BÁRBARA DE ALENCAR, DE INIMIGA DO REI A HEROÍNA NACIONAL: PERCURSOS DA IMAGINAÇÃO HISTÓRICA E MODELOS DE REPRESENTAÇÃO LITERÁRIA – Cláudia Luna


Cláudia Luna

Universidade Federal do Rio de Janeiro

 
RESUMO: Durante a tarefa de resgate da participação feminina nas lutas pela independência do Brasil, nos deparamos com a figura ímpar de Bárbara de Alencar. Matriarca do Crato e ativa na Revolução de 1817, será considerada inimiga do Rei pela historiografia oficial. No entanto, sob o viés do imaginário popular e regional, será progressivamente enaltecida e valorizada como heroína. Neste trabalho, apresentaremos uma visão geral das obras literárias em que foi representada, destacando alguns processos de construção do mito, a partir da figura da mártir cristã e da transculturação com figuras-chave do imaginário de matriz africana. Ao mesmo tempo, destacaremos alguns elementos do diálogo entre discurso historiográfico e relato ficcional, em especial o romance de extração histórica.
 
PALAVRAS-CHAVE: Bárbara de Alencar – independência –- poder – imaginário – literatura e história
 
ABSTRACT: Searching for women participation in the fights for the independence of Brazil, we find the unique figure of Bárbara de Alencar, a  matriarch from the city of Crato, in Ceará, who participated in the Revolution of 1817 and was considered the King’s enemy by the official historiography. However, with time she became appreciated as a heroine by the popular and regional imaginary. This paper will present an overview of her representation in Brazilian literature and will analyze some processes of the construction of her as a myth, through her association with the Christian martyrs and by the transculturation process with the African imaginary. It will also present some elements of the dialogue between the historiographic discourse and some literary works, especially novels with historic impregnation.
 
KEYWORDS: Bárbara de Alencar – independence – power – imaginary – literature and history
 
MINICURRÍCULO: Cláudia Luna é Professora Associada do Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas da UFRJ. Coordena o Diretório de Pesquisa MAR (Modernidade/alteridade/representação), certificado pelo CNPq. Tem artigos publicados em periódicos como Gragoatá, Ipotesi, Excavatio, Anuario de Estudios Hispánicos, Versus, entre outros. Publicou (em coautoria com Suely Reis Pinheiro) o livro Do riso e da luta: ensaios sobre Manuel Scorza; tem capítulos em livros do Brasil e do exterior. Participa como pesquisadora da REDE DE ESTUDOS ANDINOS e do CEMHAL (Lima); é membro do GT Mulher e Literatura, da Anpoll.
 
BÁRBARA DE ALENCAR, DE INIMIGA DO REI A HEROÍNA NACIONAL: PERCURSOS DA IMAGINAÇÃO HISTÓRICA E MODELOS DE REPRESENTAÇÃO LITERÁRIA
Cláudia Luna
 
  Universidade Federal do Rio de Janeiro
 
O SOLDADO: Sob as ordens do Rei, Senhora, o Capitão-Mor impõe-vos prisão por alta traição.
DONA BÁRBARA: Do que seja traição não tendes noção.  Se traí, sim, ao Rei, não traí à Nação.                                                        
O SOLDADO: Pouco importa, Senhora, vossa austeridade: Sofrereis punição por lesa-majestade! 
Álvares Aquino
Um dos mais férteis campos de estudo, atualmente, tem sido o do resgate da participação feminina em momentos chave da história, revisando os padrões da historiografia oficial, que as relegava a figurantes. Entre 1809 e 1825 se tornaram independentes as principais nações do continente latino-americano. De nossa independência, emergem algumas “heroínas”, como Joana Angélica ou Maria Quitéria, figuras de exceção num universo masculino.
No entanto, outras mulheres tiveram participação ativa nas lutas de emancipação do Brasil, embora sua atuação tenha ocorrido em outras trincheiras. Neste trabalho vamos examinar a figura de Bárbara de Alencar, as formas como passou à posterioridade, na historiografia, e como tem sido representada em termos literários. Matriarca do Crato (Cariri) participou na Revolução de 1817, no Nordeste brasileiro, um movimento que antecipava os anseios de libertação da metrópole, preconizando o modelo republicano em pleno período colonial. Como analisa o historiador Denis Bernardes:
 
