios. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998.
MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
MOREL, Marco; BARROS, Mariana Monteiro. Palavra, imagem e poder: o surgimento da imprensa no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.