CONSTRUÇÃO COMPLEXA DA IDENTIDADE INDIVIDUAL EM MEIO Á ESFERA SOCIAL – ANNE FRANK COMO EXEMPLO – Juliane Della Méa


CONSTRUÇÃO COMPLEXA DA IDENTIDADE INDIVIDUAL EM MEIO Á ESFERA SOCIAL – ANNE FRANK COMO EXEMPLO
 
Juliane Della Méa
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI – Campus de Frederico Westphalen
 
 
RESUMO: O artigo propõe analisar a narrativa ou discurso vinculado pelo filme Escritores da liberdade (EUA, XXX), dentro da temática do reconhecimento e aceitação da identidade e da diferença, através do diálogo entre gerações e socialização entre as diversidades sociais, culturais, religiosas e econômicas. Por ter como aporte obra bibliográfica O diário de Anne Frank (publicado em 1947), memórias de uma garota judia perseguida durante a Segunda Guerra Mundial, o filme identifica a luta de uma professora para decompor teorias curriculares envolvidas na prática docente, a partir das categorias: função da escola, conhecimentos, relação de poder, organização curricular, postura professor/aluno, espaço físico, dentre outras. Assim, reflete sobre questões sociais de liberdade presentes no âmbito educacional, e, portanto, parte da complexidade da identidade criada através da diferença.
 
Palavras-chave: Identidade. Educação. Análise fílmica.
 
ABSTRACT: This article analyzes the narrative or discourse employed in the film Writers of Freedom (USA, XXX), which sets it in the context of the subject of knowledge and acceptance of identity and difference. It shows that these are acquired through the dialogue between generations and the socialization among the several existing social, cultural, religious and economic diversities. Having as departing point the book The Journal of Anne Frank, the memories of a girl written during World War II and published in 1947, the film draws a comparison of its theme with the fight of a teacher to contest some curricular theories that rule the practical work of a teacher, according to the following categories: the function of school, the question of knowledge, power relations, curricular organization, the relationship teacher/pupil, the physical space of school, among others. Therefore, the film discusses questions related to freedom that are relevant in the realm of schooling and education, and reflects on the complexity of identity that is created through the notion of difference.
 
Keywords: Identity. Education. Film analysis.
 
Minicurrículo: Graduada em Letras Espanhol pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI – Campus de Frederico Westphalen. Professora da rede pública e privada do Estado do Rio Grande do Sul. Especialista em Gestão Estratégica de Pessoas. Especialista em Literatura Brasileira.  Mestranda do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Letras pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI – Campus de Frederico Westphalen.
 
 
CONSTRUÇÃO COMPLEXA DA IDENTIDADE INDIVIDUAL EM MEIO Á ESFERA SOCIAL –
ANNE FRANK COMO EXEMPLO
 
Juliane Della Méa
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI – Campus de Frederico Westphalen
 
 
INTRODUÇÃO
A busca da identidade é um tema de ordem e fator social, cultural e coletivo que envolve identificações externas em um confronto de si com o outro para que a pessoa se reconheça como sujeito uno, desestabilizando quadros de referência que oferecem aos indivíduos um lugar estável e definido em seu meio social. Consequentemente, ocorre um choque entre as representações socialmente definidas e a identificação pessoal do sujeito, o qual é diretamente ligado às alterações sociais e culturais, que provocam seu deslocamento individual.
A fase pueril, dentre as demais na evolução humana, é a mais atingida, pois a criança está mais suscetível às transformações que afetarão a construção e a definição da sua identidade. Essa etapa se concretiza, ao longo da vivência, como uma criação social sensível a mudanças, sempre que a sociedade sofra transformações estruturais amplas, tendo suas definições alteradas. A ideia de infância, surgida apenas por volta dos séculos XVI e XVII, não é a mesma dos dias atuais.
Na Idade Média, segundo Philippe Ariès (2006, p. 99):
 
“(…) o sentimento de infância não existia, (…) assim que a criança tinha condições de viver sem a solicitude constante da sua mãe ou de sua ama, ela ingressava na sociedade dos adultos e não se distinguia mais destes” (ARIÈS, 2006, p. 9).
 
À medida que a sociedade cresceu economicamente, a distinção entre adulto e criança surgiu, marcada por vários acontecimentos: o modo de se vestir, a linguagem, a personalização do nome como identidade própria, a expansão da escolaridade, o surgimento da própria literatura e também o modelo de família moderno, a qual foi encarregada de novas funções educacionais e religiosas. Esses fatores criaram uma nova classe social: a infância, detentora de suas características próprias.
Mesmo com toda a evolução social, na contemporaneidade, ainda ocorre a invisibilidade da infância, quando esta se torna projeção de expectativas dos pais, e a criança é vista como incapaz de agir por si própria em um mundo cercado de obstáculos. Sem participação social efetiva, sob o argumento de que a criança necessita de proteção, a velha teoria paternalista é enfatizada, e as crianças passam a ser vistas como seres humanos em miniatura desprovidos de especificidade própria e originalidade.
A aproximação entre o mundo adulto e o mundo infantil é resultado da realidade pós-moderna, na qual vivemos atualmente, como afirmam Steinberg e Kincheloe:
 
Esta nova realidade brinda os adultos com um problema complexo que poderia ser chamado “O dilema da infância pós-moderna.” O acesso das crianças contemporâneas à cultura infantil comercial e à cultura popular não apenas motivou a se tornarem consumidoras hedonistas, mas também lhes minou a inocência (Steinberg e Kincheloe, 2001, p. 33).
 
 
A concepção de infância, para os teóricos citados, é uma criação da sociedade, e está sujeita a mudar sempre que houver transformações sociais e econômicas. Perante essas circunstâncias, a criança busca a definição de sua identidade: ora é parte do universo adulto e autossuficiente, ora é frágil e dependente desse mundo. O jeito de ser infantil, que busca na fantasia e na imaginação a invenção de si, encontra pouco reconhecimento no mundo amadurecido que instiga precocemente a adultização, através da mídia que a bombardeia com publicidades para gerar um consumo desenfreado de bens supérfluos como forma de obtenção de prazer, da cauterização da objetividade, da reprodução de certos conceitos e valores.
A família é a primeira instituição para a qual a criança se reporta, e cabe a ela edificar a responsabilidade sobre a criança como indivíduo autônomo e crítico, buscando estruturar sua adaptação no mundo. Também nesse meio a criança perde suas possibilidades de ser infante quando recebe as projeções dos adultos, que se encontram nos seus anseios e frustrações.
Com menção ao relato de uma garota – O diário de Anne Frank (1947) – que, refugiada durante parte da Segunda Guerra Mundial, num sótão, com a família, por ser judia, demonstra orgulho de sua origem e coragem para seguir enfrentando os desafios impostos pela vida, até serem descobertos. O filme Escritores da liberdade (EUA, XXX), que também existe em forma de livro (EUA, 1999), é uma produção cinematográfica que apresenta as contradições da sociedade contemporânea através da vida da professora Erin Gruwell (Hillary Swank) e sua luta por uma educação mais justa em meio ao caos das relações sociais e humanas, a submissão destas ao capital, as semelhanças e resultados de um sistema educacional ultrapassado com o poder real sobre o desenvolvimento dos alunos e, logo, da sociedade.
A história se passa por volta de 1992, em Los Angeles, em um contexto de guerra urbana nos bairros de periferia, causado por gangues e motivado por tensões raciais, que definiam grupos isolados. A escola é conhecida por ser um local de intolerância, de violência e de diversidade de coligações juvenis que resistem ao ensino tradicional vigente. Estruturalmente, o referido filme se divide em três momentos básicos: o primeiro momento mostra a alegria de Erin Gruwell em poder se dedicar à atividade de docência, após ter estudado e se especializado para ministrar aulas de Literatura, que era um de seus sonhos, sua identidade idealizada, exposta no contexto real. O segundo momento destaca todas as frustrações e desafios pelos quais ela passa na tentativa de realizar um trabalho docente significativo, sua identidade sendo modificada pelo meio e pela identidade dos alunos quando se encontravam, formando seus princípios, valores e diferenças. O terceiro momento enfatiza as conquistas alcançadas com a turma, os alvitres conquistados, diante do seu esforço, os benefícios partilhados quando se respeita e se é respeitado dentro de suas limitações e opiniões, religiões e origens, culturas e credos, onde seu significante maior é a palavra  conviver (viver com) o outro), “Quando eu os ajudo a darem sentido a suas vidas, tudo na minha se completa. Quantas vezes se consegue isto?” (Professora Erin Gruwell).
Perfazendo o papel de mediadora, a professora se completa, transfere as conquistas dos seus alunos para si, como complemento e avaliação de sua própria vivência, realçando a importância e nobreza da profissão do educador para com a formação da sociedade em geral, fazendo os incrédulos aceitarem e confiarem em que mudanças são possíveis quando concebidas com delicadeza, reflexão, respeito e amor.
Outro aspecto a ser salientado é que, por meio deste processo educacional (fixação da própria identidade), os educandos passam a serem construtores de conhecimentos e de sua própria história, capazes de realizar as modificações que lhe são possíveis, escolhendo a direção que cada indivíduo quer dar a sua vida.
As produções literárias dos alunos reais resultaram em um livro – O diário dos escritores da liberdade – lançado em 1999, nos Estados Unidos.
 
COMPLEXIDADE DA IDENTIDADE x EDUÇÃO E LIBERDADE
Com o passar dos tempos é sensato propor a construção e a contribuição de novos aspectos culturais e históricos dentro do meio social em que estamos inseridos. Também é comum a percepção de que os jovens constituem uma geração na medida em que vivem em determinado tempo cronológico, se diferenciando dos demais. A cultura entre os homens se transmite de uma geração a outra pela educação, ou seja, todo contato humano é educativo, se promove o bem e a integração; e é (des)educativo se dele resultam o mal e a desintegração. A educação dissemina a cultura, porém esta vai sofrendo adaptações e mudanças através dos tempos, resultando em conflitos entre as gerações. Certamente que “sobreviventes” dos anos 1970 e 1980, quando, nos Estados Unidos, os automóveis vinham sem cadeirinhas de segurança, a água nem sempre era filtrada, as casas ficavam destrancadas e as crianças iam para a escola sozinhas, não têm os mesmos pensamentos e opiniões dos nascidos no século XXI. No entanto, se valores morais como respeito, prudência, paciência, pontualidade foram repassados, estarão presentes nesta nova geração, o que  não evitará divergência de opiniões, mas estas serão encaradas  com facilidade. Porém, se o meio não proporcionar esperança de melhoria, de aperfeiçoamento, de crescimento, esses valores serão considerados descartáveis.
A afirmação da identidade e a marcação da diferença implicam, sempre, as operações de incluir e de excluir. Dizer “o que somos” significa também dizer “o que não somos”. A identidade e a diferença se traduzem, assim, em declarações sobre quem pertence a um grupo e quem não pertence a ele, portanto sobre quem está incluído e quem está excluído. Afirmar a identidade significa demarcar fronteiras, significa fazer distinções entre o que fica dentro e o que fica fora. A identidade está sempre ligada a uma forte separação “nós” e “eles”. Essa demarcação de fronteiras, essa separação e distinção, supõem e, ao mesmo tempo, afirmam e reafirmam relações de poder.
O processo de classificação é central na vida social, o maior, o menor; o educado, o irreverente; o sábio e o ingênuo. Ele pode ser entendido como um ato de significação pelo qual dividimos e ordenamos o mundo social em grupos e em classes econômicas. A identidade e a diferença estão estreitamente relacionadas às formas pelas quais a sociedade produz e utiliza classificações – dividir e classificar significa, neste caso, também hierarquizar; fato apresentado no filme através da divisão das turmas.
Bem como a definição da identidade depende da diferença, seja essa de ordem econômica, ética, cultural, a definição do normal depende da definição do anormal. Aquilo que é deixado de fora é sempre parte da definição e da constituição do “dentro”. A definição daquilo que é considerado aceitável, desejável, natural é inteiramente dependente da definição daquilo que é considerado abjeto, rejeitável, antinatural. A identidade hegemônica é permanentemente assombrada pelo seu “outro”, sem cuja existência ela não faria sentido.
Desta forma, o processo de produção da identidade oscila entre dois movimentos: de um lado, estão aqueles procedimentos que tendem a fixar e a estabilizar a identidade; de outro, os métodos que tendem a subvertê-la e a desestabilizá-la. Processo semelhante ao que ocorre dentro da escola, quando a hierarquia da direção, nos Estados Unidos, dividindo as turmas pelo poder aquisitivo, rendimento escolar e nacionalidade, faz prevalecer esses valores como mecanismos de ordem social natural e adequada.
Conceber a separação conveniente ao meio – e, por extensão, ao sistema de significação governamental como uma estrutura estável e determinada, desenvolvendo-a, é representar um sistema que negligencia a formação social do cidadão. A identidade e a diferença são estreitamente dependentes da representação, e é por meio desta que se concebe, se compreende e se diferencia, adquirindo sentido. É através das diferenças instauradas que se torna possível pensar na produção de novas e renovadas identidades.
Nessa perspectiva, iniciamos a reflexão complexa e abrangente sobre a identidade individual, visto que a mesma não é homogênea, definitiva e acabada. Ela está diretamente ligada ao outro, ao sistema e ao poder.
Ao analisar o objeto midiático – filme – constata-se, num primeiro momento, que o “outro” já está com um “pré-conceito” formado, ao abordar a turma que é concedida à professora Gruwell para a prática pedagógica que segundo a escola é a pior turma existente, pois a própria instituição educadora que deveria ter a obrigação de proporcionar a inclusão social de forma igualitária, aplica o método de seleção, onde se dividem as turmas entre os melhores e os piores alunos. Isso faz, nos Estados Unidos, com que os latinos, os cambojanos e os negros entrem em conflito cultural constante com os brancos, uma vez que, a instrução incutida na identidade de sobrevivência dos alunos requer o afastamento e discriminação entre si.
De maneira geral a professora não se foca em nenhuma etnia especialmente, mas procura mostrar que todos, ao mesmo tempo em que são diferentes, com culturas diferentes, são iguais como vitimas dos preconceitos, intolerância ou da violência das gangues. Teríamos aqui uma espécie de crise, segundo Arendt:
 