Ao quebrar um dos pilares secularmente construídos da identidade portuguesa, o da tradicional fidelidade dos vassalos de sua Majestade Fidelíssima, 1817 foi a mais ousada e radical tentativa de enfrentamento até então vivido pela Monarquia portuguesa em toda a sua história (2006, p. 205).
 
Funda-se uma nova soberania em solo real, e “uma parte importante da monarquia funda uma outra soberania e lança-se no crime de separar-se do corpo do Rei, de não ser mais simbólica e praticamente, parte dele” (ibidem, p. 205). Por esta razão, embora a República tenha durado poucos dias, sua repressão durou cerca de quatro anos e a “consequente restauração da ordem monárquica” somente se fecha em 1821, com a revolução do Porto.
Em 1817, Bárbara, já viúva, administrava os negócios da família e tinha grande influência na vida política e cultural da região do Cariri. Portanto, seu apoio ao movimento terá grande repercussão. Trazido por seu filho, José Martiniano, o movimento rebelionário proclamará a República, no Crato, em três de maio, com adesão de parte do clero e da elite local. No entanto, em poucos dias a repressão avança sobre a região, liderada pelo Capitão-mor José Pereira Filgueiras, inimigo político da família Alencar. Primeiramente são presos os filhos de Bárbara; dias depois, ela é aprisionada e levada para o calabouço do Forte, em Fortaleza. Daí, penará em prisões de Recife e Salvador. Libertada em fins de 1820, somente em inícios de 1821 os tribunais declaram nula a devassa contra os insurgentes.
Em nossas pesquisas sobre a personagem, não encontramos documentos de sua lavra. No entanto, vários estudiosos fazem referência a seu letramento e cultura, como Irineu Pinheiro, um dos principais historiadores cearenses, que comenta sobre correspondência trocada entre Bárbara e o filho; ao mesmo tempo, é sabido que ela tinha contato estreito com o padre maçom Manuel de Arruda Câmara e com os ilustrados pernambucanos, em Olinda. Talvez a queima dos documentos no Crato, logo após as prisões, para impedir a devassa (o que, afinal, permitiria o perdão real, anos depois), tenha destruído material importante de sua autoria. De toda forma, como observa Ariadne Araújo, “De rica, com prestígio moral e político, Bárbara de Alencar retorna envelhecida, sem os bens que herdara e comprara e com a alcunha de traidora da pátria” (2002, p. 33).  Além disso, seus inimigos políticos começam a acusá-la de adúltera.
Em 1824, ocorre a Confederação do Equador, da qual participará novamente a família Alencar, com o saldo de nove mortos, dentre eles seu filho Tristão Gonçalves.    Com a abdicação de Pedro I, em abril de 1831, partidários da Restauração lideram revolução violenta no Nordeste, liderada pelo caudilho Pinto Madeira, inimigo pessoal dos Alencar. Dona Bárbara, temendo a violência que costumava rondar a família nos períodos de turbulência política, abriga-se no Piauí, mas não resiste às agruras da viagem e morre, em 1833.
Em suma, a participação de Bárbara é registrada em diversos documentos, lembrada e reivindicada por muitos de seus parentes, descendentes e correligionários. Evidentemente a notável carreira política do filho fará com que a família mantenha íntima relação com a vida pública do país. Afinal, José Martiniano, pai do autor de Iracema, foi presidente da Província do Ceará e Senador do Império, considerado o político de maior prestígio em todo o Nordeste, segundo Capistrano de Abreu. É certo que a presença dos Alencar e dos Araripe se estende até hoje no país, incluindo políticos e intelectuais, artistas e pesquisadores. De certa forma, poderíamos associá-los a uma vertente da historiografia brasileira que não foi a vitoriosa, nos inícios do IHGB, ao contrário do projeto de Varnhagen, baseado nos grandes feitos dos grandes homens. Como já vimos, se vincula a outra linhagem, à de Capistrano de Abreu, que propõe um modelo de história que contempla o regionalismo e a diversidade, acolhendo a memória oral e as culturas populares.
