AMOR VERSUS QUERER: A DICOTOMIA DO FEMININO NO ROMANTISMO NAS OBRAS VIAGENS NA MINHA TERRA, DE GARRET E AMOR DE PERDIÇÃO, DE CAMILO CASTELO BRANCO


Resumo:
wResumo A oposição amor/querer encontra-se ancorada na imagem da mulher. A figura feminina dentro da estética romantica literária quando usada para representar o amor puro, inspirador, é apresentada como angelical; se associada, porém, aos desejos da carne, torna-se ser demoníaco, responsável por levar o homem à perdição. Partindo dessa dicotomia romantica do ser feminino, o presente texto se proporá em estabelecer uma análise comparativa das personagens femininas de duas obras distintas, ícones também de fases distintas do Romantismo português: Joaninha da obra Viagens na minha terra, 1843, de Almeida Garret, demarcando o momento primeiro da prosa nessa estética; e, Tereza, personagem da obra Amor de perdição, 1863, de Camilo Castelo Branco, demarcando o momento ultra-romantico da prosa lusa. Palavras-chave: dicotomia do feminino, amor, querer.
Texto:

 

AMOR VERSUS QUERER:

A DICOTOMIA DO FEMININO NO ROMANTISMO

NAS OBRAS VIAGENS NA MINHA TERRA, DE GARRET E

AMOR DE PERDIÇÃO, DE CAMILO CASTELO BRANCO

 

 

PEDRO FERNANDES DE OLIVEIRA NETO

Universidade do Estado do Rio Grande do Norte

 
 
 
Várias são as características que compõem o molde da estética romântica, assinalada entre meados do século XVIII e XIX. Impossível de defini-la em poucas palavras ou resumi-la num simples conceito, haja vista sê-la mais que uma estética, o Romantismo é tido mesmo como um movimento que em ondas concêntricas perpassa todas as esferas desse ambiente em que emerge; corresponde mesmo a um metamorfoseamento sócio, histórico e cultural.
Uma destas características que podemos constatar no Romantismo está na valorização, por vezes extremista até, do amor, posto espiritualizado, puro e a visão do desejo circunscrita como manifestação dos baixos instintos do ser enquanto humano, devendo, portanto, nesse, o humano ser condenado.
A oposição amor versus querer, os românticos associam como característica centrada na mulher. A figura feminina dentro da estética romântica literária quando usada para representar o amor puro, inspirador, é apresentada como angelical; se associada, porém, aos desejos da carne, torna-se ser demoníaco, responsável por levar o homem à perdição. Partindo dessa dicotomia romântica do ser feminino, o presente texto se proporá em estabelecer uma análise comparativa das personagens femininas de duas obras distintas, ícones também de fases distintas do Romantismo português: Joaninha, da obra garretianaViagens na Minha Terra (1843), demarcando o primeiro momento da prosa nessa estética; paralelamente, Tereza, personagem da obra camiliana Amor de Perdição, 1863, demarcando a prosa ultra-romântica lusa.
Duas características centrais podem ser apresentadas como distintivas de ambas as obras. O romance garretiano, mistura de relato jornalístico e história de amor, é comedido, sem dramaticidades tamanhas, a própria época em que foi escrito parecia  não o permitir; já o romance camiliano, é, pois, embaralhado, alucinante, melodramático, para resumir, à margem de todos os espectros sociais garretianos. No primeiro, a amor entre Joaninha e Carlos é posto como algo possível, da saudabilidade, enquanto no segundo, a amor entre Simão e Teresa é exposto como algo forte ao extremo, algo que se torna negro e passível de malignidade. Assim sendo, as personagens femininas moldadas neste cenário carregam marcas distintas: a primeira se constituirá em oposição à segunda, demarcando aqui as fronteiras dessa dicotomia feminina no Romantismo; ambas, no entanto, possuirão características adquiridas desse amor tecido pelos autores românticos.
A personagem Joaninha adequa-se aos moldes rousseaunianos [1] uma vez sê-la fruto ou espécie de ponto num cenário natural, de ar melancólico, palco para o desenrolar dos fatos:
Joaninha não era bela, talvez, nem galante sequer no sentido popular expressivo que a palavra tem em português, mas era do tipo da gentileza, o ideal de espiritualidade. Naquele rosto, naquele corpo de dezesseis anos, havia por dom natural e por uma admirável simetria de proporções de toda a elegância nobre, todo desembaraço modesto (…). (Viagens na minha terra, p. 87)
 
