AS MULHERES EM LUANDA: UMA LEITURA DO FEMININO NA OBRA O TÍMIDO E AS MULHERES, DE PEPETELA
Elaine Cristina Andrade Pereira
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Resumo: Este texto tem por objetivo analisar as principais personagens femininas da obra O tímido e as mulheres (2008), do escritor Pepetela (pseudônimo de Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos). Tal leitura busca verificar como o ficcionista angolano construiu as suas personagens femininas de maneira a representar a realidade contemporânea da mulher em Angola, tendo como pano de fundo a própria capital Luanda em pleno processo de (re)construção maciça. Para a escrita deste artigo, foram pertinentes os estudos dos pesquisadores Alberto Oliveira Pinto (2006), Maria Aparecida Ribeira (1992), Selma Pantoja (2008) e Tânia Macedo (2008).
Palavras-chave: Mulher. Coisificação. Mulher quitandeira. Luanda.
Abstract: This text aims at analyzing the main female characters of the novel The Timid Man and Women (2008), by the Angolan writer Pepetela (pen-name for Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos). Our reading tries to see how he built his female characters in this novel so as to represent the contemporary reality of women in his country. He uses as his background Angola and its capital Luanda, which is under the process of a massive (re)construction. The writing of this article benefited from the contributions by the researchers Alberto Oliveira Pinto (2006), Maria Aparecida Ribeira (1992), Selma Pantoja (2008) and Tania Macedo (2008).
Keywords: Woman. Reification. Female mobile vendor (stallholder). Luanda.
Minicurrículo: Doutoranda em Literaturas de Língua Portuguesa, área de concentração Literaturas de língua africana. Linha de pesquisa Identidade e alteridade na literatura. Mestra em Literaturas de língua portuguesa, área de concentração Literaturas de língua africana. Linha de pesquisa Identidade e alteridade na literatura. Graduada em Letras (Português/Espanhol) pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
AS MULHERES EM LUANDA: UMA LEITURA DO FEMININO NA OBRA O TÍMIDO E AS MULHERES,
DE PEPETELA
Elaine Cristina Andrade Pereira
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Publicada no ano de 2013, a obra O tímido e as mulheres do autor Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos – o Pepetela – retrata, de maneira irônica e peculiar, o atual cenário da sociedade angolana. O foco da narrativa é a discussão das questões femininas dentro da capital Luanda, o que poderia remeter, até mesmo, a todo o país. A obra gira em torno do protagonista Heitor, um jovem historiador, aspirante na escrita literária que, desde a infância, demonstra uma clara dificuldade particular em se relacionar com indivíduos do sexo feminino. Tal fator teria aumentado quando ele se decepcionou amorosamente com uma moça chamada Tatiana, que o trocou por outro homem, sem aparentar lhe dedicar nenhuma consideração.
Essa evidência parece tornar interessante a maneira dessa personagem lidar e interpretar as várias mulheres que passam por todo o seu caminho ao longo da obra. Heitor, em seu perfil, demonstra ser um jovem curioso e questionador quanto aos principais conceitos sociais acerca do feminino que estão arraigados na cultura angolana.
De acordo com o estudioso Alberto Oliveira Pinto, “a mulher africana foi sempre encarada pelos colonos portugueses tão somente enquanto um instrumento de dominação, sobre os espaços e sobre os homens colonizados” (PINTO, 2007, p. 48). É relevante esta observação do estudioso, uma vez que, tal premissa colaborou para o relativo conceito social angolano, referente a mulher, legando ao gênero feminino o cunho sexual manipulador pejorativo, uma vez que, durante o período colonial do continente, a mulher africana se envolvia sexualmente com os brancos colonizadores europeus com o intuito de gerar filhos miscigenados, como forma de buscar uma ascensão social, o que possibilitaria a sua saída da condição de escrava. Todavia, contrariando as expectativas tradicionais angolanas, as personagens femininas principais na obra O tímido e as mulheres (PEPETELA, 2014), demonstram não apresentar tais perfis tradicionais, muito pelo contrário, perpassam um senso comum pré-definido e esperado.
No enredo da narrativa em questão, Pepetela, lança mão de várias personagens femininas que circulam pela capital angolana em processo de (re)construção, em movimentos constantes, oriundos do período pós-independente. Para esta análise, foram selecionadas as personagens Marisa e dona Luzitu, pois pela maneira como o autor engendra as histórias cotidianas e corriqueiras dessas mulheres, nos parece possível esboçar, ainda que simbolicamente, as mulheres angolanas que fazem parte do cenário central e periférico do país, colaborando ativamente para com o seu processo de modelamento urbano e social.
A encenação das mulheres de Luanda neste romance (PEPETELA, 2014) aparenta transparecer as muitas tensões que norteiam o cenário público de Luanda, que são marcadas por intensas contradições. De maneira mais intensa, tais paradoxos luandenses aparentam ser indicadas pela personagem Marisa, conforme pontuaremos posteriormente.
Senhora de um temperamento forte e valente, a personagem Luzitu é também dona de uma biografia valente e triste, atrelada a história das guerras de libertação angolana, que lhe ceifaram o marido e dois de seus filhos. Moradora da periferia abastada da cidade, Luzitu desempenha a função de zungueira [vendedora ambulante] para se manter e manter também a sua família, o que a possibilita circular pelos vários espaços suburbanos da capital Luanda. Tal atividade profissional é tradicionalmente angolana, sendo ela herdeira de uma outra atividade feminina denominada quitandeira.
Desde os tempos coloniais as mulheres quitandeiras já se destacavam em Luanda por abastecerem os navios que ali aportavam por meio do comércio de mantimentos e utensílios básicos, e por isso indispensáveis. A aproximação com a multiplicidade da população no país, bem como os navegadores que passavam pelo porto de Luanda, possibilitaram às quitandeiras se tornarem as protagonistas de uma rede de relações dentro do país, como será abordado no decorrer desse texto.
Dessa forma, as mazelas femininas são exploradas e expostas na obra em análise, em uma perspectiva inovadora, como se o autor Pepetela buscasse remeter ao passado, mas se desvencilhando dele para contar a sua narrativa. De fato, a capital Luanda tem um papel importante dentro da história, e consequentemente, dentro da literatura do país, por ter esta cidade acompanhado o processo colonial e pós-colonial de Angola. Sendo assim, nos parece correto afirmar que a escolha do autor Pepetela como ambiente predominante da obra aqui examinada (PEPETELA, 2014) não foi por acaso.
Inspirados, ainda que tardiamente, pelos ecos do movimento Negritude que eclodiram na França em meados da década de 1930, os países africanos de língua portuguesa, perceberam que havia realmente a necessidade de romper, definitivamente, com o colonizador europeu, juntando forças para lutarem, literalmente, pela liberdade tão desejada, se fazendo ouvir de uma vez por todas.
Nesse aspecto, de acordo com Tânia Macedo (2008), o povo africano elegeu a cidade colonial africana como o espaço no qual se daria a batalha fundamental contra o colonialismo europeu, “pois é na cidade colonizada que as contradições são exacerbadas ao máximo e, portanto, o terreno será fértil às mudanças” (MACEDO, 2008, p. 112). Sendo assim, Luanda passou a se impor como modelo e referência na luta pela libertação africana.
Segundo a estudiosa Maria Aparecida Ribeiro (1992), durante a década de 1950, a escrita angolana passou por um processo de conscientização histórica e literária, o que implicaria em, além da busca por uma identidade autêntica, no questionamento de valores culturais. Sendo assim, ainda segundo a pesquisadora, “Luanda surge, então, como metonímia de uma Angola onde secam as mulembas [árvore de frutos comestíveis e de grande porte] e a harmonia cede lugar à tensão” (RIBEIRO, 1992, p. 85).
Nessa perspectiva, a literatura passa a questionar antigos conflitos coloniais, incluindo nesta questão o papel da mulher em Angola, por meio de uma atitude crítica e questionadora aparente, o que proporcionou vários estudos acerca das mazelas femininas:
Signo da cidade em mudança e das mudanças da cidade, a mulher aparece com frequência nos textos. Seguindo as pistas será possível ver, nos desenhos de suas imagens, a terra de que o nativo vai perdendo a posse, o corpo vulnerável, que se torna arma e armadura na defesa de um corpo maior (RIBEIRO, 1992, p. 86).
É interessante observar que, apesar dos conceitos coloniais acerca do gênero feminino terem engessado a mulher angolana dentro de um estereótipo submisso, sensual e não ativo, Pepetela, na obra O tímido e as mulheres (PEPETELA, 2014), seguindo esta linhagem literária pós-colonial, traz à tona, personagens femininas fortes, independentes, promissoras, capazes e cheias de vida, coragem e determinação, como são os perfis das personagens Marisa e dona Luzitu. Tais personagens lançariam mão dos recursos sociais dos ambientes nos quais viviam, bem como as condições específicas nas quais estão inseridas para fazer a diferença no meio que frequentavam.
Jovem, negra, atraente e muito bem-sucedida, a personagem Marisa esbanja autonomia e consciência humana na obra em questão (PEPETELA, 2014). Dona de uma voz sedutora e uma formação profissional incomum para uma mulher em seu meio, essa personagem se destaca na obra de Pepetela por, além de outras características subjetivas, lançar mão da sua função social para dar voz a mulher angolana. Radialista, Marisa, em seu programa diário, de maneira sutil denunciava irregularidades e excessos dentro da sociedade luandense:
Marisa era jornalista, trabalhava numa rádio. Animava mesmo um programa matinal, com muita conversa, recados vários. Um programa alegre como ela. No entanto, não era despreocupada. E aproveitava de vez em quando para criticar atitudes, comportamentos, situações (PEPETELA, 2014, p. 13).
Apaixonada pela capital Luanda, onde reside com o marido, Marisa é casada com um homem incomum para o conceito popular de marido ideal. Ela se organiza de maneira genial para dar conta do trabalho que adora, e do cônjuge deficiente que aparenta amar sinceramente.
Seu marido é um homem encantador, segundo expressa a própria jornalista. Mesmo sendo mais velho do que a esposa, e portador de uma deformidade física genética que o prendia a uma cadeira de rodas, Marisa demonstra na obra de Pepetela, sentir um amor sincero, uma ternura profunda e um grande respeito pelo marido, que a completava. Tal completude seria referente ao fato de Lucrécio ser um homem com pensamentos libertários, o que talvez, Marisa não teria encontrado nos outros pretendentes que teve em seu país, nos tempos de solteira:
Esse era o fato o seu marido, que se moldou a si próprio, produto de muito estudo e pensamento, como alguns personagens do século XIX que ela encontrara em escritos antigos. Uma pessoa que, nunca poderia ser derrotada, pois não impunha e não se deixava dominar, pelo menos o seu cérebro (PEPETELA, 2014, p. 25).
Essa aparente predileção da personagem Marisa por homens com o intelecto aguçado parece correr na contramão das expectativas sociais, que se ancoram em características críticas e cognitivas menos desenvolvidas do que aquelas apresentadas por Lucrécio, sobretudo ao que concerne a questão da mulher dentro do país. O casal Marisa e Lucrécio morava na parte mais abastada da cidade, o que não impede a jovem de enxergar os problemas aparentes que a capital encena, denunciando-os em seu programa matinal.
Em meio as pautas que elaborava para apresentar seu programa de rádio, Marisa sempre procurava abarcar temas polêmicos, no entanto importantes, para com as questões mal resolvidas em Luanda. Casos de adultério, violência contra a mulher e até mesmo questões políticas ganhavam destaque em suas pautas, ricamente construídas e desenvolvidas por ela mesma. Tal façanha era realizada nas entrelinhas, uma vez que, uma discussão aberta, poderia lhe gerar sérios problemas, especialmente por se tratar de um programa popular de Luanda, que atingia a vários grupos sociais da capital angolana.
Tal premissa poderia ser exemplificada na passagem do texto de Pepetela, em que a radialista expressa a sua artimanha, fazendo assim emergir contradições luandenses. Em meio aos fatos corriqueiros ocorridos em Luanda que deve noticiar involuntariamente, destacaram-se aqueles referentes a“as molengonas das mulheres se arrastando pelas casas” (PEPETELA, 2014, p. 15). Para Marisa:
O termo molengona não só é injusto, pois quem trabalha na cidade como no campo são as mulheres, os maridos se limitando a barafustar no trânsito todo o dia, como me saiu com raiva, pensou a radialista, defensora declarada da igualdade no género, e praticante. Mas assim nos tratam os imprestáveis machões, os burros, que nem percebem quanto os gozos nas entrelinhas (PEPETELA, 2014, p. 15).
Embora muitos duvidassem, Marisa era uma esposa fiel, zelosa e dedicada, que não media esforços para agradar o marido e manter bem e feliz o seu casamento, que lhe era tão importante. Mesmo sendo muito cobiçada pelo público masculino que ouvia o seu programa na rádio, bem como aquele outro grupo que a cercava em seu cotidiano, Marisa não se deixava abalar, mantinha uma postura fiel e discreta frente à toda sociedade luandense, bem como aos olhos do marido Lucrécio, que demonstrava ser bastante seguro com relação a fidelidade da esposa. Todavia, Marisa desenvolvia um comportamento peculiar em companhia de determinados homens que selecionava, em locais reservados, caso não estivesse ninguém olhando.