Uma crise só se torna um desastre quando respondemos a ela com juízos pré-formados. Uma atitude (como essa) não apenas aguça a crise como nos priva da experiência da realidade e da oportunidade por ela proporcionada à reflexão (2003, p. 25).
 
 
Essa divisão característica da metodologia tradicional e do preconceito vem ao encontro do tradicionalismo exercido na educação da época. Se a professora agisse de forma tradicional como a relação que era apresentada pela escola para com os alunos, contribuiria para o colapso educacional. Porém, a diferença está justamente na prática docente exercida pela professora Gruwell, incutida dos saberes da teoria crítica curricular e aplicada no cotidiano da sala de aula. Mesmo sem o aval da direção, ela busca a emancipação dos seus educandos, como indivíduos críticos, respeitando os saberes pré-existentes de cada indivíduo. Visível na cena em que ela ensina poesia e o conceito de rima interna com uma música de rap, gênero musical apreciado pelos jovens da turma, mostrando, assim, que todos gostam das mesmas músicas, possuem os mesmos discos e enfrentam diariamente os mesmos problemas, independente da sua raça.
É precisamente essa noção que está no centro da conceituação linguística de diferença – a identidade e a diferença têm que ser nomeadas. É apenas por meio de atos de fala que instituímos a identidade e a diferença como tais, pois as mesmas são ativamente produzidas, elas não são criaturas do mundo natural ou de um mundo transcendental, mas do mundo cultural e social, somos nós que as fabricamos, nesses contextos. Dizer isso não significa, entretanto, dizer que elas são determinadas pelos sistemas discursivos e simbólicos que lhes dão definição. Ocorre que a linguagem, entendida aqui de forma mais geral como sistema de significação, é, ela própria, uma estrutura instável, e é precisamente isto que teóricos pós-estruturalistas como Jacques Derrida vêm tentando dizer nos últimos anos.
Essa indeterminação da linguagem decorre de uma característica fundamental do signo. O signo é um sinal, uma marca, um traço que está no lugar de outra coisa, a qual pode ser um objeto concreto, um conceito ligado a um objeto concreto ou um conceito abstrato; ele não coincide com a coisa ou com o conceito. Na linguagem filosófica de Derrida, poderíamos dizer que o signo não é uma presença, ou seja, a coisa ou o conceito não estão presentes no signo, mas a natureza da linguagem é tal que não podemos deixar de ter a ilusão de ver o signo como uma presença, isto é, de ver no signo a presença do referente ou do conceito, e é a isso que Derrida chama de “metafísica da presença”. Essa “ilusão” é necessária para que o signo funcione como tal: afinal, o signo está no lugar de alguma outra coisa. Embora nunca plenamente realizada, a promessa da presença é parte integrante da ideia de signo. Em outras palavras, podemos dizer, com Derrida, que a plena presença (da “coisa”’, do conceito) no signo é indefinidamente adiada. É também a impossibilidade dessa presença que obriga o signo a depender de um processo de diferenciação, de diferença. O autor acrescenta a isso, entretanto, a possibilidade do traço: o signo carrega sempre não apenas o traço daquilo que ele substitui, mas também o traço daquilo que ele não é, ou seja, precisamente da diferença. Isso significa que nenhum signo pode ser simplesmente reduzido a si mesmo – à identidade.
