CONSTRUÇÕES IDENTITÁRIAS EM ÚRSULA E UM DEFEITO DE COR – Alana Yasmim dos Santos


CONSTRUÇÕES IDENTITÁRIAS EM ÚRSULA E UM DEFEITO DE COR
 

Alana Yasmim dos Santos

Universidade Federal do Piauí – UFPI

 
 
Resumo: Neste trabalho realizou-se análises acerca das construções identitárias da mulher negra nas obras Úrsula (2004), de Maria Firmina dos Reis, e Um defeito de cor (2013), de Ana Maria Gonçalves. Através da dialogicidade entre as autoras de épocas distintas, buscou-se analisar como foi descrito os processos de construções identitárias das personagens negras escravizadas no Brasil: Susana (Úrsula) e Kehinde/Mahin (Um defeito de cor). Para tanto, foram analisadas passagens e situações narrativas relativas ao lugar de memória como instrumento de construções identitárias e do discurso como espaço interacional no qual o indivíduo se faz sujeito.
 
Abstract: In this essay the building of black women identities is analyzed in the works Úrsula (2004), by Maria Firmina dos Reis, and Um defeito de cor (2013), by Ana Maria Gonçalves. Through the dialogue between these authors from distinct times, an analysis is proposed to explain how the identity of the characters, two black women slaves in Brazil, was built: Susana (in Úrsula) and Kehinde/Mahin (in Um defeito de cor). An analysis of some passages and narrative scenes is presented in relation to memory as a tool for identitary construction and to discourse as an interational space in which the individual becomes a subject.
 
Palavras-chave: Úrsula. Maria Firmina dos Reis. Memória. Construção identitária.
 
Key-words: Úrsula. Maria Firmina dos Reis. Memory. Identity construction.
 
Minicurrículo: Graduanda do curso de Letras-Português pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), participou da Iniciação Científica Voluntária (2014-2015) como integrante do Projeto de Pesquisa Teseu, o labirinto e seu nome, vigente na Universidade Federal do Piauí. Neste projeto de pesquisa, desenvolveu o trabalho Úrsula e Um defeito de cor: prefácios à literatura afroamericana, que deu suporte para a construção deste artigo. Além disso, possui interesse em pesquisas sobre Literatura Fantástica e o Mal na Literatura, tendo desenvolvido o trabalho de conclusão de curso nesta área.
 
 
CONSTRUÇÕES IDENTITÁRIAS EM ÚRSULA E UM DEFEITO DE COR
 
Alana Yasmim dos Santos
 
Universidade Federal do Piauí – UFPI
 
 
INTRODUÇÃO
Neste trabalho, Memória e discurso em Úrsula e Um defeito de cor serão apresentadas as análises acerca das construções identitárias nas obras Úrsula (2004) e Um defeito de cor (2013), a partir das personagens Preta Susana em Úrsula (2004) e Kehinde/Mahin em Um defeito de cor (2013). Essas duas personagens possuem voz para contar a sua própria versão dos fatos históricos, do ponto de vista de quem sofreu com todas as torturas físicas e psicológicas de não se sentir pertencer mais a sua terra e nem mesmo a si, ao serem escravizadas no Brasil.
Segundo Duarte (2010), na historicidade da literatura afro-brasileira muitas vozes foram silenciadas e escritos não publicados, e a pouca divulgação de textos afrodescendentes “[…] impediu que a maranhense Maria Firmina dos Reis viesse a constar dos manuais clássicos de nossa historiografia literária” (DUARTE, 2010, p. 20). Mott (1989), em Escritoras negras: resgatando nossa história, pontua que a recuperação dos escritos de matriz negra feminina é um trabalho de muita dificuldade, devido a pouca preservação desses textos durante a história. Segundo Campos (2008), na literatura brasileira, a mulher negra tem sido representada negativamente a partir da visão dos escritores brancos. Quando não é silenciada e oprimida, a mulher negra é retratada a partir do corpo como objeto de abuso e violência. Além disso, segundo Campos (2008), a mulher negra não é representada como uma heroína ou romântica, e nem são explorados seu sentimento, pensamento e sofrimento como sujeito escravizado. A construção da mulher negra, na literatura brasileira canônica, se resume a uma valorização do corpo como objeto de apropriação, de prazer de outrem.
Nas obras Úrsula (2004) e Um defeito de cor (2013), a mulher negra conta a sua história desde o tempo livre na terra África, a travessia do Atlântico e a vida como vítima da escravização no Brasil. Nessas obras, não há a representação da mulher negra do ponto de vista do sujeito branco, e sim a mulher negra enunciadora, sendo explorados suas vivências, seu sofrimento quanto sujeito exilado e escravizado. Neste trabalho, analisou-se as contruções identitárias de Preta Susana e Kehinde através dos discursos memorialísticos, passagens e situações narrativas relativas ao lugar da memória como instrumento de construções identitárias.
 
