Luiz Souza
Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia
Resumo: O presente trabalho se propõe a uma análise do filme Jamaica Inn (Estalagem Maldita, 1939), de Alfred Hitchcock. O principal operador conceitual ao qual recorreremos é a teoria feminista do cinema, com as pesquisadoras Tania Modleski (2005), Paula Marantz Cohen (1995) e Laura Mulvey (1996, 2009). Pretendemos analisar a narrativa em questão com a perspectiva de apurar como a violência misógina aciona emoções ambivalentes no espectador e torna-se artefato central à estratégia de composição do suspense hitchcoquiano.
Palavras Chave: Literatura e Cultura, Estudos de Gênero, Teoria Feminista do Cinema, Alfred Hitchcock
Abstract: This paper proposes an analysis of the film Jamaica Inn (Estalagem maldita, 1939), Alfred Hitchcock. The main conceptual operator to whom we turn is feminist film theory, with researchers Tania Modleski (2005), Paula Marantz Cohen (1995) and Laura Mulvey (1996, 2009). We intend to analyze the narrative concerned with the prospect of investigating how the misogynistic violence triggers ambivalent emotions in the viewer and becomes the central artefact of composition hitchcoquiano suspenseful strategy.
Currículo do pesquisador: Luiz Carlos de Souza é doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia (ILUFBa), sob orientação da Profa. Dra. Nancy Rita Ferreira Vieira e Mestre, pela mesma instituição. É jornalista, formado pela Faculdade de Comunicação da UFBa (FACOM/UFBa) e estudante de graduação em Letras pelo ILUFBa. A sua pesquisa é sobre representações de violência misógina na obra de Alfred Hitchcock.
A VIOLÊNCIA MISÓGINA COMO ESTRATÉGICA AO SUSPENSE DE ALFRED HITCHCOCK, UMA ANÁLISE DE JAMAICA INN (ESTALAGEM MALDITA, 1939)
Luiz Souza
Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia
À guisa de introdução
A obra do cineasta inglês Alfred Hitchcock tem sido amplamente estudada no meio acadêmico brasileiro, porém são poucos os trabalhos que atentem à perspectiva de analisar a questão da violência[1] misógina como artefato estratégico à composição do suspense hitchcoquiano e componente fundamental do seu universo ficcional. O presente trabalho tem como objetivo colaborar para que tal lacuna seja preenchida, pois a obra do diretor foi de fundamental importância para a constituição do operador conceitual teoria feminista do cinema, no qual consta análises diversas narrativas hitchcoquianas, como Rear Window (Janela Indiscreta, 1954), North by Northwest (Intriga Internacional, 1958) e Psycho (Psicose, 1964), empreendidas por teóricas como Tania Modleski (2005), Paula Marantz Cohen (1995) e Laura Mulvey (1996, 2009).
Por violência misógina compreendemos as agressões dirigidas a todas aquelxs que ocupem uma posição feminina, dentre os quais os sujeitos mulheres[2], privilegiados na presente análise. Partimos de uma perspectiva de que as identidades de gênero são fruto de uma construção social, não sendo, portanto, intrínsecas às pessoas, mas produzidas a partir de uma série de rituais regentes da interação entre os sujeitos (BUTLER, 2010). Aqui não se pretende um denuncismo, no sentido de buscar colocar em evidência a suposta misoginia hitchcoquiana, mas consiste numa tentativa de se compreender como imaginário androcêntrico colabora para a construção de um inconsciente social (Mulvey, 2009) que autoriza e mesmo demanda por filmes e produtos culturais nos quais a violência misógina é perpetrada.
O filme no qual nos deteremos no presentem trabalho é Jamaica Inn (Estalagem Maldita, 1939), narrativa que traz em seu âmago a violência misógina praticada por mais que um agressor. Há um sujeito intelectualizado e de alto status social associado a um personagem mais forte do ponto de vista físico e susceptível à perpetração de agressões físicas. A perspectiva de um Próspero associado a um Calibã, na constituição do quadro da violência misógina é algo que se repete na filmografia hitchcoquiana, numa diversidade de filmes. A tendência é perceptível em North by Northwest, que seria lançado pelo menos 20 anos depois de Jamaica Inn.
A questão é percebida por Truffaut, na série de entrevistas que Hitchcock o concedeu, com a perspectiva de que o vilão seja representado como “alguém muito chique, distinto e sedutor” (TRUFFAUT, p. 105). Hitchcock cita, precisamente, North by Northwest como referência em relação ao assunto, ao considerar que escolheu de James Mason para interpretar o vilão pois pretendia alguém “suave e distinto. Mas, ao mesmo tempo ameaçador, e isso é difícil de conciliar. Então, dividi o vilão em três pessoas: James Mason, que era bonito e meigo, seu secretário, de aspecto sinistro, e o terceiro, o louro, o capanga de aspecto rude e brutal” (TRUFFAUT, p. 106).
O recorte que vamos proceder é a questão da homossocialidade[3] como componente misógino capaz de fazer com que as mulheres permaneçam a distância, dada uma cumplicidade entre os homens agressores. Porém, ao mesmo tempo, o espectador é francamente convocado a simpatizar pelas personagens em perigo, que, nas narrativas em questão, continuam seguindo a tendência do cinema hitchcoquiano, no qual as mulheres são geralmente os personagens que mais demandam os sentimentos de solidariedade e compaixão por parte da audiência. