Cristiane Lira
Universidade da Geórgia
Resumo: Este artigo propõe uma leitura comparativa entre dois contos, “Cambio de armas”, de Luisa Valenzula e “A imitação da rosa”, de Clarice Lispector. Nestes, a subjetividade e a linguagem apresentam-se como uma forma de herança. Elas são fabricadas pelos usos sociais e normativos para se incorporarem a um falso discurso prévio que circunda os ideais de casamento e a maneira como as duas personagens principais tentam fugir dessas definições hegemônicas. O encarceramento é a metáfora utilizada para descrever a condição das protagonistas. Embora os meios sejam diferentes, os mecanismos de tentativa de escape são os mesmos. No primeiro texto, Laura é torturada, e no segundo, Laura foge da realidade.
Palavras-chave: Valenzuela e Lispector – “Cambio de armas” – “A imitação da rosa” – cárcere – libertação.
Abstract: This article presents a comparative reading of “Cambio de armas”, by Luisa Valenzula, and “A imitação da rosa”, by Clarice Lispector. In the two short stories, subjectivity and language are inherited. They are fabricated by social and normative usages to become incorporated into an already existing, albeit untruthful, body of reality surrounding marriage and the way the two main characters try to escape from these hegemonic definitions. Entrapment is the metaphor used to describe both protagonists. The means are different, but the escape mechanisms are not. On the first short story, Laura is tortured, on the second Laura flees from reality.
Keywords: Valenzuela – Lispector – “Other weapons”, “The imitation of the rose” – entrapment – liberation.
Minicurrículo da autora: Cristiane Lira está cursando o Doutorado na Universidade da Geórgia, onde escreve sua tese a respeito da representação das mulheres guerrilheiras que lutaram contra o regime ditatorial no Brasil e na Argentina desde a década de 1960 até a de 1980. O corpus analítico com o qual está trabalhando inclui narrativas literárias, fílmicas, testemunhos e poesia. Além dos estudos pós-ditatoriais, ela também se interessa pela relação entre memória e gênero, e a representação da mulher na literatura brasileira e latino-americana contemporânea. Ela tem artigos publicados na Revista Karpa, da Universidade Estadual da Califórnia, Revista Carandá, da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Revista Crioula, da Universidade de São Paulo, entre outros periódicos. (Currículo completo disponível em: http://www.rom.uga.edu/directory/cristiane-lira).
Cárcere e libertação:
Uma leitura comparativa de
“Cambio de armas” de Luisa Valenzuela e
“A imitação da rosa” de Clarice Lispector
Cristiane Lira
Universidade da Geórgia
“– Pai, o que é isso que dentro da minha cabeça não para nunca?
– Chama-se pensamento, é como uma maquininha atrás da testa fabricando as palavras: nuvem, cadeira, mãe. Então por um tempo imaginei que eram as palavras que produziam as coisas. Palavras tomavam a palavra e tinham voz, falavam acenando com franjas e beiradas de segredos para quem soubesse escutar.
Tudo existiria primeiro dentro de cada um, antes de se montar externamente com objetos, paisagens, cores e cheiros.”
(LUFT, 2002, p. 30)
O trecho acima do romance de Luft questiona, diante do olhar de uma criança – recuperada pela memória de uma pessoa adulta –, uma das condições da linguagem: trata-se de algo estabelecido. O pensamento, portanto, responsável por “fabricar as palavras”, pode ser compreendido como uma reprodução do que já existe, das normas e regras sociais que antecedem o processo de aquisição da linguagem. Nesse sentido, a linguagem é parte de um corpo já existente com os seus valores e pressupostos e sua aquisição dá-se por um mecanismo de reprodução. O trecho supracitado demonstra que este processo de aprendizagem consciente se dá com o amadurecimento da criança, contudo revela também que havia uma crença inicial, relacionada ao universo particular, àquilo que reside dentro de cada um – sua subjetividade, identidade – para transformar, mais tarde, em objetos. Esse processo de aprender fundado na linguagem, a sua relação com os objetos e coisas, além dos elementos comuns entre “Cambio de armas” (1981), de Luisa Valenzuela e “A imitação da rosa” (1960), de Clarice Lispector são os aspectos que exploramos neste estudo.
Em “Cambio de armas”, temos a história de Laura. A protagonista é construída através de elementos de surpresa e a existência de um segredo que vai sendo desenvolvido e revelado à medida que a própria personagem vai percebendo os arredores dela. Quase ao final do texto, tomamos conhecimento de que Laura é uma espécie de guerrilheira e que era a potencial assassina do coronel Roque. O mesmo Roque que, como sabemos, é desenvolvido na história como o esposo de Laura, além de ser, de alguma forma, seu algoz, posto que a submete à violência física, além da psicológica por meio da presença de um chicote nos momentos de envolvimento sexual.
Em “A imitação da rosa” de Clarice Lispector, a personagem central também se chama Laura. A narração é construída de maneira também a nos apresentar um segredo que vai sendo revelado pouco a pouco. A história se concentra nos detalhes que parecem evidenciar a mentalidade organizada e sensível de Laura, destacando o seu prazer em ter tudo no seu devido lugar e ser a esposa perfeita, ter o marido perfeito, a relação perfeita, culminando na impossibilidade de se saber possível de alcançar tal perfeição. Além disso, o texto sugere uma possível loucura, haja vista que a personagem estivera hospitalizada e exerce suas funções domésticas sempre com a lembrança de que deve seguir rituais específicos para que aquilo que lhe aconteceu previamente, do qual não somos plenamente conscientes, não volte a acontecer. Ao final, porém, vemos que o estágio anterior ao do momento do conto retorna.