Em suma, a identidade e a diferença são tão indeterminadas e instáveis quanto à linguagem da qual dependem: o poder de definir. A identidade e a diferença são o resultado de um processo de produção simbólica e discursiva. A identidade, tal como a diferença, é uma relação social, isso significa que sua definição – discursiva e linguística – está sujeita a vetores de força, a relações de poder. Elas não são simplesmente definidas; elas são impostas, não convivem harmoniosamente, lado a lado, em um campo sem hierarquias; elas são disputadas.
Apesar de o sistema da época ser marcado pelo regime de poder dominante europeu, com seu currículo rígido e inabalável, no qual a ordem, a relação de autoridade, a submissão, a burocracia e, principalmente, a impessoalidade levam as pessoas a desconsiderarem os jovens nas suas características individuais, ao seguirem estereótipos. No filme Escritores da liberdade, estes alunos questionam exatamente isto, o “porque” de estarem estudando aquilo, para que serve e chegam a afirmar que nada daquilo irá mudar a vida de qualquer um deles ali. O aluno é alienado por a escola impedir a espontaneidade no pensar e no modo de lidar com as coisas desses educandos. O filme destaca a flexibilidade da professora Gruwell ao ministrar suas aulas, tornando-as atraentes, participativas e construtivas dentro de suas habilidades específicas (literatura, leitura e escrita), internalizadas dentro da identidade individual de cada aluno, tornando-o um ser pensante, investigativo, curioso e protagonista de sua própria história. Nessa ótica, todo e qualquer sistema se submete à avaliação alheia e restrita de caráter individual e social, enquanto práticas inovadoras e adequadas recuperam o homem integralmente – razão e sentimento, conhecimento e emoção.
Sem esquecer que a instituição escolar é política e faz parte de um segmento do sistema de poder, esses poderes dentro da escola são hierárquicos – dentro da sala de aula o professor é detentor do domínio supremo. Possuidora de uma clientela peculiar, a professora do filme analisado em momento algum demonstra autoridade; ao contrário, através da reflexão, a educadora se mostra construtivista na relação professor e aluno, aberta ao ponto de vista dos mesmos, propiciando uma troca de saberes e análises conjuntas, criando desta forma uma relação horizontal que mostra uma docente empenhada na prática transformadora, que busca desmistificar e questionar, junto com os alunos, sempre orientando na busca do conhecimento, sem esquecer-se de estreitar vínculos afetivos em meio a tamanho caos.
Segundo Silva:
 
(…) pedagogia significa precisamente diferença: educar significa introduzir a cunha da diferença (…). É nessa  possibilidade de abertura para um outro mundo que podemos pensar na pedagogia como diferença (2000, p. 65).
 
 
Este conceito vem afirmar que a instituição escolar é um lugar político e, como tal, rege e é regida por relações de poder. Em outras palavras, a linguagem, as táticas de organização e de classificação, os distintos procedimentos das disciplinas escolares são, todos, campos de um exercício desigual de poder. O currículo, os regulamentos, os instrumentos de avaliação e o ordenamento dividem, hierarquizam, subordinam, legitimam ou desqualificam as pessoas. A meta não é “moldar” os estudantes para que sejam todos desse jeito e não de outro, e sim acolher as diferenças, as diversidades de identidades. Ver e entender o outro como outro, conservando o que lhe é próprio, a sua diferença: o outro é o outro gênero, a outra cor, outra sexualidade, outra raça, outra região, outra nacionalidade, outra religiosidade, o outro corpo… A escola como lugar legítimo de ensino deve procurar estabelecer um currículo que trabalhe essas identidades – construindo um currículo pluri e multicultural, que permita o enriquecimento de saberes.
 
A ESCOLA E SEU REAL PAPEL SOCIAL
Na concepção teórica de Tomaz Tadeu Silva, a diferença é a marca para o reconhecimento  de uma identidade e esta é tanto simbólica quanto social. Um grupo social, cultural, ético, político… apenas existe porque ele é “diferente” em relação aos demais. No entanto, é um tanto frustrante admitir a exclusão para nos “firmarmos” em uma única identidade excluindo elementos de outra. Por conta da globalização, muitas vezes, os valores e culturas se perdem em meio à imensa ânsia do imediatismo em ser ou permanecer a um estereótipo criado e ou idealizado por determinado grupo social (crise de identidade).
Parece difícil que uma perspectiva que se limita a proclamar a existência da diversidade possa servir de base para uma pedagogia que coloque no seu centro a crítica política da identidade e da diferença. Na perspectiva da diversidade, a diferença e a identidade tendem a ser naturalistas, são aceitas como dados ou fatos da vida social diante dos quais se deve tomar posição. Em geral, a posição socialmente aceita e pedagogicamente recomendada é de respeito e tolerância para com a diversidade e a diferença. Segundo José Luis Pardo, “respeitar a diferença não pode significar deixar que o outro seja como eu sou ou deixar que o outro seja diferente de mim tal como sou diferente (do outro), mas deixar que o outro seja como eu não sou, deixar que ele seja esse outro que não pode ser eu…”. Ou se pode reformular as palavras de Maurice Blanchot, quando falamos de pedagogia como diferença e identidade – saber acolher o outro, com sua diferença, conservando sua afirmação própria.
As afirmações sobre diferença também dependem de uma cadeia, em geral oculta, de declarações negativas sobre identidades. Assim como a identidade depende da diferença, a diferença depende da identidade. Identidade e diferença são, pois, inseparáveis. Em geral, consideramos a diferença como um produto derivado da identidade. Nesta perspectiva, a identidade é a referência, é o ponto original relativamente ao qual se define a diferença. Isto reflete a tendência a tomar aquilo que somos como sendo a norma pela qual descrevemos ou avaliamos aquilo que não somos. Por sua vez, na perspectiva desenvolvida, identidade e diferença são vistas como mutuamente determinadas, numa visão mais radical. Entretanto, seria possível dizer que a diferença vem em primeiro lugar. Para isso seria preciso considerar a diferença não simplesmente como resultado de um processo, mas como o processo mesmo pelo qual tanto a identidade quanto a diferença (compreendida, aqui, como resultado) são produzidas.
Esse aspecto é explicitado no filme, apesar das dificuldades encontradas pela professora Gruwell, que não desiste e se desdobra para alcançar seus objetivos de transformação positiva em seus alunos, mesmo tendo diante de seus olhos o mundo violento. Assim, ela abre portas para a imaginação e criação próprias de oportunidades onde jamais se acreditaria existir.
Ensinar, ou melhor, suscitar a aprendizagem é uma tarefa bastante sutil. Envolve muita sensibilidade para consigo e com o outro, a busca da percepção consciente das dinâmicas da relação e a permissão interna para se relacionar. Relacionar-se com outra pessoa implica entrar em acordos, conflitos, impasses, identificações e ter a vivência de diversas emoções prazerosas, (des)prazerosas e angustiantes, mas, com a possibilidade da realização de um encontro muito maior consigo e com o outro, favorecendo, assim, o auto e o heteroconhecimento. Assim fez Erin, que passou a ver seus alunos com seu próprio olhar, como jovens capazes que precisavam de credibilidade e desafios e não como meras estatísticas. Ela permitiu que a identidade de cada um fosse desenvolvida e ampliada, sem receio, firmando-a dentro do contexto social vivenciado.
Com a identidade restabelecida, a metodologia do “aprender fazendo” promove um sentido de significado ao fato (passeios de estudos, realizados pela turma), de maneira que o educando possa introduzi-lo em seu modo de ser e viver. Esse ambiente desafiador provoca o desequilíbrio, para só depois, então, se dar o autoconhecimento.
É apenas dessa forma que a escola pode contribuir para o social, quando coloca seu aluno como centro do processo e pronto para conduzir para novas experiências, onde é responsável pela autorrealização das mesmas, proporcionando uma construção saudável de cidadania.
 
