Clarice Lispector esconde um objeto gritante: Notas sobre um projeto abandonado


Clarice Lispector esconde um objeto gritante:
Notas sobre um projeto abandonado

Sonia Roncador
University of Columbia

Em seu artigo “As duas versões de Água viva” (que aparece
na revista Remate de Males, em 1989), o professor e crítico Alexandrino
Severino fornece alguns dados curiosos sobre a composição de Água
viva (o décimo terceiro livro de Clarice Lispector, publicado em 1973).
Dada a grande repercussão de Água viva no meio crítico
e acadêmico, este artigo poderia ser visto como apenas um entre vários
outros ensaios sobre esta novela, não fosse pela revelação
de um fato previamente desconhecido: o de que Água viva é, na
verdade, a versão final, corrigida, de um manuscrito intitulado “Objeto
gritante”. Como o professor Severino reconhece, este fato contraria as
próprias declarações de Clarice a respeito do método
de composição de sua novela, segundo as quais Água viva
teria sido escrita à maneira do jazz: por improvisação.
Este fato também contradiz várias resenhas críticas que
reforçam semelhante idéia de Água viva como obra não
premeditada, orgânica etc.
O crítico Alexandrino Severino soube da existência de “Objeto
gritante” depois que Clarice entregou-lhe uma cópia deste manuscrito
(na época com título diferente: “Atrás do pensamento:
monólogo com a vida”) para que ele o traduzisse ao inglês.
Em seu artigo, Severino esclarece que conheceu Clarice em seu apartamento no
Rio de Janeiro, em julho de 1971, e que a partir desta data passou a vê-la
regularmente por quase dois meses para que juntos pudessem discutir os detalhes
da tradução. Vale ressaltar que, segundo Severino, naquele momento
Clarice estava totalmente convencida de que “Objeto gritante” era
uma obra terminada, definitiva. Seu artigo mostra que Clarice a princípio
queria preservar, e não modificar “Objeto gritante”. Pelas
inúmeras conversas que tiveram, este crítico, escreve, por exemplo,
que Clarice fazia questão de que “ao traduzirmos o livro, nenhuma
vírgula deveria ser acrescentada; que teríamos que encontrar a
palavra exata e respeitar a pontuação” (Severino, 1989, p.
118). Contudo, de acordo com as palavras deste crítico, em um ano Clarice
mudou de opinião com respeito a “Objeto gritante”. Em 23 de
junho de 1972, ela de fato escreve-lhe uma carta comunicando sua decisão
de não mais publicar este manuscrito. Na carta, ela escreve que “[ela]
não pode mais publicá-lo como está. Ou eu não publico
ou eu resolvo trabalhar nele” (cit. in. Severino, 1989, p.115).
Após a decisão de não publicar “Objeto gritante”,
Clarice tinha, pois, duas opções: ou revisá-lo ou abandoná-lo.
Neste breve ensaio, eu argumento que entre ambas alternativas Clarice de certa
forma acaba optando pelas duas. Ao revisar “Objeto gritante”, Clarice
abandona o programa estético que havia gerado este manuscrito e embarca
numa empresa literária totalmente diferente. Mas em que consiste este
programa estético de “Objeto gritante”? Que diferenças
existiriam entre a escritura deste manuscrito e aquela de Água viva?
E, talvez mais importante, por que Clarice Lispector decide não publicar
“Objeto gritante”? O que a teria levado a abandonar este texto, “transformando-o”
em Água viva (a expressão é da própria autora)?
Para que possamos entender o projeto literário de Clarice ao escrever
“Objeto gritante”, bem como as razões pelas quais ela nunca
ousou publicar este manuscrito – na minha opinião, um dos projetos
mais ambiciosos na literatura nacional dos anos 70 – devemos examinar
os aspectos deste manuscrito que não sobreviveram ao processo de revisão
do mesmo. Ou seja, aqueles aspectos (temáticos e formais) que na transformação
de “Objeto gritante” em Água viva foram definitivamente eliminados.