Se a voz do povo é, afinal, a voz de Deus, será através deste viés que se perpetuará dona Bárbara de Alencar. Como lembram Raquel de Queiroz (uma de suas descendentes) e Heloisa Buarque de Hollanda, no já mencionado estudo: “A Corte não perdoou a ousadia de Bárbara. Durante cerca de quatro anos, ela, bem como os filhos, andou presa, algemada, constantemente transferida de uma capital para outra, do Ceará à Bahia. (…). A matriarca, avó do escritor José de Alencar, morreu na década de 60 do século XIX” (          QUEIROZ, s/d).
O emprego do termo não é casual. Se investigamos a figura da matriarca e sua linhagem chegamos à matriz bíblica. No Antigo Testamento, mais precisamente, no Pentateuco, utilizam-se com frequência os termos “patriarca” e “matriarca” como referência aos ancestrais fundadores.  Como explica John Baldoch, “devido às repetidas promessas dadas por Deus às matriarcas de que seus filhos se tornariam ‘uma grande nação’, as histórias das matriarcas provêm das origens genealógicas dos grupos tribais e nações que povoaram o Oriente Médio” (p. 22). Ao mesmo tempo, algumas das maiores matriarcas, como Sara, Rebeca e Raquel eram estéreis, e somente concebem por atos da vontade divina.
É notório que o Nordeste brasileiro é uma região marcada por intensa religiosidade e por uma grande influência cultural de modelos populares advindos da Península Ibérica, como os autos ou festas populares. Ao lado da cultura letrada, grandes manifestações populares e um extenso calendário religioso se processam. Da mesma forma, pode-se imaginar a leitura da Bíblia como ato coletivo, unindo as famílias e agregados, após as lides do dia. Pois o modelo retórico ali está, repetidamente. Trata-se de dado de identificação pessoal, através da genealogia. O recurso é quase uma constante, por exemplo, nos artigos da Revista Itaytera, publicação do Instituto Cultural do Cariri, e nos prólogos de alguns das obras aqui analisadas.
Da Bíblia também podemos recolher os primeiros relatos sobre as mártires.  Em Macabeus (BALDOCK, p. 186) há referência a uma mulher martirizada pelo governador selêucida Antíoco IV, que combatia os judeus e ataca Jerusalém no século II A.C. Ante a recusa da mulher e de seus sete filhos em profanar sua religião, mesmo após tortura, o governador executou seis de seus filhos na frente da mãe. Quanto ao último filho, ele propôs a ela que o convencesse a renunciar a sua religião, mas ela, ao contrário, o encorajou ao sacrifício. Furioso, o governador ordena que mãe e filho sejam trucidados de forma cruel. Temos, portanto, também, o padrão retórico da mãe valente, da mãe coragem, que não se intimida ante o sacrifício de seus filhos.
Examinando a santidade feminina na Antiguidade e na Idade Média, delineiam-se alguns perfis, como as duas Macrinas, a Velha, viúva caridosa, e a Nova, modelo de virgem consagrada. Finalmente, o da rainha santa, cujo modelo fundador foi a da imperatriz Elena, mãe de Constantino. Explica a medievalista Miriam Impellizieri Silva que “são três os papéis da mulher, não apenas na sociedade, mas também na santidade. Virgem, viúva, mãe.” (ibidem, p. 179-180).  Sob este prisma, podemos perceber o quanto a figura de Bárbara assimila diversos aspectos destes modelos hagiográficos, associando-se a personagens e situações bastante comuns ao universo popular.
O certo é que em 1917, quando se comemorou o Centenário da Revolução de 1817, organizaram-se festas cívicas em Belém, das quais participou o autor José Carvalho, com o drama “D. Bárbara”. Em artigo de 1920, para a Revista do Instituto do Ceará, Carvalho refuta as críticas à honra de Bárbara, assegurando sua virtude através do testemunho de sua própria bisavó: “D. Luísa, que sempre conviveu com D. Bárbara, foi toda a vida, no seio da família, uma calorosa defensora das austeras virtudes de sua sogra” (CARVALHO, 1920, p. 297). No decorrer do século XX o nome de Bárbara de Alencar será reivindicado como modelo e exemplo de mulher guerreira, símbolo da resistência e luta pela liberdade.
Nos anos setenta do século passado, o poeta Caetano Ximenes de Aragão publica o Romanceiro de Bárbara, conjunto de poemas em que exalta a heroína da liberdade, obra que dialoga claramente com o Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles. Um dos mais belos poemas é “Dia da libertação”, onde canta que:
 
“(…) pelas vertentes da noite/ a manhã já se fazia/ quando Iansã abriu as grades/ das cadeias da Bahia/ pra ver Bárbara passar/ por dentro da luz do dia// dia pleno de orixás/cavalgando a ventania/Ogum Oxum Olorun/ vento alvo alvenaria/ de cabelos cor de cal/ que de seu rosto escorria// do corpo dos encantados/ a noite se fez em dia/ tocaram todos os sinos/ das igrejas da Bahia/ pra ver Bárbara passar/ por dentro da luz do dia” (1975, p. 66).
 
Percebemos aqui, outro tópico que colabora na construção do mito Bárbara de Alencar. Trata-se do processo de transculturação que ocorre entre a pernambucana e duas homônimas: Santa Bárbara e Iansã. A hagiografia da santa, expressa em autos, como o Auto de Santa Bárbara, de Afonso Álvares, se detém nos martírios e vexames que sofre a donzela por sua fidelidade ao nascente Cristianismo. Quanto a Iansã, Orixá dos raios e das tormentas, era divindade africana do Rio Niger, que chega ao Brasil nos navios negreiros.
Os exemplos de transculturação estão presentes em diversas manifestações culturais, como na arte santeira, onde ocorre a representação de imagens dos ibeiji com anatomia de anjos barrocos, ou peças articuladas de madeira, onde ocorre o sincretismo entre a figura africana e a católica. Tais elementos ocorrem na maioria das obras em que será retratada e representada, nas artes plásticas (como o belíssimo quadro “Bárbara de Alencar: heroína do Ceará/ Mãe da Independência e da República do Brasil”, de Oscar Araripe) ou no cancioneiro popular (vide a canção “Passeio Público”, do compositor Ednardo), entre outras manifestações.
Em termos literários, pudemos encontrar uma série de obras que transitam entre o histórico e o literário, o biográfico e o ficcional. Sua biografia será apresentada em diversos gêneros, que têm em comum o caráter laudatório, e busca do efeito de fidelidade histórica, através das listagens bibliográficas que finalizam a maioria delas; ou a vinculação da heroína a um dos estados brasileiros do Nordeste. Ela será reivindicada em Pernambuco, onde nasceu; no Ceará, onde viveu os grandes episódios revolucionários e foi presa; no Piauí, onde se abrigou no final da vida e morreu. É evidente ocaráter de resgate que tais obras apresentam, reivindicando para o panteão nacional dos heróis da pátria a figura de Bárbara, o que, aliás, se concretizou há poucos anos, a partir de projeto de lei de Ana Arraes.
Dentre tais obras, destacaríamos algumas.No MemorialdeBárbaradeAlencar, de Alves Aquino, escrito trinta anos após o Romanceiro, de Aragão, o autor faz sua sequencia simbólica, associando elementos intertextuais com a dramaturgia, em especial Morte e vidaSeverina, de João Cabral de Mello Neto, e a estética da cinematografia de Glauber Rocha, em especial, DeuseoDiabonaTerradoSol, com quem dialoga nos poemas de sua “Glauberiana” (2011, p. 91-92). O Memorial consta de 64 poemas, em que o autor enfatiza o sofrimento nas prisões, como no poema 38, em que Bárbara fala aos insetos: “Irmãos de exílio e de gueto/ Sabei que vos tenho afeto:/não difere em nada quem/ se sente inseto também” (p. 54); ou no poema 48: “1-2 passos e a baliza./ 1-2 passos e barreira./ (Tão circunscrita a fronteira/ quanto a mente monarquista)” (p. 60).