Cabe, agora, destacar as razões para o estabelecimento de um diálogo entre estes dois textos, “Cambio de armas” e “A imitação da rosa”. Além do nome das protagonistas ser o mesmo, Laura, compreendemos as duas narrativas como tentativas de libertar, em alguma medida, os gritos reprimidos das vozes femininas. Isto ocorre através da proposição de liberdade dentro do próprio cárcere discursivo, ou seja, é uma escritura de mulher que vai em busca de criar rupturas no discurso hegemônico. Em outras palavras, valendo-nos das observações de Luisa Valenzuela, em “So-called Latin American Writing” (1993), ao falar sobre Clarice Lispector, através da linguagem e das tentativas de fazê-la tomar forma e renascer, vê-se a criação de pérolas, mas, também, de monstros. Ainda segundo Valenzuela, “[i]t is mainly for the sighting of such monsters that we write, and it is because of them that we withhold writing during long and painful periods of time, in the struggle of trying to say what resists being said” (VALENZUELA, 1993, p. 211-12). Logo, trata-se de uma escrita que se faz reveladora, justamente, pela necessidade de trazer à tona os bastidores, os elementos relegados da história, tratando de incorporá-los, permitindo, assim, em alguma medida, a sua libertação.
No caso dos dois textos analisados, o processo de fragmentação e conexão pelo qual as histórias são narradas lembra, certo modo, um mosaico (sobretudo em “Cambio de armas”). Assim, somente a justaposição dos elementos, na tentativa de recompor os objetos, criando uma atmosfera que faça algum sentido, parece tornar possível a compreensão do todo. No caso de “A imitação da rosa”, embora o texto não apresente na sua corporalidade uma divisão, é possível observarmos em sua tessitura, a tentativa de reconstruir os sentidos através de um itinerário que tanto a protagonista desconhece quanto nós leitores. Logo, podemos dizer que o texto trabalha com uma espécie de segredo e o tecer narrativo trata de desenvolver um percurso possível de revelação.
O conto de Lispector, logo no princípio, estabelece a ideia de que o percurso a ser desenvolvido no presente está relacionado a um passado recente, afinal, “[m]as agora . . . ela estava de novo ‘bem’” (LISPECTOR, 1998, p. 34), impondo, portanto, a pergunta: quais acontecimentos antecederam o estágio aqui reconhecido como mau? Com o desenrolar dos fatos, temos também a noção de que ela, Laura, de “A imitação da rosa”, estava de volta, sugerindo, em um primeiro momento, que ela estivera em outro lugar. Contudo, sabemos, com o encerramento do texto, que algo “[v]oltou” (LISPECTOR, p. 52). Com isso, tomamos consciência de que o percurso estabelecido por Laura é o de alguém que teve uma espécie de surto, evadindo-se da realidade, voltara através de tratamento e, agora, em casa, retoma a vida, tentando com certo desespero e muita ansiedade, não fugir de si mesma novamente.
Em “Cambio de armas” a via-crucis do segredo é explorada no corpo da personagem e no corpo do texto. A narrativa vai se desenvolvendo em um tom de suspeita, mas, tal e qual a personagem, quase kafkiana, desconhece o poder que a oprime, em vista de ter a memória em frangalhos, também os leitores são conduzidos sem o saber. O texto, como já dissemos, é dividido em partes e vai se encaixando até que temos a revelação plena ao final. Em alguma medida, em decorrência da escolha do desenvolvimento, o texto permite que vejamos a questão da esfera do poder em mais de um nível. Embora seja um texto que evidentemente critica o regime militar, não o faz somente no campo político e social, senão através do olhar para a instituição do matrimônio, desenvolvendo a crítica a essa relação autoritária no âmbito do privado.
Ainda com relação ao segredo, em ambos os textos a voz narrativa se vale de um símbolo para circundá-lo. Trata-se da figura de um gato que invade o texto. Em “A imitação da rosa” temos, “[c]omo um gato que passou a noite fora e, como se nada tivesse acontecido, encontrasse sem uma palavra um pires de leite esperando” (LISPECTOR, 1998, p.34). Este trecho é relativo à construção da volta de Laura. Ela se compara ao gato e, com isso, é possível que o leitor vá se preparando para a revelação. Em um primeiro momento, fica evidente a noção de fugacidade. Laura, personagem de Lispector, é aquela que “passou a noite fora” e que depois, “como se nada tivesse acontecido” volta para casa e ainda encontra o alimento à sua espera.
Além disso, se pensarmos na noção de cárcere discursivo, a utilização do gato não nos parece inocente. Segundo Chevalier e Gheerbrant, “o gato é associado à serpente: indica o pecado, o abuso dos bens deste mundo” (2007, p. 462 grifos no original). Logo, se ampliarmos esta noção à condição de Laura em “A imitação da rosa”, podemos ler a tentativa da voz narrativa de denunciar os mecanismos do poder atuando sobre Laura, porque ela estabelece uma análise de si mesma calcada em um símbolo fugidio, pecador, tal e qual a construção da mulher que não segue – evade-se – dos pressupostos discursivos impostos pelo patriarcado.
Com relação ao modo como foi utilizado o mesmo símbolo na revelação do segredo em “Cambio de armas,” vemos que a fugacidade da imagem é trazida ao texto na própria conotação da lembrança, que surge desviada, isto é, um movimento leva a outro, em alguma medida reinventando a linguagem ou ressignificando-a. No momento em que Roque, depois de ter feito os nervos de Laura entrarem em choque, ao mostrar el rebenque para ela, temos: “[E]l pidiendo disculpas, algo inimaginable pero así es: discúlpame, cálmate, ron ron, casi dice él como un gato y la idea de gato la envuelve a ella con tibieza y detiene de manera instantánea sus convulsiones. Ella piensa gato y se aleja de él” (VALENZUELA, 1982, p.131-2). Logo, o gato se transforma em uma espécie de conexão entre o presente da protagonista e o seu passado. O animal, pois, não só liga os fragmentos da memória como é o rompante que lhe traz a presença do ser amado e faz com que ela se dê conta de que ele está morto. O discurso que é cárcere por reproduzir movimentos de dominação e poder indiretos (“A imitação da rosa”) é resgatado como despertar da consciência, fulcro de conexão e caminho para a liberdade e o conhecer (“Cambio de armas”).
Notamos, então, que “A imitação da rosa” e “Cambio de armas”, embora distintos, mantêm um diálogo muito aproximado. Os objetos concretos, em ambas narrativas, adquirem a noção da realidade, como se fossem a única forma de conservar as personagens conectadas ao espaço e ao tempo no qual se encontram sem que passem por um processo de evasão completa. Situação, porém, almejada por todos ao redor das protagonistas, pois em “Cambio de armas” faz-se um imenso esforço na criação de uma família visando que Laura não recupere a memória que ela não tem consciência plena de ter perdido. Como vemos, por exemplo, no trecho, “[l]a foto está alli para atestiguarlo, sobre la mesita de luz. Ella y él mirándose a los ojos con aire nupcial, ” (VALENZUELA, 1982, p.116) que, ao final, revela a criação da fotografia para atestar uma verdade inventada.
Já em “A imitação da rosa” esta estrutura aparece, sobretudo, nas palavras do médico de Laura, “[a]bandone-se, tente tudo suavemente, não se esforce por conseguir – esqueça completamente o que aconteceu e tudo voltará com naturalidade” (LISPECTOR, 1998, p. 36). A tentativa é, portanto, de que ela faça um esforço em lembrar que precisa esquecer. O ato de lembrar, associado a um saber prévio, torna-se uma ameaça que precisa, constantemente, ser rechaçada do cotidiano.
Para que o esforço de manter a sanidade (“A imitação da rosa”) e o controle (“Cambio de armas”) seja alcançado, as protagonistas são mantidas no lar, impelidas a uma espécie de prisão da qual não parecem ter completo conhecimento. Neste espaço, que deveria representar proteção e segurança, vemos que ambas estão em situações que refletem perigo. Em decorrência das circunstâncias nas quais se encontram, posto que desconhecem a verdade – conhecendo, somente, uma verdade construída por aqueles que detêm o poder –, elas desenvolvem específicos mecanismos de defesa para se protegerem do (des)conhecido.
No caso de “A imitação da rosa,” o processo de defesa desenvolvido pela protagonista dá-se através da repetição de específicos rituais. O texto, aliás, apresenta-os enumeradamente como representação do pensamento de Laura. Além disso, reforça que ela tem “gosto minucioso pelo método” (LISPECTOR, 1998, p. 35). Destaca-se, com isso, que a própria forma como a protagonista pretende manter a sanidade é reveladora de uma aproximação com a loucura. Contudo, este estado que é visto por Laura como uma maneira de não atingir o que é esperado socialmente dela, isto é, a sanidade, não lhe parece completamente terrível. Trata-se, antes, de um abismo que a atrai. Estar louca, nessa situação de limbo, é uma forma de ela se refugiar do próprio mundo que não consegue habitar por já não se sentir parte, por não suportar o teatro diário de viver.
Além disso, vemos que a sanidade está ligada ao controle, aproximando-se de “Cambio de armas”, ao mesmo tempo em que o controle neste está relacionado, justamente, à não recuperação da memória, em alguma medida também sanidade, de Laura. Portanto, as duas protagonistas se aproximam no diálogo da subjugação e submissão a outrem, sendo desenhadas como fruto, certo modo, de uma experiência traumática – que deve ser esquecida ou não recordada, cuja alteração é fotografada na maneira como utilizam a linguagem.
De acordo com Kalí Tal, ao falar sobre uma leitura da literatura de trauma, “[t]raumatic experience catalyzes a transformation of meaning in the signs individuals use to represent their experiences” (1996, p.16). No caso dos textos analisados, acreditamos que esta modificação é capturada por meio da representação da linguagem. Betina Kaplan, em sua leitura de “Cambio de armas,” propõe que “para Laura las palabras están vacías de significado. Este quiebre del signo le da una percepción de su entorno en estado de desconstrucción” (KAPLAN, 2007, p. 69). As palavras da crítica embasam a ideia que exploramos aqui, apresentadas desde a epígrafe, da existência da necessidade de uma justaposição das palavras para que, em alguma medida, seja possível o resgate ou a tentativa de construção de algum significado relevante para ela.
Ampliando as observações de Kaplan acerca de “Cambio de armas” para “A imitação da rosa”, cremos ser possível notar o mesmo vazio de significado no texto através da ritualística empreendida por Laura. Além disso, talvez uma forma de vermos os arredores de Laura em seu estado de desconstrução, ainda de acordo com Kaplan, seja através do silêncio capturado através da presença de inúmeras reticências no texto. Algumas delas, aliás, seguidas pela sugestão de um “salto” na realidade propiciado pelo sonhar acordada, “[m]as, como ela ia dizendo, de marrom com a golinha… – o devaneio enchia-a com o mesmo gosto que tinha em arrumar gavetas” (LISPECTOR, 1998, p. 42). A voz narrativa apresenta a noção de devaneio, sugerindo a criação de um mundo à parte, ao qual nós, leitores, não temos acesso e só é sugerido pela presença das sentenças cortadas, “‘ele’ me disse que eu não me esforce por conseguir, que não pense em tomar atitudes apenas para provar que já estou…” (LISPECTOR, 1998, p. 45). Como leitores, por antecipação, esperamos um desfecho. A narrativa, porém, vai nos negando as explicações à medida que o texto vai se desenvolvendo, convidando-nos a intervir e propor alguns percursos de leituras possíveis.
Ainda a respeito da questão do trauma, debruçando-nos especificamente sobre “Cambio de armas,” é possível destacar o proposto por Elaine Scarry em The body in pain de que “[p]hysical pain does not simply resist language but actively destroys it, bringing about an immediate reversion to a state anterior to language, to the sounds and cries a human being makes before language is learned” (SCARRY, 1985, p.4). Durante a leitura, há vários momentos em que esse processo de insufiência linguística é trazido à tona pela voz narrativa através da descrição da dor da personagem. Veja-se, por exemplo, o momento em que Roque mostra el rebenque para Laura e “ella se pone a gritar desesperada, a aullar como si fueran a destriparla o a violarla con ese mismo cabo del talero” (VALENZUELA, 1982, p. 131). A dor que o objeto, sem ao menos tocá-la, é capaz de despertar nela, revela a experiência do trauma que passa por um processo de desvio metonímico do qual o objeto se torna, mesmo na sua inutilidade – não fora usado por Roque naquele momento – um instrumento de tortura psicológica que implica a memória da dor física.
Partindo disso, propomos uma leitura que recupera as observações de Kaplan de que, “[l]a violencia es considerada por las lecturas feministas desde la década del [19]70 como el lugar privilegiado en el que se ponen en evidencia los mecanismos del control patriarcal sobre las mujeres” (KAPLAN, 2007, p. 6). Nos contos analisados, a violência é o motor pelo qual se exerce o poder. Todavia, nos textos, a representação desta é divergente. Enquanto no conto de Valenzuela ela se dá como um grito em construção – à medida que vamos, nós leitores, desvendando os andros e meandros da história – na narrativa de Lispector, a violência é silenciosa, apresentando-se nos interstícios do próprio discurso que se vai tecendo.
O grito em construção em “Cambio de armas” surge, como já mencionamos brevemente, através da maneira como se articula o desenvolvimento da revelação dentro do conto. A narrativa explora, em um crescendo, o desmantelamento da instituição matrimonial, apresentando-a como uma performance. Em alguma medida podíamos, aliás, utilizar a metáfora que Lispector esculpe para seu livro de contos, Laços de família – do qual “A imitação da rosa” faz parte – de que os mesmos laços que juntam são aqueles que sufocam, isto é, aquilo que une também é o que aprisiona. Com o emblema de esposo, Roque, em “Cambio de armas,” utiliza-se do corpo de Laura para satisfazer-se sexualmente. Ela, por outro lado, tem o corpo penetrado e posto em evidência, amparado pelo arcabouço do patriarcado, afinal, foi construída como a esposa dele no texto. Conforme aponta Kaplan, valendo-se das contribuições de MacKinnon, “en el sistema patriarcal las relaciones sexuales consensuales son un mito para las mujeres, ya que no tienen libertad de elección.” Assim, “la violación se transforma en una metáfora de las relaciones sexuales bajo el patriarcado” (KAPLAN, 2007, p.24). Observamos, porém, que, uma vez que Laura se encontra neste espaço de limbo, chamado por ela de el pozo, no qual ela desconhece a sua relação exata com Roque, a narrativa não se nega à descrição do seu prazer. Com isso, parece-nos que ela subverte a ânsia de Roque de adestrá-la, pois, uma vez que não tem consciência, como pode o regime de torná-la obediente ser, de fato, eficiente?
Como sabemos, no momento da revelação, Roque diz a Laura que as ações dele estão fundadas no desejo que ele tinha de interromper a vontade dela, de transformá-la, pois ela, supostamente, era a sua potencial assassina. Assim, ela, que o odiava, passou por um processo de aprendizagem para que fosse obrigada a querê-lo, dependendo dele como uma recém-nascida, assumindo, ainda, que estes eram os seus dispositivos de poder, as suas armas (VALENZUELA, 1982, p. 144-5). Portanto, no caso de “Cambio de armas” vemos as observações de Rodolfo Franconi sobre quando a atividade sexual não funciona como ato erótico – isto é, enquanto caminho a uma realização plena através do prazer sexual – mas reduz-se a mero instrumento do poder (FRANCONI, 1997, p. 32). Violentar o corpo de Laura é a maneira que Roque encontra para executar o seu poder.
Ocorre, porém que, se por um lado é possível dizer que Roque obteve o poder desejado sobre o corpo de Laura, por outro, uma vez que ela vivia em um espaço de limbo, ele nunca a possuíra completamente. Sua intenção, de certa forma, aparece desviada. Embora tenha destruído a linguagem de Laura e a sua conexão com o passado, deixando-lhe, somente, entre um e outro, fragmentos e a imensa cicatriz nas costas, além de ter penetrado o seu corpo, sua incapacidade de penetrar-lhe a alma, o que lhe é mais intrínseco, também é apresentada no texto, haja vista, por exemplo, o trecho: “[e]s esa la voz que a veces la llama sin poder penetrar su cáscara” (VALENZUELA, 1982, p. 139). De certa forma, isto nos faz pensar na questão do grande fracasso do discurso do patriarcado e do poder. Ainda que as marcas se inscrevam nos corpos dóceis, como propõe Foucault[1], sempre é possível a criação de um espaço exterior para que seja possível o refúgio[2].