Segundo palavras da própria autora, a revisão de “Objeto
gritante” consistiu em um processo de sucessivos cortes radicais, onde,
ao final de quase três anos, praticamente a metade deste manuscrito havia
sido eliminada (das 188 páginas originais, restaram somente 100). Na
passagem de uma versão a outra, “Objeto gritante” foi, então,
sensivelmente reduzido. Além disso, a autora modificou radicalmente o
caráter deste texto. Em primeiro lugar, Clarice alterou o modo de enunciação
de “Objeto gritante” (seu caráter autobiográfico foi
substituído por um relato ficcional, onde uma artista plástica
narra a sua estréia no mundo da literatura). Ainda relacionado ao caráter
autobiográfico de “Objeto gritante”, Clarice eliminou os elementos
deste texto que indicavam as circunstâncias de produção
do mesmo: elementos ou “índices” (no sentido dado ao termo
pela semiótica de Peirce) do tempo e local de produção
do texto, bem como da vida pessoal da autora no momento mesmo do ato de escrever.
Finalmente, no processo de edição de “Objeto gritante”,
Clarice abandonou o método utilizado na sua composição.
“Objeto gritante” é o resultado de uma série de operações
de montagem de fragmentos de diferentes stati literários (crônicas
jornalísticas, textos literários já publicados, fragmentos
inéditos) cujas diferenças Clarice não parece interessada
em homogeneizar. A heterogeneidade característica da composição
de suas partes internas manifesta-se também no nível da linguagem,
onde a autora justapõe passagens enfáticas, sublimes, a outras
que relatam, num estilo bastante coloquial, os incidentes domésticos
de sua vida cotidiana como escritora. Nas palavras do crítico Roland
Barthes (1995), tais práticas de justaposição produzem
no nível da linguagem um certo efeito de “deflação”
(no sentido de uma despotencialização, ou mesmo um rebaixamento
do nível retórico de sua prosa): ou seja, a consistência,
a densidade, a potência (e eu diria a “virilidade”) de sua prosa
artística é “deflacionada” em várias sequências
do texto. Em Água viva, no entanto, Clarice abandona o projeto de criar
um texto híbrido, composto de fragmentos de diferentes formas de escritura,
eliminando assim muitas das irregularidades de tema, estilo, e tom que caracterizam
a estrutura heterogênea de sua versão original.
Gostaria, então, de deter-me brevemente na discussão destes aspectos
formais da escritura de “Objeto gritante”: a saber, seu caráter
autobiográfico, sua narrativa “indicial”, sua composição
heterogênea, e, finalmente, seu discurso “deflacionado”. Gostaria
antes de lembrar que para a análise de “Objeto gritante” consultei
uma das duas cópias disponíveis no arquivo pessoal e literário
de Clarice Lispector da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de
Janeiro – período em que realizava a pesquisa preliminar da minha
tese de doutorado. “Objeto gritante” é uma espécie de
relato pessoal da vida cotidiana de Clarice Lispector como escritora. Parte
deste relato corresponde ao registro dos dias e das horas em que Clarice escreve
este manuscrito: fatos que ocorrem em sua vida no momento mesmo em que está
escrevendo “Objeto gritante”. À moda dos diários ou
cartas pessoais (ou ainda de suas crônicas) tais fatos são registrados
de maneira extremamente casual (o telefone toca, um homem vem a sua casa para
consertar seu toca-discos, ela fala de uma certa visita a um zoológico
na Suíça etc.), constituindo assim uma espécie de relato
anti-narrativo, ou seja, sem direção ou objetivo, e desprovido
de qualquer clímax ou desfecho. “Objeto gritante” é
então resultado de um desejo de Clarice (até então inédito
em sua literatura) de se auto-expor; nele, fatos, sentimentos, digressões
que compõem sua vida diária são revelados (algumas vezes,
aqueles aspectos de sua personalidade que lhe causam certo embaraço ou
vergonha são também narrados). Além disso, como se para
lembrar ao leitor de que aquilo que ele está lendo é fruto de
uma ação concreta, situada num tempo e espaço reais, em
“Objeto gritante” Clarice freqüentemente refere-se às
circunstâncias de produção deste manuscrito. Há,
por exemplo, várias referências no texto ao dia, ou até
mesmo à hora exata, em que o mesmo está sendo escrito. Na página
9 do manuscrito, Clarice escreve: “Às três e meia da manhã
acordei. E logo elástica pulei da cama. Vim escrever. Quer dizer: ser.
Agora são cinco e meia da manhã. De nada tenho vontade: estou
pura. Mas o Dia das Mães foi anteontem e fiquei muito feliz…”
(Lispector, “OG”, p. 9). Referências como esta produzem um raro
efeito de articular o texto ao ambiente externo em que ele é produzido,
como se uma porção da realidade externa subitamente irrompesse
no espaço representacional, ou simbólico, da linguagem.
O tipo de relato autobiográfico que define “Objeto gritante”
tem, como já disse, a forma de um livro-colagem, onde Clarice compõe
sua obra a partir de fragmentos de romances já publicados, crônicas
e alguns textos irêditos. Entretanto, seguindo o modelo da montagem, Clarice
não organiza este material heterogêneo em torno de um tema e/ou
forma definidos, mas, ao contrário, combina estes diferentes fragmentos
em justaposição paratática. “Objeto gritante”
é, então, fragmentado num sentido completamente diferente do que
este termo recebe quando usado na descrição de outras obras de
Clarice Lispector. Sua obra-prima, A paixão segundo G. H. (1964), por
exemplo, retém dos relatos mais clássicos a unidade de ação,
estilo e tom. Em uma entrevista pouco depois de concluir “Objeto gritante”
(entrevista esta que inspirou o título deste breve ensaio: “Clarice
Lispector esconde um objeto gritante”, publicada no Correio da Manhã,
em 5 de março de 1972), Clarice diz que seu livro “será muito
criticado. Ele não é conto, nem romance, nem biografia, nem tampouco
livro de viagens… Sabe, ‘Objeto gritante’ é uma pessoa
falando o tempo todo…” (ênfase minha; Lispector, s. p.). Ao associar
a forma de “Objeto gritante” àquela de uma “fala”
ou conversa informal, Clarice ressalta a falta de unidade interna em seu livro.
Além disso, dadas as afinidades de “Objeto gritante” a uma
conversa informal este livro escapa às convenções de gêneros
narrativos tais como o conto, o romance, a biografia etc. A falta de unidade
entre as partes internas de “Objeto gritante” levou, por exemplo,
o crítico José Américo Pesssanha a mencionar, em carta
endereçada a Clarice Lispector, a sua “aparência de bricolagem”.
Ele observa que, ao contrário de suas obras anteriores, em “Objeto
gritante” Clarice não tem nenhum pudor em misturar passagens de
diferentes níveis retóricos que ela fala, por exemplo, “de
Deus e de qualquer outra coisa, sem selecionar tema, e sem rebuscar forma”
(Arquivo de Clarice Lispector).
Ao mencionar a disparidade no texto entre momentos sublimes, como o tema de
Deus, e outros domésticos, triviais, Pessanha, provavelmente, refere-se
à seguinte passagem de “Objeto gritante”:
Noto que há muito não chamo o “Deus” de Simptar e não
me chamo de Amptala. Que Simptar nunca deixe faltar comida a Amptala. Comida,
comida e comida. Não sei como são as outras casas de família.
Na minha todos falam de comida. “Este queijo é meu”… “Esta
carne ficou salgada demais”. “Estou com fome porém se você
comprar pimenta eu como”… Em matéria de comida estou com empregada
nova – a outra se casa hoje e vou ao casamento… (Lispector, “OG”,
p. 70).
Passagens como esta aparecem com grande freqüência em “Objeto
gritante”, onde temas recorrentes na literatura de Clarice Lispector (os
“grandes temas” de sua literatura) se justapõem aos fatos triviais
do dia-a-dia (ou àqueles que normalmente servem de tema para suas crônicas).
“Objeto gritante” é composto de tal forma que o trivial e o
grandioso, o coloquial e o sublime, o baixo e o alto coexistem numa mesma obra
de arte. Em “Objeto gritante”, como já sugeri, tal heterogeneidade
se manifesta também no nível da linguagem: a inclusão de
certos fatos acidentais nos momentos sublimes do livro provoca uma “deflação”
de sua prosa. Por exemplo, na página 79, Clarice inclui um breve texto,
“Da natureza de um impulso ou entre os números um ou computador
eletrônico”, publicado pela primeira vez em sua coluna semanal do
Jornal do Brasil, em 29 de novembro de 1969. Trata-se, na minha opinião,
de um dos fragmentos mais herméticos e densos já escritos por
Clarice Lispector. Neste texto, uma mulher, em meio a seus afazeres domésticos,
cai subitamente em uma espécie de “estado de graça”
e atinge a percepção de um dos níveis mais profundos da
existência, caracterizado por Clarice como um “impulso atonal”.
No entanto, em “Objeto gritante”, este fragmento vem imediatamene
seguido de um pequeno trecho cujos termos subvertem o tom circunspecto e, eu
diria, solene de todo o relato:
O fato que a fez suspirar e em que ela se transformou era o de ser uma mulher
com uma vassoura na mão. Passou de atonal para tonal. Sobrou-lhe de tudo
isto –como na boca um gosto – a sensação atonal do
contato atonal com o impulso atonal. Recuso-me a continuar: está chato
demais. Está ficando insuportável. Pularei o resto. Graças
a Deus o telefone tocou e interrompeu-me.
Tendo escrito algumas das obras mais elegantes e bem compostas da língua
portuguesa, em “Objeto gritante” Clarice Lispector, no entanto, optou
pelo caminho da não elegância. Ao violar certas regras de composição
artística e ao incorporar em “Objeto gritante” termos (como
os acima citados) que são um afrontamento ao decoro literário
e moral, Clarice questiona a instituição da literatura em geral
e, em particular, sua própria obra. Além disso, o conteúdo
autobiográfico de “Objeto gritante”, bem como a inclusão
neste texto dos vestígios das circunstâncias externas de sua produção,
problematizam outros pressupostos artísticos, como, por exemplo, o ideal
de sublimação ou distanciamento do autor em relação
a sua obra. Nesse sentido, não é de se surpreender que nas páginas
conclusivas de “Objeto gritante”, mais precisamente na página
185 deste manuscrito, a autora fala explicitamente de suas intenções
“anti-literárias”, e também dos possíveis ataques
críticos que este manuscrito sofreria caso fosse publicado:
O instante-já de agora é uma coisa que vou dizer: que todas as
vidas são vidas heróicas. Eu também sou heróica.
Aliás é só por heroísmo também que publico
este livro que vai ser vaiado e cujas intenções de anti-literatura
serão captadas por poucos (Lispector, “OG”, p. 185).
“Objeto gritante” é, então, o registro de um momento
crucial na trajetória artística de Clarice – momento este
em que a autora não só decide abandonar o modo de escritura que
até então caracterizava a sua literatura, como também questionar
certos valores artísticos que seguramente grande parte da crítica
contemporânea a “Objeto gritante” defendia. Contudo, ao revisar
esta obra, Clarice abandona o projeto de uma escrita, por assim dizer, “anti-estética”,
e opta pela criação de uma empresa literária, Água
viva, mais contínua com suas obras anteriores.
O meu interesse em examinar “Objeto gritante” coincide com o projeto
de vários outros críticos interressados em estudar os escritos
de Clarice Lispector que foram excluídos do conjunto total de sua obra
– suas coletâneas de contos e crônicas, publicadas em meados
dos anos 70, suas crônicas jornalísticas, suas obras póstumas.
Refiro-me sobretudo aos estudos feministas de sua obra que questionam os pressupostos
artísticos acima descritos e re-valorizam temas, gêneros e formas
narrativas marginalizados por critérios patriarcais de definição
do cânone literário. Em seus comentários sobre “Objeto
gritante”, expressos em carta já mencionada, José Américo
Pessanha parece desaprovar os procedimentos aplicados na composição
deste livro. Segundo ele, ao compor “Objeto gritante” Clarice deixa
de ser uma escritora, para “ser apenas uma mulher que escreve o que (pré)
pensa ou pensa-sentindo” (Arquivo de Clarice Lispector); em outras palavras,
Clarice deixa de escrever “verdadeiramente”, ou apropriadamente, e
embarca numa atividade não mais literária: a de registrar, “sem
selecionar tema e sem rebuscar forma” (a expressão é do próprio
crítico), os fatos de sua vida privada. Entre a opção de
escrever “verdadeiramente”, sublimando, para tanto, as marcas de sua
vida pessoal (entre elas, obviamente, as de gênero) e a opção
de justamente subverter este tipo de escrita, Clarice, ao que parece, decide
pela segunda. Se sua decisão foi um êxito ou se foi um fracasso
depende, obviamente, do ponto de vista de cada um.
Referências Bibliográficas
BARTHES, Roland. Oeuvres complètes. Vols. 1, 2 e 3. Paris: Seuil, 1995.
LISPECTOR, Clarice. Entrevista com Germana de Lamare. “Clarice Lispector
esconde um objeto gritante”. Correio da Manhã (Rio de Janeiro),
6 de março de 1972, s. p.
—————-. Arquivo de Clarice Lispector. Arquivo – Museu de Literatura
da Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro.
PESSANHA, José Américo Motta. Arquivo de Clarice Lispector. Arquivo
– Museu de Literatura da Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de
Janeiro.
SEVERINO, Alexandrino. “As duas versões de Água viva”.
Remate de Males 9: 115-18, 1989.