DESENVOLVIMENTO
Úrsula (2004) é o primeiro romance abolicionista e primeiro escrito por uma mulher no Brasil, no ano de 1859. Maria Firmina dos Reis foi uma escritora mestiça, maranhense e abolicionista que debateu e refletiu sobre a escravidão no XIX. A pioneira, Maria Firmina dos Reis, publicou o romance Úrsula (2004) dez anos antes do conhecido poema de Castro Alves, “Navio Negreiro”. Há pouco reconhecimento da obra de Maria Firmina dos Reis, devido alguns motivos, como a publicação distante do centro cultural e ser de autoria de uma mulher negra. Além disso, essa obra deu ao negro uma visão diferenciada do que era visto até então na literatura: “a de ser humano privilegiado, portador de sentimentos, memória e alma” (MENDES, 2011, p. 79).
Úrsula (2004) é um expoente do Romantismo e narra o amor entre Tancredo e Úrsula.  O romance possui três personagens negras e escravizadas são elas: Túlio, Preta Susana e Antero. Estas personagens, diferentemente de outras obras da época, possuem voz e podem contar a sua história. Segundo Mendes (2011), Maria Firmina dos Reis “adota posicionamento explicitamente antiescravagista, diferente de Joaquim Manuel de Macedo, em As vítimas algozes; Bernardo Guimarães, em A escrava Isaura” (MENDES, 2011, p. 79).
No capítulo IX de Úrsula (2004), Preta Susana relata a dura travessia no navio negreiro para Túlio. Este capítulo é dedicado a narração de Preta Susana, o que configura uma inovação, pois “até onde se sabe, na literatura, o negro não era concebido como ser humano” (MENDES, 2011, p. 83). Diferentemente de obras que exploraram a mulher negra pelo viés da sexualidade, ou seja, que reduziram a mulher negra à um objeto sexual e de desejo dos homens brancos, Preta Susana é caracterizada como uma mulher idosa, de memórias sofridas e duras por ter sido arrancada do berço-mãe: África. Mendes (2011) aponta Preta Susana como “porta-voz da verdade histórica” (MENDES, 2011, p. 83). Susana fala da sua terra-mãe, a África, baseando seu discurso nas suas memórias e ancestralidade africana. Em Úrsula (2004), o negro passa de objeto a sujeito do discurso, acentuando que:
 
(…) a existência da literatura negra se dá a partir do momento em que o negro deixa de ser somente tema, deixa de ser objeto para uma literatura alheia e passa a criar a sua própria, assumindo o papel de sujeito. Para ela, [Luiza Lobo] essa mudança de posição, de papel, define o surgimento da literatura negra no Brasil. (EVARISTO, 2010, p. 134).
 