Com relação ao texto “A imitação da rosa,” acreditamos que este espaço de limbo também existe e se trata daquele reservado à loucura, isto é, o lugar de onde a protagonista, aparentemente, voltou, e tenta organizar a vida no seu cotidiano cheio de certezas, para que não rompa o espaço concreto da casa e retorne ao que, em “Cambio de armas” a voz narrativa nomeia como “la nebulosa en la que transcurre su vida” (VALENZUELA, 1982, p. 113). As tentativas de Laura de manter a sanidade, de pertencer, as atividades de ser dentro do teatro do patriarcado são os motes que geram a violência silenciosa dentro do texto de Lispector.
O conto inicia já com o desejo de recuperar um imaginário existente, “[a]ntes que Armando voltasse do trabalho a casa deveria estar arrumada e ela própria já no vestido marrom para que pudesse atender o marido enquanto ele se vestia, e então sairiam com calma, de braço dado como antigamente” (LISPECTOR, 1998, p. 34). Aqui temos a pintura da mulher esperando o homem, a figura máxima da submissão, cujo sentido da vida dá-se em gravitar em torno do homem. Esta figura dialoga com as observações de Raimunda Bedasee, de que “Laura é a atriz que procura representar com perfeição o papel que já se confundiu consigo mesma enquanto pessoa: Laura não é Laura. Laura é ‘a esposa perfeita’. A Perfeição a atrai. Na busca dessa perfeição ela se perde e se encontra, na saída do pequeno mundo de dona de casa competente e de esposa satisfatória” (BEDASEE, 1999, p. 40). Dessa maneira, o esforço de Laura de se encaixar ao modelo de esposa ideal, típico dos pressupostos e esforços sociais que ela mesma se impõe, castiga-a e retira todas as suas forças, ao ponto em que ela não consegue mais representar, invadindo um espaço paralelo.
A violência de ser perfeita, de atingir a sua melhor nota na performance de viver, de se aproximar do divino, “Cristo era a pior tentação,” (LISPECTOR, 1998, p. 36) sufocam-na de maneira tão firme que Laura não resiste e vai espalhando as suas imperfeições ao lado do tom confessional que se estabelece com a voz narrativa – em quase fusão – apresentando as suas falhas. De um lado, “[p]or acaso alguém veria, naquela mínima ponta de surpresa que havia no fundo de seus olhos, alguém veria nesse mínimo ponto ofendido a falta dos filhos que ela nunca tivera?” (LISPECTOR, 1998, p. 35). Por outro, a sensação plena da falha: “[e]la, que nunca ambicionara senão ser a mulher de um homem, reencontrava grata sua parte diariamente falível” (LISPECTOR, 1998, p. 37). Laura é, então, uma personagem em tensão. Seu desequilíbrio é gerado, exatamente, da constante consciência de ser falha, incompleta, de não conseguir pertencer completamente ao elenco da família perfeita, com a sua “insuficiência ovariana” (LISPECTOR, 1998, p. 41) e a impossibilidade de completar o quadro da performance[3] patriarcal. Desse modo, a violência é gerada no e pelo discurso, metaforizando a casa de Laura como o seu cárcere.
Em ambos os textos, o signo casa surge invertido. O lar que deveria ser sinônimo de lugar seguro converte-se em uma prisão. Se pensarmos, porém, em uma das possíveis definições do termo, de acordo com o Dicionário de símbolos, veremos que “[a] casa significa o ser interior” (2007, p. 197). Assim, a tentativa das duas personagens se refugiarem em um universo à parte do que habitam talvez possa ser lida como uma libertação psicológica apesar do aprisionamento físico.
Em “Cambio de armas,” à medida que vamos sendo conduzidos na narrativa, temos acesso ao interior da casa e, também, às limitações da personagem. Num determinado momento acessamos a consciência da personagem e a sua sensação de estrangeirismo, “[e]xtraña es como se siente. Extranjera, distinta” (VALENZUELA, 1982, p. 118). Laura sente que não é parte daquela encenação na qual vive. As reflexões que vai estabelecendo em torno da disposição das coisas na casa vão apontando isso, “[s]entada ante la ventana con una estéril pared blanca frente a los ojos y vaya una a saber qué oculta esa pared” (VALENZUELA, 1982, p. 124). Ela reconhece, e através do olhar dela também os leitores, que aquele lugar no qual ela está é a fantasia de uma casa, mas, por trás do véu do teatro, trata-se de uma cadeia.
Com Laura de “A imitação da rosa,” o processo não é muito distinto. Ainda que não existam limites definidos para ela, vemos que a situação de exílio é algo que Laura cria para si mesma, “[s]entou-se no sofá como se fosse uma visita na sua própria casa que, tão recentemente recuperada, arrumada e fria, lembrava a tranquilidade de uma casa alheia” (LISPECTOR, 1998, p. 37). Para Laura, portanto, é necessária a sensação de não-pertencer, de transitar sentindo um incômodo que ela mesma cria, como fruto da punição de não fazer parte do novelo pelo que ela tanto anseia: o teatro do patriarcado.