Em 1992 é publicado O romance de Bárbara, de Luciana Barbosa Nobre. Nele, através do recurso ao onírico, a narradora dialoga com a própria Bárbara que lhe narra a história, relatando sua luta e os ideais que movia seu grupo. No dizer da personagem: “não era a Coroa que nos seduzia, mas a possibilidade de podermos escolher livremente os nossos mandatários” (NOBRE, 1992, p. 30). Ao final da narrativa há bibliografia, atestando a veracidade dos dados ficcionalizados.
Quanto ao romance Bárbara de Alencar, a guerreira do Brasil (2001), de Roberto Gaspar, merecem destaque dois episódios. Um deles é a versão para a queima dos documentos, que teria sido feita por Dona Mathilde Teles, antiga inimiga e senhora do sítio Miranda, que, no entanto, acolhe Bárbara em sua fuga e manda recolher os documentos: “Meu filho, diz Mathilde, traga estes documentos: os Proclamas, os Decretos e a Ata assinada por todos os presentes àquela sessão. Não quero que ninguém do Crato seja morto por causa desses papéis” (GASPAR, 2001, p. 48).
O outro é o relato do nascimento de Bárbara: “O silêncio da noite foi quebrado por um choro muito fraco de criança. Uma estrela vermelha brilhou no céu, ofuscando o dia. Haveria em tudo isso uma predestinação?” (p. 72). Batizada Bárbara em homenagem à Santa, “Bárbara ou Barbinha, chorava, sem grandes chances de sobreviver, mas, resistiu e sobreviveu” (p. 72). O narrador relata o ataque dos índios Açus liderados por Itamaragibe à fazenda Caiçara, local onde se situara no passado a taba de seus antepassados. A casa de taipa foi incendiada, mas o bebê foi resgatado por Maria Preta, que fugiu com Teodora. Posteriormente os fazendeiros derrotaram os índios, e “no local da casa de taipa da fazenda Caiçara, ergueu-se uma casa de pedra, com paredes colossais, resistentes ao fogo, à bala e até, ao próprio tempo, a fim de que servisse de testemunha secular às gerações vindouras” (p. 73).
Outro texto a mencionar é o libreto BárbaradeAlencar (avódoromancistaJosédeAlencar): vida e mortenosertãodoPiauí, impresso em 2011, na cidade de Fronteiras. O padrão retórico aqui é o bíblico, como já vimos.  Na obra se exalta a heroína, ressaltando seu exílio forçado no Piauí, no fim da vida, e sua morte na cidade de Fronteiras. Ao mesmo tempo, destaca a grande descendência ali deixada: Alencar, Arraes e Antão, em suas palavras, uma “prole imensurável”. Exalta-a como grande guerreira, grande heroína, grandiosa Nordestina, orgulho local.
Neste poema narrativo apresenta o relato da vida da heroína e seus feitos, sob modelo épico. No caso, o regional, o Cariri. Constam os seguintes tópicos: a luta pela independência em relação a Portugal; a figura do herói perseguido e sofredor; a passagem da glória à execração e à solidão. O narrador assume a função de um justiceiro, do vate popular, que resgata para a história a figura da heroína. Insere-se claramente no modelo do cancioneiro popular: trata-se de relatos paralelos à história oficial. Pode-se observar a semelhança, por exemplo, com o CantoGeneral, de Neruda.
Finalmente, em fevereiro de 2014 é publicado o romance Semíramis, da escritora Ana Miranda. Podemos considerá-lo uma narrativa de extração histórica. Nela, o romancista José de Alencar torna-se personagem do relato da personagem-narradoraIriana. Através das cartas trocadas entre esta e sua irmã, Semíramis, recria-se a trajetória romanesca de Alencar, ali tratado como o Cazuzinha, que Iriana conheceu ainda no berço. A autora estabelece diálogo tanto com a série literária, no caso, os romances de Alencar, como com outros gêneros