A fim de apresentar à Túlio a verdadeira liberdade, Preta Susana, em um discurso memorialístico, conta sua história, desde a sua vida na terra africana, onde “tranquila no seio da felicidade, via despontar o sol rutilante e ardente do meu país” (REIS, 2004, p.115) até a sua vinda para o Brasil, como migrante nu. Segundo Glissant (2005), o migrante nu é o indivíduo transportado à força para um novo continente. Esse indivíduo é retirado de sua nação, de sua família, de sua cultura, de sua língua, e reconstrói-se no novo continente a partir de vestígios da memória a fim de estabelecer aproximação com suas origens identitárias e culturais. O migrante nu “recompõe, através de rastros/resíduos, uma língua e manifestações artísticas” (GLISSANT, 2005, p.19). Esse resgate das antigas tradições, por meio da memória, é uma maneira que o escravizado encontrou para se reterritorializar no Brasil, pois “a lembrança tem sempre uma função de reterritorialização” (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 80). Sendo possível, dessa maneira, reconstruir a cultura africana “que se desteceu pelos caminhos, recolher fragmentos, traços, vestígios, acompanhar pegadas na tentativa de reelaborar, de compor uma cultura de exílio refazendo sua identidade de imigrante nu (EVARISTO, 2010, p. 132).
A desterritorialização, segundo Deleuze e Guattari (1997), é o movimento de saída/abandono de um território e a reterritorialização é o movimento de construção de um território. Sendo assim, os dois processos são indissociáveis, pois “todo movimento de desterritorialização carrega consigo elementos de reterritorialização” (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p.01). A desterritorialização dos africanos trazidos pelo tráfico de escravos para o Brasil possui raízes bem profundas, pois o sujeito negro perdeu o direito a liberdade – sendo transformado em objeto -, perdeu a sua casa, sua família, sua vida, sua cultura e sua língua, sem a chance de retornar para a terra-mãe.
Segundo Schimitt e Turatti (2002), o parentesco e o território constituem a identidade do homem, pois “os indivíduos estão estruturalmente localizados a partir de sua pertença a grupos familiares que se relacionam a lugares dentro de um território maior.” (SCHIMITT e TURATTI, 2002, p. 4). Ao chegarem ao Brasil, os africanos não se reconheciam, não se sentiam pertencidos a essa terra que os acolheu tão cruelmente. Por isso, para combater essa desterritorialização, os negros escravizados foram além da necessidade de um espaço territorial para si, mas buscaram desenvolver uma identidade cultural e simbólica baseada nas heranças africanas, para que recriassem a vida com base no que se identificam e se sentem pertencer.
O teórico Maurice Halbwachs (apud FERREIRA, 2013, p. 19) reflete a memória sob a ótica da sociologia e da história. Memória é construção coletiva, ou seja, o que é lembrado por um indivíduo não é somente uma lembrança dele, mas sim de um meio em que viveu e partilhou com outros indivíduos as mesmas vivências e lembranças. Na literatura afro-brasileira, segundo Evaristo (2008, p. 6), é perceptível “o caráter pessoal e coletivo da memória como possibilitador de construção de uma identidade”.
Logo, através da memória coletiva, há a recuperação/reconstrução de pessoas, sentimentos, sensações, acontecimentos, e, principalmente, da identidade. Em Úrsula (2004), Preta Susana é a voz de uma realidade de abusos e violências do povo africano no Brasil; é a voz da identidade africana sobrevivente na memória dos que sofreram com a diáspora. Sendo assim, segundo Indursky e Campos (2000),
 
(…) a memória é um referencial vivo na construção das identidades, pois, em sua capacidade de filtrar e manter o sentido, atua por meio de seus processos e efeitos, os quais podem ser tanto de lembrança, de redefinição e de transformação quanto de esquecimento, de ruptura e de negação do vivido e do já dito. Se a memória é, portanto, um fator inerente a construção de identidade, o discurso é o espaço de conhecimento e de interação através do qual o ser humano se faz sujeito, inscrevendo-se no campo da prática social, que é eminentemente histórica. (CAMPOS, INDURSKY, 2000, p. 12)
 