Ainda com relação ao espaço da casa, cabe ressaltar que é nesta localidade onde ocorrem as atrocidades. Sob a fachada de lar, em “Cambio de armas” temos a violação praticamente cotidiana de Laura que se transforma em uma espécie de escrava sexual de Roque. Vale ressaltar, porém, que tanto quanto Laura, só adquirimos conhecimento dessa condição à medida que ela toma ciência do fato. Em “A imitação da rosa,” de acordo com o que já mencionamos, a atrocidade surgirá nos intervalos e não de maneira física. A imposição de seguir um modelo que Laura parece impossibilitada de alcançar, transforma a casa em um ambiente hostil: passar as camisas de Armando, arrumar a casa, comprar a carne, “com o mesmo gosto que tinha em arrumar gavetas, chegava a desarrumá-las para poder arrumá-las de novo,” (LISPECTOR, 1998, p. 42) na tentativa de medir, de alguma forma, as habilidades dela de ser mulher.
Em decorrência dos processos sofridos pelas inscrições discursivas em seus corpos dóceis, as personagens adquirem, junto aos leitores, ciência da sua fragmentação. Em um primeiro momento, através da progressão da consciência delas de que talvez sejam uma terceira pessoa, “[e]n cuanto a ella, le han dicho que se llama Laura pero eso también forma parte de la nebulosa en la que transcurre su vida” (VALENZUELA, 1982, p. 113) em “Cambio de armas” ou “Carlota se surpreenderia com a delicadeza de sentimentos de Laura, (…) [n]esta cena imaginária e aprazível (…), ela chamava a si mesma de ‘Laura’, como a uma terceira pessoa” (LISPECTOR, 1998, p. 44) em “A imitação da rosa.”
Mais tarde, através das metonímias que delimitam a capturação do corpo de Laura no espelho enquanto Roque se satisfaz no seu corpo, “ella va descubriendo el despertar de sus propios pezones, ve su boca que se abre como si no le perteneciera pero sí, le pertenece, siente esa boca, y por el cuello la lengua que la va dibujando le llega hasta misma boca pero sólo un instante” (VALENZUELA, 1982, p. 123) vemos o afastamento entre o corpo que sente e a mente que problematiza o toque. Com isso, a fragmentação da personagem torna-se quase física, existe um espaçamento entre o ser e o estar. O corpo que está não é o mesmo corpo que é.
Em “A imitação da rosa” temos também o mirar-se no espelho, que assinala, conforme proposto por Benedito Nunes, “o desdobramento do sujeito, que se vê como um outro, objetivo e impessoal” (1989, p. 107 grifos no original). Assim, “[s]eu rosto tinha uma graça doméstica, os cabelos eram presos com grampos atrás das orelhas grandes e pálidas. Os olhos marrons, os cabelos marrons, a pele morena e suave, tudo dava a seu rosto já não muito moço um ar modesto de mulher” (LISPECTOR, 1998, p. 35). O processo de distanciamento e fragmentação, aqui, dá-se entre a mulher que olha e aquilo que ela vê. Inicialmente, temos acesso ao quanto ela se afasta do modelo da amiga, Carlota. Depois, vemos que as partes mencionadas de seu corpo relacionam-se ao tom marrom[4]. Em alguma medida, é como se o que ela visse pelo espelho assumisse uma única tonalidade, quase sem vida, lembrando, ainda, os próprios tons pastéis mencionados em “Cambio de armas” como sendo a cor das paredes, “con sus tonalidades pastel que no pueden haber sido elegidas por ella aunque ¿qué hubiera elegido ella?” (VALENZUELA, 1982, p. 119). A fragmentação ocorre dentro de um processo de ordem, de uniformização, na quase tentativa de não chocar, apresentando-se quase transparente no cotidiano.
A noção de ser cindido, em “A imitação da rosa” parece se tornar ainda mais forte diante da tensão existente entre a personagem Laura e a sua amiga Carlota. Em alguma instância, a ansiedade que Laura sente em ser mestre no papel de mulher entra em atrito com o fato de que Carlota parece não ter a mesma ânsia. Assim, a maneira como Carlota reage gera instabilidade para Laura, pois ela não compreende a forma como a outra atua. Ainda que tente apresentar uma visão crítica de Carlota, o narrador, que parece adquirir o olhar de Laura, julga a outra, entretanto, ao invés de criar no leitor a noção de uma mulher vulgar, cuja marca é ser totalmente diferente de Laura, cria a noção de uma inveja intrínseca. Além disso, demonstra que Laura não se sente bem porque, embora critique Carlota, intimamente deseja ser como ela. Quando Laura pensa a respeito do marido e o quanto ele podia ser malicioso (LISPECTOR, 1998, p. 41), a protagonista imagina, “Carlota ficaria espantada se soubesse que eles [Laura e o esposo] também tinham vida íntima e coisas a não contar” (p. 41). A ponte entre o ser Laura e o querer ser Carlota é, assim, o poço no qual se encontra Laura.
De certa forma, este embate no qual se encontra a personagem ressoa as questões dos papéis de mulher. Laura, ao desejar e, ao mesmo tempo, refutar o jeito de ser da amiga, coloca em xeque a questão de que talvez seja impossível a coexistência das duas em uma só. Logo, uma mulher que serve aos ideais do patriarcado de esposa e mãe, por exemplo, não pode ser realizada sexualmente, ou, ao menos, não pode falar sobre estes assuntos que são tabu. Em alguma medida, portanto, dialoga com o apresentado por Susana Pravaz em Três estilos de mulher: a doméstica, a sensual, a combativa de que “desde as origens da estrutura social em que vivemos existiram mulheres-para-fazer-filhos, mulheres-para-fazer-amor, mulheres-para-lutar, enclausuradas em categorias que as especializam com as vantagens e desvantagens consequentes” (1981, p. 19). Laura reproduz os ecos das inscrições de controle do discurso hegemônico através da clausura que ela se impõe.