Tanta beleza e tanta sensualidade renderam à radialista, na obra de Pepetela, algumas situações embaraçosas, e uma fama, dentre os homens, de mulher amoral. A que mais se destaca, e mais se mostra pertinente a esta análise, se refere ao fato dessa personagem ter se tornado, no enredo da narrativa, o objeto de desejo e de curiosidade dos amigos de infância, Heitor, Lucas e Antunes, devido a sua fama de mulher “acendalha” (PEPETELA, 2014, p. 40): “uma substância que arde com o primeiro fósforo e depois fica um tempo largo a se consumir até fazer o carvão todo pegar fogo” (PEPETELA, 2014, p. 40).
De acordo com os estudos de Alberto Oliveira Pinto (2007), a tentativa da mulher negra africana em subir de classe social durante o período colonial, se oferecendo para manter relações sexuais com o colonizador, fez com que a mulher recebesse, desde então o estereótipo de “coisa”, ou seja, algo maleável que poderia ser usado, sem grandes considerações ou mesmo preocupações, dando início a um processo que o pesquisador chamou de “coisificação”.
Ainda segundo Pinto (2007), já era articulado nos espaços coloniais a ideia de subalternização da mulher negra africana e a sua predisposição ao ato sexual eventual. Além disso, os portugueses, teriam usado o sexo como um dos artifícios de colonização, como meio de manipular a população colonizada, o que teria tornado mais dificultosa a relação masculina para com a mulher dentro do continente. Tal premissa perduraria até a escrita literária contemporânea:
Esta concepção, mistificada até à actualidade em sectores relevantes das sociedades portuguesa e angolana veio a marcar os discursos políticos e científicos e a própria literatura colonial portuguesa posterior a 1953 (PINTO, 2007, p. 37).
Sendo assim, o trio de amigos Heitor, Lucas e Antunes parece lançar mão da fama de aventureira da radialista para colocar em xeque a sua moral feminina e, em consequência, a sua fidelidade ao marido Lucrécio, salientado assim, pelo menos de maneira aparente, mais uma contradição da sociedade luandense, sendo ela referente a moralidade da mulher no país. Ou seja, a sociedade cobraria da mulher uma postura correta – a de mulher fiel e submissa – mas a provocaria para que ela se destoasse desse perfil idealizado.
Dessa forma, parece-nos que tal posicionamento das personagens Heitor, Lucas e Antunes, de certa maneira, condiz com o conceito de “coisificação” da mulher em Angola, levantado por Alberto Oliveira Pinto (2007), uma vez que, além de ser mulher, Marisa era esposa de um homem deficiente e mais velho, sendo este perfil masculino o não ideal, pelo menos socialmente falando, para marido. Tais condições poderiam comprometer o seu desempenho sexual masculino, tornando assim a esposa insatisfeita sexualmente, além de tornar um transtorno a vida social de ambos, uma vez que a capital Luanda estava em processo de (re)construção. Este período da cidade dificultaria a locomoção de um cadeirante pela maior parte de sua área: “A cidade não estava preparada para facilitar a vida de ninguém com todas as faculdades, quanto mais a alguém com uma deficiência” (PEPETELA, 2014, p. 72).
Portanto, para o trio de amigos, tudo isso poderia ser mais uma motivação para a possível infidelidade conjugal de Marisa. Antunes, que também era jornalista, sabia bem o que diziam, no meio em que frequentavam, sobre Marisa: “A colega era conhecida como incendiária, punha os homens ao rubro e depois escapava, deixando-os exangues e de língua para fora” (PEPETELA, 2014, p. 40).
Para tentar descobrir se Marisa era realmente infiel ao marido, Antunes e Lucas elaboram o seguinte plano: o primeiro convidaria Marisa para gravar o áudio do livro que Heitor havia escrito, com o intuito de atraí-la até a residência onde o aspirante a escritor se escondia da vida e das decepções femininas que ela lhe trouxe. Dessa maneira, estando longe do marido e do centro da cidade que sempre a observava, Marisa poderia se mostrar como “acendalha”, conforme a crença masculina luandense. Posteriormente, os dois amigos pediram a ajuda de Heitor para concluírem o plano.
Parece-nos interessante observar que, em um primeiro momento, embora, assim como os amigos, desejasse muito Marisa, Heitor duvidou em acreditar na fama de aventureira da sua radialista preferida. Tal verdade comprovaria o seu perfil de homem angolano questionador quanto aos conceitos arraigados na cultura do país, o que o afastaria de uma grande maioria masculina luandense. Para tanto, o protagonista analisou os fatos evidentes, expondo uma possível raiz do emblema que, teria imposto à Marisa, tal fama pejorativa e não comprovada, não esclarecida:
Imagina, uma miúda, casada com um paralítico (…). Paralítico e muito mais velho. Claro, todos os colegas e conhecidos acham, eis a presa fácil. Ela é fiel e afasta-os a todos. Despeitados, inventam essa da acendalha. Pura maldade (PEPETELA, 2014, p. 41).
Ao dar sequência ao plano que concordou em participar com os amigos Lucas e Antunes, Heitor acaba se tornando mais um dos homens que Marisa abandona repentinamente, antes de concluir o ato sexual, o que acabou comprovando a sua fama dentre os homens luandenses. Após ler, seminua, trechos do livro escrito por Heitor para um gravador, deitada na cama do rapaz, a jornalista se deixa envolver pelo jovem escritor, mas vai embora antes de consumar totalmente a relação carnal, deixando Heitor desolado: “Gostaria muito, mas não posso… Desculpa” (PEPETELA, 2014, p. 68), foi a única argumentação que Marisa manifestou antes de partir.
Parece-nos, mais uma vez, interessante salientar a postura da moça, ante a possibilidade de trair o marido Lucrécio, quebrando uma das regras mais sagradas do casamento, em várias culturas, não só na angolana. Além disso, a intenção voluntária da moça de provocar os homens, uma vez que, a sua ida à casa do jovem Heitor para ler o livro do rapaz, tirar a roupa, permanecendo apenas com as peças íntimas e deitar na cama do escritor, já demonstraria uma postura provocativa, audaciosa, enfim, que foge do padrão angolano esperado para uma mulher casada. Mas, qual seria a sua real intenção ao se comportar dessa forma?
Estaria Marisa tentando confrontar o universo masculino por meio da sua postura provocativa? Seria uma maneira da radialista provar, ou mostrar à sociedade angolana que a mulher não se resume a uma “coisa” que pode ser manipulada, usada e descartada simplesmente? De qualquer maneira, nos parece que, ao assediar os homens, mas não aceitar consumar o ato sexual, o que quebraria assim a regra sagrada da fidelidade no casamento, Marisa expressaria aos homens que a “testam”, que a mulher pode sim, também, dar voz a sua vontade, sem se deixar corromper, ou seja, sem burlar com a regra da fidelidade conjugal.
Afinal, ao confrontar os homens por meio da sexualidade, é Marisa quem aparenta manter o controle do jogo, o controle da situação propriamente dita. Tal posicionamento parece que a destoa do conceito de “coisificação” tradicional: “Sou mesmo uma sacana, pensou ela, se vendo a um espelho. Dissimulada, falsa, traidora. No entanto, sabia, amava Lucrécio, ele era o homem da sua vida. Complicado? Para ela, tão evidente” (PEPETELA, 2014, p. 153).
De acordo com os estudos de Tania Macedo (2008), durante os anos finais da década de 1950 e os anos iniciais da década de 1960, a capital Luanda foi o “cenário por excelência dos textos angolanos” (Macedo, 2008, p. 114). Segundo a pesquisadora, neste momento da história de Angola, os escritores se esforçaram, efetivamente, em dar realmente, a um projeto nacionalista, uma forma artística, que iniciava, naquele momento, sua organização política. Tal iniciativa foi enriquecida pelo fato de que, tais autores envolvidos nesse projeto, participaram ativamente, como simpatizantes ou até mesmo militantes, de tal momento político angolano, como é o caso do próprio ficcionista Pepetela.
Esse processo, ao ganhar forma artística, resultou “na criação de um novo espaço ficcional na literatura de Angola. É dessa maneira que, insistentemente na ficção angolana, a partir desse momento, as marcas do imaginário urbano recriado conformam os textos” (Macedo, 2008, p. 114). Dessa forma, de acordo com Tania Macêdo (2008), surge uma Luanda com o perfil de cidade cuja “fronteira do asfalto”, passa a dividir os bairros da Baixa, e os musseques [mocambos], a periferia excluída da cidade. Dentro desse contexto de (re) construção da literatura angolana, personagens reais da história do país passam a ganhar destaque dentro da ficção, como é o caso da mulher quitandeira, que desde o período colonial se faz importante para a história política e social de Angola.
De acordo com a pesquisadora Selma Pantoja (2008), as “quitandas” são espaços tipicamente africanos, embora pudessem (e ainda podem) ser encontradas em outras cidades litorâneas banhadas pelo Oceano Atlântico: “Espalhadas por todo o continente, esses espaços de troca que ficaram conhecidos, na região centro-ocidental da África, e mais especificadamente entre os povos mbundu, como Kitanda” (PANTOJA, 2008, p. 174). Ainda segundo Pantoja (2008), as quitandas se referem a locais de troca, onde os viajantes marítimos e a própria população local se abasteciam com mantimentos e utensílios básicos.
Quem trabalhava nessas quitandas, ou seja, quem comercializava as mercadorias eram mulheres denominadas quitandeiras, sendo elas, em sua grande maioria, negras e pobres que trabalhavam para sustentar suas próprias famílias. A autora Selma Pantoja (2008) ressalta também que, além das quitandeiras que trabalhavam em espaços fixos – no caso as quitandas – havia também as que trabalhavam de maneiras itinerante, ou seja, sem um ponto fixo de trabalho. Estas são denominadas quitandeiras ambulantes, como é o caso da personagem Luzitu, da obra O tímido e as mulheres (PEPETELA, 2014), conforme salientaremos a seguir.
Embora aparentam ser espaços agitados devido ao fluxo de pessoas, as quitandas, ainda segundo Selma Pantoja (2008), organizasse em um comércio urbano:
As quitandeiras se dividiam conforme suas especificidades: havia mulheres que só vendiam peixes, outras que ofereciam apenas comidas prontas e as que se dedicavam aos produtos da terra, como amuletos, pemba (argila branca usados em rituais religiosos), liamba (cânhamo) e a macanha (tabaco)”. Além da importância de abastecer a população e navegantes que passavam por Angola, as quitandeiras acabaram assumindo uma outra significância extremamente valiosa para como o país (PANTOJA, 2008, p. 176).
A conquista da independência que acarretou um novo momento angolano, ocasionou um certo desaparecimento das quitandas, e em consequência das quitandeiras. Na nova nação que se almeja construir não caberia essa figura típica dos flagelados, sobretudo pelo fato de que, os espaços nos quais se concentravam as quitandas eram considerados espaços nocivos a sociedade, por serem desagradáveis e mal cheirosos, o que fortaleceu o desejo do seu desaparecimento: “Desde o século XVII, a Câmara de Luanda tentava regulamentar esse comércio, obrigando as quitandeiras a tirar licença e cobrando multas das ilegais. No século XIX, foram erguidos prédios modernos para o funcionamento do pequeno comércio” (PANTOJA, 2008, p 176). Assim, a atividade de quitandeira não se findou aí, permanecendo nos espaços periféricos mais afastados dos grandes centros urbanos.
Ao ser rejeitado pela amada Tatiana, a personagem Heitor, na obra O tímido e as mulheres (PEPETELA, 2013), acaba se mudando voluntariamente para um local afastado do centro da cidade, como forma de se exilar do mundo: “Heitor largou a cidade, mudou mesmo nesse dia para um mato onde houvera cajueiros, cortados para o fabrico de carvão, fora da periferia construída” (PEPETELA, 2014, p. 27). Ao decidir comprar mudas de mangueira para plantar em um terreno próximo ao seu casebre, acaba conhecendo, durante uma viagem de candongueiro, dona Luzitu, personagem ilustre da obra de Pepetela, que reside justamente na periferia da cidade.
De acordo com os estudos de Maria Aparecida Ribeiro (1992), a literatura angolana ainda não registrava, até o período de reforma artística iniciado no final da década de 1950, uma mulher africana com consciência quanto a necessidade de luta, que almejava o rompimento com a alienação que lhe era imposta há tempos. Uma imagem mais comum e representativa da mulher, dentro da literatura angolana, se refere justamente a mulher quitandeira.
Antes da liberdade nacional, tal figura feminina era vista como apenas “o objeto do desejo de uma poesia que lançava a mulher africana um olhar exótico” (RIBEIRO, 1992, p. 86), quase irreal. A partir de demarcação de um projeto literário identitário, a mulher deixaria de ser em literatura um objeto, passando para a condição de sujeito ativo. Assim, a mulher quitandeira passou a demarcar um perfil bem diferente:
As quitandeiras dos romances, contos, novelas angolanos contemporâneos constituem verdadeiros símbolos do trabalho e da sagacidade, já que são responsáveis, não apenas pelo equilíbrio da vida familiar, pela economia doméstica, mas também pela educação dos filhos (MACÊDO, 2008, p. 126).
Tais considerações nos parecem poder serem atreladas ao perfil de dona Luzitu. Viúva respeitada de um antigo combatente que lutou contra os tugas, na Segunda Região, Cabinda, ela é uma personagem extremamente interessante. Traz em sua história de vida um rastro de tragédias familiares resultantes das guerras civis que assolaram Angola durante anos a fio, pois, além do marido, também havia perdido dois filhos militares em combates internos. Jacinto, o filho mais velho, era tenente, faleceu durante a guerra em Malanje no ano de 1994. Já o sargento Lírio, o seu segundo filho, foi morto em 1998, em Huambo.
De acordo com os estudos de Tânia Macedo (2008), a literatura angolana pós-colonial, passou a apresentar em suas linhas “uma galeria de tipos femininos cuja característica básica é o trabalho” (MACEDO, 2008, p. 125). Nascida na aldeia de Uíje, além de dona de casa e mãe zelosa, dona Luzitu exerce a função de zungueira na obra de Pepetela. Tal ofício se refere àquelas mulheres que praticam a zanga, uma espécie de comércio ambulante de alimentos e bebidas pelas ruas, o que lhe permiti transitar livremente por todas as áreas periféricas da cidade, bem como ter contato com várias espécies de pessoas.
Essa atividade refere-se à função de quitandeira ambulante, conforme pontuou Selma Pantoja (2008) em seu texto. Dona Luzitu é mãe de seis filhos, e procura se dedicar aos quatro que sobreviveram, dando a eles apoio moral e muita força para vencer na vida, mesmo sendo periféricos, excluídos socialmente: “Na moderna Angola, as zungueira são as herdeiras diretas [das quitandeiras], perambulando pelo confuso e variado comércio das ruas” (PANTOJA, 2008, p 176).
Tal personagem parece expor em sua postura e em sua fala, no decorrer da obra O tímido e as mulheres (PEPETELA, 2013), força, coragem e consciência política e social não esperadas em uma mulher inserida na sua realidade pós-independente, dona de uma história tão infeliz. Além disso, dona Luzitu por transitar por entre os vários espaços de Luanda – periféricos ou não – aparenta contribuir para com a transmissão de informações, uma vez que, articula bem as ideias relacionadas aos acontecimentos cotidianos sociais e políticos de Angola. Ao dialogar com Heitor, em uma passagem da obra, acerca de uma antiga promessa política de dar casas aos antigos combatentes, a zungueira desabafa:
Olha meu filho. Muitos já morreram, não receberam casa nem nada. Eu, uma viúva, é que vou receber? Eles combateram, ganharam, temos a independência. Os que aproveitam dela já têm muita coisa. Que interessa os que lutaram e não têm nada ou já morreram? (PEPETELA, 2014, p. 119).
Ao descrever o ambiente no qual reside com sua família, dona Luzitu descreve uma união entre os vizinhos do musseque, muitos deles conterrâneos seus da mesma aldeia: “Assim nos sentimos apoiados, se houver alguma coisa. E nos ajudamos, um pouco de sal, tomar conta dos filhos pequenos, se tem um óbito, ajuda assim…” (PEPETELA, 2014, p. 119). Essa aparente pré-disposição em ajudar ao próximo de maneira desinteressada, faz parte do perfil angolano da mulher quitandeira, como bem pontuou Selma Pantoja (2008), pois, segundo ela, as quitandeiras eram solidárias para com o próximo que fosse menos afortunado que elas.
Dessa forma, nos parece saliente a aproximação do perfil da personagem Luzitu, na obra O tímido e as mulheres, com a categorização de “mulher quitandeira”, levantada por Maria Aparecida Ribeiro (1992), Selma Pantoja (2008) e por Tania Macedo (2008). Apesar de se enquadrar aparentemente ao papel tradicional de mulher submissa, com atividades ligadas à família, como casa, marido e filhos, dona Luzitu se destaca, não só por demonstrar uma profunda força de vontade para trabalhar, sustentando assim a sua família, como também por se mostrar aberta e consciente quanto a realidade de Angola, bem como as questões femininas das quais também está submetida, mas não se deixa abalar.
A escrita singela e irônica de Pepetela na obra O tímido e as mulheres (PEPETELA, 2013) permite a encenação de personagens femininas que se destoam do perfil da mulher antes da independência angolana. Fazendo jus a sua geração de intelectuais pós-independentes e sedentos por novas reflexões, novos olhares nacionais, Pepetela foi muito feliz ao engendrar a sua narrativa, tendo como cenário predominante a capital Luanda.
Tanto Marisa quanto dona Luzitu são mulheres que apresentam perfis comuns, ambas são donas de casa, zelam pelo bem-estar da família e amam as suas rotinas. Todavia, não representam os estereótipos coloniais, questionados pela escrita do país após o rompimento com o colonizador europeu:
As mulheres da ficção da literatura angolana contemporânea caracterizam-se principalmente pela luta incessante pela sobrevivência, por uma profunda ligação à família e aos valores da ética e do trabalho (Macedo, 2008, p. 125).
Marisa, mesmo tendo consciência de que a sua condição humana a denunciarei socialmente em Angola, não se deixou intimidar, estudou e se formou em comunicação para poder dar voz a sua classe marginalizada duplamente pela sociedade, até então pouco ou nada representada no centro da capital. Todavia, não abriu mão de se casar com o homem que escolheu, embora toda a sociedade – inclusive a sua própria família – fosse contrária à sua união com Lucrécio, um cadeirante mais velho que ela.
A jornalista gostava de provocar os homens por meio de uma espécie de jogo de sedução no qual ela mesma ditava as regras. Marisa aparentava lançar mão do desejo sexual feminino, bem como os pensamentos masculinos acerca da mulher, relativos ao conceito de “coisificação”, talvez, para mostrar a eles o contrário. Sendo assim, a mulher poderia, com certeza, ser uma excelente esposa, profissional bem-sucedida, consciente e moralmente feliz, sem se deixar corromper por uma classe que se coloca na condição superior de dominante. Tais considerações parecem dialogar com os estudos de Tânia Macedo (2008), acerca da escrita angolana pós-independente sobre o gênero feminino:
São personagens positivas, e rompem definitivamente com os estereótipos forjados pelo colonizador sobre a lascívia feminina, a partir de um imaginário em que ganha preponderância a nudez dos corpos e uma suposta libertinagem sexual que substitui a inteligência (MACEDO, 2008, p. 125).
Já Dona Luzitu, com todas as suas limitações sociais e humanas, não se deixa abater, luta pela sua sobrevivência, bem como a sobrevivência da sua família, estereotipando um perfil literário de mulher quitandeira, tradicionalmente conhecida na escrita angolana:
Provavelmente, a quitandeira seja a personagem que, de maneira mais completa, encarna a figura materna, articulando as qualidades míticas da Mamã africana em seus aspectos de defesa da prole da família (MACEDO, 2008, p. 126).
Pelos musseques angolanos, dona Luzitu transita fazendo as suas zangas, possibilitando o esboço de uma área marginalizada, mas imensamente rica culturalmente, além de contribuir com o trânsito de informações interessantes aos moradores da capital Luanda:
Assim, por meio da representação literária do musseque como centro da cidade da escrita, assiste-se não apenas a uma escolha estética por parte dos produtores culturais, mas também à construção de um completo modelo ideológico, caracterizando uma imagem do mundo própria, nacional (MACEDO, 2008, p. 122).
E assim a capital Luanda serve de cenário para inúmeras histórias de mulheres nobres, que colaboram para com o seu crescimento de forma ativa e positiva. Não se deixando abalar, nem manipular por velhos conceitos que em nada se aproximam aos novos desejos angolanos, principalmente no que se refere ao papel da mulher dentro da sociedade.
REFERÊNCIAS
MACEDO, Tania. Luanda, cidade e literatura. São Paulo: Editora UNESP; Luanda (Angola): Nzila, 2008.
PANTOJA, Selma. Quitandas e quitandeiras: história e deslocamento na nova lógica do espaço em Luanda, In Atas da III Reunião Internacional de História de África, Lisboa, 2000, p 175-186.
PEPETELA. O tímido e as mulheres. São Paulo: Editora Leya, 2014. [1ª ed. 2013].
PINTO, Alberto Oliveira. O colonialismo e a coisificação da mulher no cancioneiro de Luanda, na tradição oral angolana e na literatura colonial portuguesa. In: MATA, Inocência; PADILHA, Laura Cavalcante (Orgs.). A mulher em África – vozes de margem sempre presente. Lisboa: Colibri, 2007, p. 35-49.
RIBEIRO, Maria Aparecida. A mulher e a cidade: uma leitura da narrativa angolana, Revista Crítica de Ciências Sociais, no 34, fevereiro de 1992, p. 85- 97.