Ela é uma adolescente ainda com sopro de pureza e inocência, justificando desse modo suas atitudes jovem-pueris; parafraseando Massaud Moisés (1999), é alada pela fantasia que a envolverá na história duma jovem que perece de amor por amar um homem tolhido noutras malhas sentimentais.
Teresa, entretanto, adequa-se aos moldes de uma burguesia em acentuada ascensão no espaço social; criada e moldada no berço da ociosidade urbana. Configura-se o ponto central de um estopim amoroso que eclodirá mais tarde no decorrer do romance; envolvida por uma aura de pureza, não natural a Rousseau, mas uma pureza esculpida por ideais.
As atitudes de Teresa em oposição às de Joaninha classificam-se como violentas e invencíveis, num jogo frenético de paixão avassaladora que a conduz sob um comportamento quase que primitivo, é instintivo. Basta que retomemos a teimosia sua em preferir qualquer coisa, a morte inclusive, a ter de casar-se com seu primo, já prometido, o Baltazar: “– Estás a brincar, prima! – redargüiu Teresa. – Eu hei de ser tua cunhada quando não tiver mais coração. Teu mano tem a certeza de que amo outro homem. Queria viver pra ele; mas se quiserem que eu morra por ele, abençoarei todos os meus algozes.” (Amor de perdição, p. 57)
Na personagem ultra-romântica não há logicidade nas atitudes. Enquanto Joaninha move-se pela fantasia para um futuro paraíso, Teresa camainha e arrasta os seus, através dos ideais, para um abismo negro; ela não é somente passível e sofredora como Joaninha que o seu futuro-morte marca uma heroicidade amorosa, mas é alguém capaz de decidir e influenciar.  Portanto, também é ativa no intercurso da trama. Suas atitudes são movidas a gás do desejo, uma expansão dos sentidos e dos sentimentos da personagem garretiana. Em Teresa falam mais alto as “razões da sociedade burguesa oitocentista, temerosa de enfraquecer-se pela concessão dos direitos éticos individuais que possam pôr-lhe em crise os dogmas, as convenções, as modas” (MOISÉS, 1999, p. 148). Diferentemente de Joaninha, que carregará interesses próprios, Teresa carrega no bojo de sua individualidade aspirações suas, políticas e sociais da burguesia revolucionária de fins do século XVIII e primeira metade do século XIX: “encontra-se dessa forma as ‘razões do coração’ e as convenções de uma sociedade temerosa de ceder aos imperativos de indivíduo e do tempo.” (MOISÉS, 1984, p. 19) Alheia ao naturalismo rousseauniano vigoram em Teresa os ideais franceses de liberdade, igualdade, fraternidade.
Analisando as atitudes de Joaninha, perceberemos que estas se apresentam como comedidas, estritas, já as de Teresa mantém-se constantemente histéricas, descabeladas. O amor-querer é posto como algo superior, total controlador da mulher e irradia sua dor como núcleo de tudo. Em Teresa se justapõe a crueza do mundo numa vertente hiperbólica, rigidamente e criteriosamente controlada:
 
É já meu espírito que te fala, Simão. A tua amiga morreu. A tua pobre Teresa, à hora em que leres esta carta, se me Deus não engana, está em descanso.
(…)
Quem te diria que morri, se não fosse eu mesma, Simão?
(…)
Adeus! À luz da eternidade perece-me que já vejo, Simão. (Amor de perdição, p. 136-138)
 
A imagem que se constrói acerca da personagem camiliana é a de uma figura sedutora e demoníaca que se ergue à beira de um precipício, prestes ao suicídio, propensa a levar consigo os de que ela se compadecerem. Objeta-se dicotomicamente à imagem que podemos talhar da personagem garretiana: Joaninha é ela própria dotada de angelicalismos, que no vão de suas utopias para com Carlos não se apresenta como nociva sedutora é um esmo passível de tragicidade.
No movimentar-se das tramas, dicotomias outras se encontram nas duas personagens. Em Garret a personagem feminina mantém-se inócua, contrariamente, Joaninha atém-se harmoniosamente ao seu espaço; Teresa não, se mantém o tempo inteiro deslocada. E, além de seu meio como personagem que se move em prol do desejo humano e enquanto representação humana em busca do desejo não é condenada pelas artimanhas e garras do tempo, mas pelas suas próprias artimanhas cai nas próprias garras do tempo por ela armadas. Ou seja, enquanto Joaninha morre a mercê das linhas do destino, Teresa não, é dona, e por isso traça seu próprio destino, embora sequer evolua em prol deste. A ilogicidade a personagem camiliana julga-se através de um existencialismo. Seu poder de locomoção dentro do romance é tamanho que extrapola as barreiras, as linhas de sua própria existência humana; fantástico desse amor romântico lança os sujeitos fora da realidade, torna-os inexprimíveis, tomando das palavras de Pinto (2007). Esse caráter gravitacional da personagem camiliana, justifica-se, segundo Moisés (1984, p. 19), acima de todas as convenções, porque:
 
(…) brota do mais fundo das entranhas e alucina o cérebro com as antevisões de sua realização, tem por arquitrave o amor vulcânico à margem do casamento, mas em luta com razões morais (…). Vivendo a violenta aceleração da paixão que tudo obnubila com seu despótico império (…).
 
Assim sendo, entenderemos Joaninha como face primeira da moeda amorversus querer, visto que seus instintos enquanto humanos são comedidos e encaixam-se aos caracteres românticos da pureza, da inspiração. Face segunda desta moeda, o querer, atribui-se à personagem camiliana, visto sê-la o oposto daquela, uma figura própria do amor demoníaco que castra e arrasta os sujeitos para além de sua realidade e possibilidade, para um abismo em busca de algo como prêmio: um amor contaminado pelo vírus da paixão. Em Teresa enxerga-se o sedutorismo que leva o homem à perdição, justificando plenamente o título da obra.
Essa oposição amor versus querer em Joaninha versus Teresa, configura no entendimento pleno da dicotomia feminina no Romantismo.
 
 
Referências
CASTELO BRANCO, Camilo. Amor de perdição. São Paulo: O Estado de São Paulo, Klick Editora, 1997.
GARRET, Almeida. Viagens na minha terra. Rio de Janeiro: Ediouro, São Paulo: Publifolha, 1997.
MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. 29ª ed. São Paulo: Cultrix, 1999.
MOISÉS, Massaud. Presença da literatura portuguesa: romantismo-realismo. 6ª ed. São Paulo: Difusão Editorial, 1984.
PINTO, Júlio Pimentel. Afeto reinventado. In Entrelivros. Ano 2, nº 24. São Paulo: Dueto Editorial, 2007, p. 38-42.