discursivos, como as cartas e os diários. Na verdade, a estrutura da obra dialoga com os processos de verossimilhança típicos do romance do século XIX: o efeito de fidelidade e o efeito do real. A obra elabora versões para a gênese de alguns romances, em um processo de espelhismo em que se simula dissolver as fronteiras entre história e imaginação, revelando a invenção dentro da invenção.Iriana, a mediadora entre os acontecimentos e o leitor, destaca atenção especial a uma certa figura: dona Bárbara de Alencar, caracterizada como figura de poder na região e objeto da devoção de seu avô, para desgosto da avó da menina. Através do olhar enternecido e respeitoso do avô, desenha-se a homenagem da autora.
Neste cenário em que “as lembranças ainda galopavam pelas ruas, dando tiros” (p. 15), mencionam-se a chegada de Arruda Câmara à vila do Crato, em 1810, e fragmentos de sua carta testamento. Destaca-se a bravura e o caráter excepcional da matriarca: “Dona Bárbara flanava num mundo de grandes tramas” ou “Dona Bárbara estava acima de qualquer desdita política” (MIRANDA, 2014, p. 15). Representante da “aristocracia guerreira” local,é descrita como afável e seca, franca e impressiva; capaz, experimentada, rude e corajosa. Nada acontecia na região sem passar por seu crivo. O perfil idealizante se acentua: “Dona Bárbara não era só poderosa na região; ela atraía, tinha uma força estranha” (ibidem, p. 29).
Seguramente a figura da pernambucana tem canalizado o interesse de escritores e intelectuais do Nordeste Brasileiro, servido de referencial para perseguidos políticos e movimentos de resistência ao longo do século XX e no presente.  Nesse cenário, ocorre um de diálogo permanente entre os documentos históricos, os relatos orais e as memórias familiares, formas da cultura popular e textos de perfil literário. Cada um deles contribui, a seu modo, para a exaltação da personagem histórica e a construção do mito Bárbara de Alencar.1
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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GOMES, Juran. Bárbara de Alencar (avó do romancista José de Alencar). Vida e morte no sertão do Piauí. Fronteiras. PI: Gráfica Brito, 2011
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MEIA-TIGELA, O poeta de. (Pseudônimo de Alves de Aquino).  Memorial Bárbara de Alencar & outros poemas. 2ª ed. Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2011.
MIRANDA, Ana. Semíramis. Romance. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
NOBRE, Luciana Barbosa. O romance de Bárbara. Rio de Janeiro: Editora Revista das Academias de Letras, 1982.
QUEIROZ, Raquel & HOLLANDA, Heloisa Buarque. Matriarcas do Ceará. D. Federalina de Lavras. www.heloisabuarquedehollanda.com.br/matriarcas-do-ceará-d-fidelina-de-lavras. Acesso em 8 de julho de 2015.
SILVA, Miriam Impellizieri. Santidade feminina na Gália Merovíngia: Radegunda de Poitiers. In: CÂNDIDO, Maria Regina, org. Práticas religiosas no Mediterrâneo Antigo. Rio de Janeiro: NEA/ PPGH/UERJ, 2011. p. 175-189.
TROUCHE, André. América: história e ficção. Niterói: EdUFF, 2006.
 
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NOTA
1 Neste artigo apresentamos um recorte de nossa pesquisa de Pós-doutorado na USP sobre “Mulheres Independentes/mulheres nas independências: representação e poder em Carlota Joaquina e Bárbara de Alencar”, com supervisão de Maria Lígia Coelho Prado.