Em via oposta, porém, no texto de Valenzuela é possível capturarmos uma convivência aparentemente harmônica entre os diversos papéis estipulados à mulher. Em decorrência da maneira como o texto é estruturado, sugere-se que Laura tem acesso aberto à própria sexualidade, desprovida de tabus. Ao mesmo tempo também é a esposa que aparece na foto com ar conjugal, ou seja, leva em seu escopo a inscrição de dois papéis que parecem ser contrastantes. Em nosso ponto de vista, todavia, a tessitura narrativa apresenta, já desde o princípio, algumas pistas que sugerem os motivos pelos quais é possível o flagrante de certa estabilidade, ainda que seja falsa. Uma vez que temos, “[n]o le asombra para nada el hecho de estar sin memoria, de sentirse totalmente desnuda de recuerdos” (VALENZUELA, 1982, p. 113), como a frase que abre o conto, lemos como hipótese que um dos caminhos possíveis para a convivência entre as atividades contrastantes que podem constituir o sujeito feminino é, justamente, o desnudar-se de recordações. Entendendo-se por recordações, sobretudo, as inscrições corporais feitas ao longo do desenvolvimento histórico. Prova-se, com isso, que é necessário o esquecimento dos discursos anteriores e a aprendizagem de novos discursos, jamais vistos como próximos, posto que eram automaticamente colocados em sentidos opostos. Ainda que não seja uma proposta embasada em completo sucesso, haja vista que Laura consegue transitar harmonicamente pelos dois papéis contrários em decorrência de não ter memória, é possível afirmar que “Cambio de armas,” em alguma medida, apresenta uma sugestão para a cura da ansiedade de Laura em “A imitação da rosa”.
Além dos diálogos que apresentamos aqui entre os textos analisados, acreditamos que há ainda um ponto de contato entre eles que é o mais perene. Trata-se da presença da planta/rosas nos contos. Em “Cambio de armas” a planta surge como uma espécie de recuperação do desejo. Laura, que já não desejava, na sua nebulosa constante, quer algo. A planta se torna, como apresentado por Kaplan “el único objeto que Laura pide, funciona como uma metáfora para Laura” (2007, p. 69). Assim, o ser inanimado é uma extensão física de Laura e denota o seu próprio movimento de “flor amarilla, tiesa, muy bella, que se fue marchitando por suerte, como corresponde a una flor por más tiesa y más bella que sea,” (VALENZUELA, 1982, p. 120) revelando a condição de efemeridade da vida e a força que o ambiente exerce sobre ela. Também captamos a questão de que, uma vez tomada como metáfora de Laura, quando ela se conscientiza da quase artificialidade da planta, “la planta parecía artificial pero estaba viva y crecía y la flor iba muriéndose y esto también era la vida, sobre todo eso, la vida: una agonía desde el principio con algo de esplendor y bastante tristeza” (VALENZUELA, 1982, p. 121-2) parece demonstrar que está ciente, por extensão, da sua própria artificialidade. A vida de Laura, ainda que seja uma espécie de subvida – não tem memória, não reconhece o ambiente, sente-se estrangeira – ainda é algum tipo de vida.
Laura, de “A imitação da rosa,” também mantém uma relação aproximada com as rosas. Como Kaplan menciona a respeito de “Cambio de armas,” as rosas no conto de Lispector também são, em alguma medida, uma metáfora de Laura. Ao menos, na forma de perfeição que ela gostaria de alcançar sem, contudo, fazê-lo. Além disso, Laura, ao mesmo tempo em que observa a beleza, “[e]ram algumas rosas perfeitas, várias no mesmo talo,” (LISPECTOR, 1998, p. 43) tem ciência de que a perfeição, em alguma medida, não é um aspecto completo da natureza, afinal, “[e]ram algumas rosas perfeitas na sua miudez, não de todo desabrochadas, e o tom rosa era quase branco. Parecem até artificiais! Disse em surpresa” (LISPECTOR, 1998, p. 43). Ser perfeito, portanto, parece apontar a desconfiança de ser artificial, o natural é, assim, imperfeito e não pode conter em si tamanha beleza.
Este embate entre o ser e o não ser, tão perene em todo o conto, alcança o nível mais alto enquanto Laura observa as flores e decide dá-las à amiga Carlota. Esta decisão, porém, resulta em um novo contraste, afinal, por que dá-las a alguém quando eram tão lindas, únicas e somente dela? As rosas, assim, funcionam como o motivo detonador, a claridade dentro das certezas que havia em torno de Laura, a delicada membrana da sanidade, diante de tamanha perfeição e a constatação da impossibilidade de alcançá-la sugam Laura para o outro lado, ou seja, ela adentra a nuvem, alcança a sua paz na loucura, num “trem. Que já partira” (LISPECTOR, 1998, p. 53). A chegada do marido, ao final do conto, atesta a distância de Laura. Ela ainda tem tempo de dizer para ele que “[v]oltou, Armando. Voltou,” (LISPECTOR, 1998, p. 52) mas não se trata da volta dela, senão da volta do estado de nuvem, seu poço interior havia, novamente, engolindo-a. Lá estava “ela sentada com o seu vestidinho de casa. Ele sabia que fizera o possível para não se tornar luminosa e inalcançável” (LISPECTOR, 1998, p. 53). O silêncio entre ambos, quando o marido se aproxima, sugere a ideia da linguagem penetrando um território que está além daquele do presente. Em alguma medida, em sua mudez, “[e]nvelhecido, cansado, curioso,” (LISPECTOR, 1998, p. 53) Armando compreende a partida de Laura. Com isso, vemos que embora exista o esforço dos ecos da perfeição – calcados no discurso do patriarcado – eles são impedidos de exercer quaisquer forças sob Laura, pois ela partiu. Invadiu um espaço especial que é, para esses ecos, inalcançável.