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A formação de um sujeito ativo e atuante, que luta pelos seus ideais e busca uma formação melhor dentro da sociedade, a partir da teoria critica, está diretamente vinculada à escola. Esta é o local que leva o aluno a refletir sobre a diversidade cultural, promovendo o respeito mútuo e a igualdade entre todos os cidadãos, questionar os padrões sociais e políticos que formam o nosso país, abandonar o preconceito, o comodismo e o medo da mudança. A iniciativa de formar uma escola disposta a mudar a sociedade, voltada com o olhar para a emancipação do indivíduo, uma escola que vai além das experiências dos educando dentro de suas aprendizagens, requer grande trabalho e por sequência batalhas e desafios.
Essa é a primeira identidade capturada, representada e fortalecida no filme, a identidade docente da professora, mulher que lida com  múltiplas e complicadas combinações de identidades sociais que estão presentes nas disposição escolar e que fazem parte do currículo, caso se pretenda uma educação que proporcione o convívio, em igualdade, de diversas identidades e diferenças.
Quando a educação for entendida como conservação do legado cultural, ligação entre passado e presente, possibilidade de revolução, no sentido de mudar, de transformar; permitindo-se que estudantes (e professorado) identifiquem suas múltiplas identidades, se conhecendo e tornando o mundo compreensível, em sua complexidade, acreditando fazer parte dessa realidade, que lhe és própria, a educação será a liberdade real buscada por todo ser humano.
Pedagogicamente falando, a teorização cultural contemporânea sobre identidade e diferença, não aborda o multiculturalismo na educação simplesmente como uma questão de currículo, a diversidade é um dado – da natureza ou da cultura. A multiplicidade é um movimento que reafirma o idêntico, o respeito a esse idêntico, não pode significar querer que ele seja igual ou compactue das mesmas atitudes.
Em certo sentido, pedagogia significa precisamente diferença: educar significa introduzir a diferença em um mundo que sem ela se limitaria a reprodução. É nessa possibilidade de abertura para o outro que podemos pensar como diferentes.
 
 
REFERÊNCIAS
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ARENDT, Hannah. A crise na educação. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2003. p. 221-247.
ARROYO, Miguel G. Políticas educacionais e desigualdades: à procura de novos significados, Educação & Sociedade, Campinas, v. 31, 2010.
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