A recuperação das memórias é fator fundamental para a recuperação de uma identidade africana na terra de exílio na obra de Maria Firmina dos Reis. A memória é uma maneira de manter viva informações, costumes, tradições, e ao mesmo tempo, as mesmas são atualizadas e reconstruídas durante a história de uma sociedade. As tradições africanas possuem base oral, transmissiva, logo, a memória é fonte de manutenção da identidade do povo africano que foi sequestrado de sua terra, de sua família. Nascimento (2006) confirma que:
 
A memória, faculdade tantas vezes negada aos escravos e seus descendentes (lembremo-nos que eram considerados sem alma, portanto sem humanidade, consequentemente, sem memória – cadeias de subtrações a forjá-los pelo signo da falta), a memória, repetimos, será a mola impulsionadora dos textos das escritoras afro-brasileiras. Recuperação de reminiscências relegadas ao avesso do afresco histórico das representações brasileiras (NASCIMENTO, 2006, p.78).
 
Na obra, Preta Susana resgata lugares de memória para explicar ao jovem Túlio o que é liberdade. O lugar de memória foi um conceito construído pelo historiador francês, Pierre Nora, para definir lugares que possuem uma memória, uma função, um significado simbólico, como museus (lugares topográficos), aniversários (lugares simbólicos) ou autobiografias (lugares funcionais) (LE GOFF, 1990, p. 473). Os lugares de memória presentes no discurso de Preta Susana se referem a um passado repleto de significado e simbologia: é a lembrança de uma felicidade genuína, de um lugar que se sentia pertencer, lugares que dividiu com companheiras, lugares topográficos que guarda na memória quando ia “em busca das mil conchinhas, que bordam as brancas areias daquelas vastas praias” (REIS, 2004, p. 115). Sem esse resgate ancestral através dos lugares de memória, não há a reconstrução identitária da personagem Preta Susana.
O discurso sobre a diáspora e sobre a escravização de Preta Susana procura desmistificar a visão que se tinha de que o negro não possui história, identidade ou cultura, e de romper com a ideia de um negro escravizado passivo. A memória afro-brasileira é uma forma de resistência e sobrevivência do sujeito negro; é fonte de reconstituição identitária. A literatura negra, segundo Bernd (apud FONSECA, 2006, p. 28), seria uma “tentativa de preencher vazios criados pela perda gradativa da identidade determinada pelo longo período em que a ‘cultura negra’ foi considerada fora-da-lei […]”.
A militância contra a estereotipificação do indivíduo negro é um dos motivos que fazem da obra de Maria Firmina dos Reis tão importante na literatura afro-brasileira. A personagem Preta Susana utiliza a memória para reconstruir a sua identidade cultural, que sofreu dolorosas interferências e mudanças durante a travessia, além do sofrimento por não ser mais livre e não estar em sua terra. A mesma militância está presente também na obra contemporânea Um defeito de cor (2013) da escritora Ana Maria Gonçalves.
A história de Um defeito de cor (2013) é construída, segunda a autora, a partir de cartas que encontrou casualmente em uma visita a Ilha de Itaparica. Essas cartas, muitas amareladas, rasuradas e até mesmo perdidas, contavam a história de uma escrava alfabetizada chamada Kehinde (que no Brasil passou a ser chama Luísa Mahin) e que estavam destinadas ao seu filho desaparecido, Luís Gama, que é considerado o fundador da literatura afro-brasileira. Ana Maria Gonçalves tem em mãos a tarefa de reescrever essas cartas e completar os espaços vazios que existem nesta história, sendo possível recontar a história do negro escravizado no Brasil, a partir da vida de Kehinde. Apresentar a obra como consequência de uma descoberta acidental é apontado por Zilá Bernd (2012) como um artifício literário já utilizado por outros autores, como J.J. Rousseau e C. De Laclos, pois isto confere a obra um poder enunciativo à protagonista.
Segundo Bernd (2012), “é a partir de vestígios (traces), de cartas consideradas sem nenhum valor e semidestruídas, que a narrativa constitui importantes acontecimentos ocorridos na Bahia, como a Revolta dos Malês (1835)” (BERND, 2012, p. 31). A noção de traces de Derrida (1967) resulta que “a origem nos movimentos de desconstrução implica uma não-origem, um vestígio, um rastro (trace) antes de outro suposto vestígio” (DEANGELI, 2008, p. 176). Sendo assim, o rastro é renovado constantemente, ao longo de novas experiências, sendo impossível encontrar uma origem definitiva.
Segundo Bernd (2014, p. 18 apud Viart, 2008, p. 79-101), o romance francês atual têm se preocupado com a temática ancestral resultando em um romance memorial, o qual Viart (2008) denomina romance de filiação. Esse romance “articula-se a partir de vestígios (objetos da casa paterna, cartas, fotos) ou da falta (pais ausentes, transmissão imperfeita).” (BERND, 2014, p. 19). Kehinde constrói sua trajetória pessoal e histórica a partir das suas vivências, das suas lembranças, e ao transformar essa memória em texto escrito, põe no papel o desejo de contar ao filho sobre suas origens, ou seja, transmitir a herança africana ancestral, e ao relembrar sua história reconstitui sua identidade africana, pois como bem salientou Bosi (1994) a memória é um trabalho de reconstrução.
Em Um defeito de cor (2013), a personagem Kehinde faz três travessias pelo Atlântico. Na primeira travessia, há a desterritorialização de Kehinde, que é obrigada a aprender a língua portuguesa e passa a ter um novo nome (Luísa Mahin). Usurpado o direito de viver livre em sua terra, Kehinde juntamente com sua irmã gêmea e avó são trancafiadas em um navio negreiro, conhecido também como tumbeiro. A protagonista descreve de maneira realista e sofrida a vivência dentro do navio, descreve a partir da visão de quem sofreu a violência do tráfico:
Durante dois ou três dias, não dava para saber ao certo, a portinhola no teto não foi aberta, ninguém desceu ao porão e estava quase impossível respirar. Algumas pessoas se queixavam de falta de ar e do calor, mas o que realmente incomodava era o cheiro de urina e de fezes (GONÇALVES, 2013, p. 48).
 
Após o falecimento da avó, Kehinde passa a refletir sobre a morte, o futuro incerto na terra hostil e a dor de se estar longe de casa, longe do conhecido, do familiar: “Não estava mais na minha terra, não tinha mais a minha família, estava indo para um lugar que não conhecia (…)” (GONÇALVES, 2013, p. 61). Também no primeiro capítulo da narrativa memorial de Kehinde, ela relembra com ternura lugares de memórias de sua infância, momentos de danças que compartilhou com sua mãe e irmã gêmea e que compõem uma identidade cultural ancestral do povo africano: “Ela dançava e as pessoas colavam cauris em sua testa, e quando eu e a Taiwo éramos pequenas, colavam ainda mais, pois a minha mãe dançava com nós duas amarradas ao corpo” (GONÇALVES, 2013. p. 21).
Bernd (2012) observa que o romance possui três características que também estão presentes no fazer poético da escrita feminina contemporânea na literatura afro-brasileira: a primeira delas é a de procurar os “guardados da memória” (BERND, 2012, p. 31), por meio dos traços e fragmentos deixados pela herança ancestral; a segunda é que a construção identitária se baseia na procura das origens, e a terceira seria o “resgate da memória transatlântica” (BERND, 2012, p. 31). A respeito da memória, há a presença da memória histórica, que é o resgate da história do negro no Brasil, e a memória familiar, ou seja, as sabedorias, ensinamentos que o negro africano adquiriu com sua família em terra africana. A crença nos orixás africanos e a lembrança viva de sua família (principalmente mãe, irmã e avó), que estão enraizadas na memória, são o que fazem Kehinde suportar as dores, as violências e os abusos da escravização. Além disso, Kehinde carrega consigo a força ancestral de sua avó:
 
Então, mesmo que não fosse através dos voduns, ela (a avó) me disse para eu nunca esquecer da nossa África, da nossa mãe, de Nanã, de Xangô, dos Ibêjis, de Oxum, do poder dos pássaros e das plantas, da obediência e respeito aos mais velhos, do culto e agradecimentos. (GONÇALVES, 2013, p. 61).
 