Com relação a “Cambio de armas” vemos que a planta conscientiza Laura da sua condição, mas não é a responsável pelo momento de iluminação da protagonista. A epifania, pelo contrário, ocorre com a destruição da linguagem dela quando ela vê el rebenque. Assim, tanto quanto as rosas, em “A imitação da rosa,” são um motivo detonador da fina membrana de uma verdade inventada e frágil, em “Cambio de armas” a imagem de el rebenque faz esse papel. Aliás, a narrativa menciona que el rebenque é como “un detonante,” (VALENZUELA, 1982, p. 133) que, de certa forma, torna-a mais alerta da sua própria condição, observando o fato que Uno y Dos estão sempre à porta, por exemplo. Logo, embora na dor extrema, “en un rincón como animal herido,” (VALENZUELA, 1982, p. 131) Laura passa por um momento de iluminação que faz com que ela comece a conectar elementos nomináveis com a experiência incompreensível da qual ela não tem memória.
Aproximando-nos do fim desse diálogo entre as narrativas que nós nos dispusemos a analisar, acreditamos que foi possível observar muitos momentos nos quais os textos, embora tão distantes no tempo e no espaço, reconhecem-se e trabalham, de alguma forma, com as mesmas temáticas, sobretudo com o exercício da violência agenciada pelo poder. As marcas do poder aparecem em suas diversas formas: tanto nos ecos de um discurso historicamente construído sobre os papéis de mulher e a necessidade de ser perfeita para que se possa atuar no teatro do patriarcado quanto como ato de erotismo deslocado, transformando o sexo em uma arma que inscreve no corpo do outro a violência. Dessa forma, ainda que os textos apresentem a noção de cárcere através do aprisionamento das protagonistas a um sistema fechado, cujas saídas aparentemente não existem, sugerem, também, que mesmo diante de uma impossibilidade física é possível criar um universo paralelo que não só serve de refúgio como também significa libertação. Esta libertação dá-se por meio dos recursos da própria linguagem desenvolvida pelas autoras para denunciar a violência silenciosa experienciada por suas protagonistas, como através da atuação das personagens no corpo do texto que não permitem um desfecho catártico para as narrativas. As duas Lauras, assim, evadem-se do espaço que as aprisiona, seja por meio da sugestão e ambiguidade na cena final de “Cambio de armas”, seja pela entrada “na nuvem” em “A imitação da rosa”.
Referências Bibliográficas
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VALENZUELA, Luisa (1993). “So-called Latin American Writing.” Critical Theory, Cultural Politics, and Latin American Narrative. Notre-Dame, University of Notre-Dame Press.
NOTAS AO TEXTO
[1] Ver Vigiar e punir: história da violência nas prisões (1987).
[2] Através da análise proposta por Betina Kaplan em seu livro, Género y violencia en la narrativa del Cono Sur (1954-2003) é possível notar a existência deste espaço de limbo como uma sugestão a um espaço dedicado exclusivamente à resistência aos aparatos do poder. Veja-se, por exemplo, dentre as obras que a autora analisa, o caso de Los vigilantes de Diamela Eltit (1994).
[3] Quando tratamos de performance estamos nos voltando às observações de Judith Butler em Gender Trouble ao discutir a construção dos paradigmas que modulam a identidade feminina. Para a autora, “acts, gestures, and desire produce the effect of an internal core or substance, but produce this on the surface of the body, through the play of signifying absences that suggest, but never reveal, the organizing principle of identity as a cause. Such acts, gestures, enactments, generally construed, are performative in the sense that the essence or identity that they otherwise purport to express are fabrications manufactured and sustained through corporeal signs and other discursive means. (…) This also suggests that if that reality is fabricated as an interior essence, that very interiority is an effect and function of a decidedly public and social discourse, the public regulation of fantasy through the surface politics of the body, the gender border control that differentiates inner from outer, and so institutes the “integrity” of the subject (BUTLER, 2008, p. 185-186, grifos do original). Laura, portanto, reproduz o que pensa ser seu desejo, mas é o eco da construção do discurso do patriarcado em seu corpo. Nesta medida, estar no limbo é, também, evadir-se dessa estrutura.
[4] Lembramos ainda que a cor marrom é mencionada muitas outras vezes no texto de Lispector, “o vestido marrom combinava com seus olhos e a golinha de renda creme dava-lhe alguma coisa de infantil, como um menino antigo” (1998, p. 40) e “e ela castanha. Ela castanha como obscuramente achava que uma esposa devia ser” (1998, p. 41). Além disso, logo depois de comentar sobre as paredes em tom pastel, também se menciona o marrom no texto de Valenzuela, “[t]onos más indefinidos, seguramente, colores solapados como el color del sexo de él, casi marrón de tan oscuro” (VALENZUELA, 1982, p. 119). Parece-nos que a recorrência da cor sustenta uma atmosfera de mesmice, repetição, marcada pelo tédio. Além disso, trazendo as observações de Chevalier e Gheerbrant de que o castanho “faz lembrar também a folha morta, o outono, a tristeza. É uma degradação, uma espécie de casamento rebaixador das coisas puras,” (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2007, p. 198) podemos compreender o marrom como uma extensão das próprias personagens. Conforme exploramos mais tarde em nosso trabalho, tanto em “Cambio de armas” com a presença da planta, quanto em “A imitação da rosa” com a presença das flores, acontece uma fusão entre as protagonistas e esse ser que, embora inanimado, é repleto de vida.