Essas lembranças que se ligam a rituais, elementos ritualísticos, comemorações, bem como ensinamentos que são transmitidos, fazem parte de uma memória cultural ou transmissão do sentido, que compõem, juntamente com a memória mimética, memória dos objetos e memória comunicacional as quatro dimensões da memória externa, segundo Assmann (apud BERND, 2014, p. 16). Ao chegar ao Brasil, Kehinde inicia um processo de reterritorialização, com os escravizados que passa a ter contato e que serão sua nova família. A fim de reconstituir os tecidos da memória ancestral, Kehinde encontra no terreiro da Casa de Minas uma forma de relembrar as tradições e rituais africanos, que por muito tempo foram silenciados e oprimidos pela imposição da religião católica. Relembrar esses rituais, essa memória cultural, é uma maneira de construção identitária da personagem Kehinde, tornar a se ligar aos ensinamentos da avó, tornar vivo os rastros da memória.
O resgate memorialístico de Kehinde formam a dupla reconstruir e transmitir, pois  sem a memória ancestral não é possível a reconstrução identitária (BERND, 2014, p. 21) e sem a transmissão de geração para geração dessas tradições e vivências não há a memória cultural (HUYSSEN, apud BERND, 2014, p. 16). Assim como em Úrsula (2004), Kehinde representa o indivíduo africano que foi “tirado à força, de forma brutal e bestial, de sua terra natal, foi animalizado e classificado como objeto, coisa (…)” (Mendes, 2006, p.169). As duas personagens utilizam a memória como um instrumento de resgate e aproximação da herança cultural africana.
O discurso memorialístico de Kehinde, que escreveu a história da sua vida aos 80 anos de idade, traz toda a dor do negro escravizado e o sentimento de não ser livre e de não pertencer a nenhum lugar. Assim como Preta Susana, o discurso versa sobre o sonho de voltar para a liberdade que um dia conhecera. O Oceano Atlântico separava o indivíduo africano da verdadeira liberdade. São denominadas memórias transatlânticas aquelas que no mar originam o chamado Atlântico Negro, que é uma “estrutura rizomórfica e fractal da formação transcultural e internacional” (GILROY, apud BERND, 2012, p.35). Em Um defeito de cor (2013), há passagens do livro que fazem os descendentes dos ex-escravizados sentirem orgulho, como as formas de resistências, como a descrição da formação dos quilombos, a preservação da cultural oral, mas também traz momentos que deveriam ser esquecidos, como os castigos, os abusos sexuais e a privação da liberdade (BERND, 2012).
 
CONCLUSÃO
 
Úrsula (2004) e Um defeito de cor (2013) evidenciam a identidade afro-brasileira e a construção identitária do indivíduo negro através do discurso das personagens. Em Úrsula (2004), Preta Susana é a enunciadora do seu próprio discurso e narra a sua vida na terra livre, a África, para Túlio, que, segundo ela, não conheceu a verdadeira liberdade. O discurso de Preta Susana é forte e libertador, pois evidencia que, mesmo tendo uma alforria em mãos, Túlio jamais seria livre, pois só há liberdade quando se está em sua terra, com sua cultura, com sua história.
Em Um defeito de cor (2013), Kehinde é arrancada da terra África com sua irmã gêmea e avó. As duas morrem no tumbeiro, devido às más condições durante a viagem. Ao chegar ao Brasil, Kehinde não é mais a mesma, o cruel processo de desterritorialização faz com que ela busque na memória lembranças da África, dos momentos bons em que estava livre com sua mãe, avó, irmã. A partir da memória, Kehinde consegue aos poucos tecer sua identidade cultural africana em um processo de reterritorialização.
Nos dois discursos, de Preta Susana e Kehinde, é perceptível a função da memória como resgate da identidade afrodescendente. Durante a diáspora, o negro africano sofreu duras interferências em sua identidade, tanto na travessia, dentro do navio, como no Brasil, onde foi subjugado ao sistema cruel da escravização. Nas duas obras, a memória é um instrumento de reterritorialização do sujeito africano, através de readaptações e resgates da cultura de matriz africana.
 
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
 
BERND, Zilá. Em busca dos rastros perdidos da memória ancestral: um estudo de Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves. Estud. Lit. Bras. Contemp. , no. 40, Brasília jul./dez. 2012: p. 29-42.
BERND, Zilá. Romance Memorial (ou familiar) e memória cultural: a necessidade de transmitir em Um defeito de cor de Ana Maria Gonçalves. Organon, Porto Alegre, v. 29, no. 57, jul/dez. 2014:  p. 15-27.
CAMPOS, Maria do Carmo. INDURSKY, Freda (Org.). Discurso, memória, identidade. Porto Alegre: Sagra-Luzzato, 2000, p. 12.
CAMPOS, Maria Consuelo Cunha. Representações da mulher negra na literatura brasileira. Rio de Janeiro:  UERJ/PEN, 2008.
DELEUZE, G. e GUATTAR. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. v. 4. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997.
DUARTE, E. A. Literatura e afrodescendência. In: Edimilson de Almeida Pereira (Org.). Um tigre na floresta de signos: estudos sobre poesia e demandas sociais no Brasil. 1ª ed. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2010.
DUARTE, E. A. Escrevivências da afro-brasilidade: história e memória. In: Revista releitura. Belo Horizonte: Fundação Cultura, Prefeitura, 2008.
DUARTE, E. A. Literatura negra: uma voz quilombola na literatura brasileira. In: PEREIRA, Edimilson de Almeida (org.). Um tigre na floresta de signos: estudos sobre poesia e demandas sociais no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2010.
FERREIRA, Amanda Crispim. Escrevivências, as lembranças afrofemininas como um lugar da memória afro-brasileira: Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo e Geni Guimarães. Minas Gerais: UFMG, 2013.
FONSECA, Maria Nazareth Soares. Literatura negra, Literatura afro-brasileira: como responder a polêmica? In: Literatura Afro-brasileira. Org. Forentina Souza. Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006. p. 11-38.
GLISSANT, Édouard. Introdução à uma poética da diversidade. Juiz de fora: Editora UFJF, 2005.
GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de Cor. 9ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2013.
LE GOFF, Jacques. Memória. In: Memória e História. Campinas: Unicamp, 1990. p. 423- 483.
MENDES, Algemira Macêdo. O discurso antiescravagista em Úrsula, de Maria Firmina dos Reis. Revista Cerrados (Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília), v .20, n.31, 2011, p. 75-92.
MENDES, Algemira Macêdo, Maria Firmina dos Reis e Amélia Beviláqua na história da Literatura Brasileira: representação, imagens e memórias nos séculos XIX e XX. Tese de doutoramento em Letras. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2006.
MOTT, Maria Lúcia de B. Escritoras negras: resgatando nossa história. Rio de Janeiro: UFRJ/CIEC, 1989
NASCIMENTO, Gizêlda Melo do. Feitio de viver: memórias de descendentes de escravos. Londrina: Eduel, 2006.
REIS, Maria Firmina dos. Úrsula. Florianópolis: Editora Mulheres; Belo Horizonte: PUC Minas, 2004.
SCHIMITT, A.; TURATTI, M.C. A atualização do conceito de quilombo: identidade e território nas definições teóricas. Ambiente & sociedade, ano V, n.10, 2002, p. 4.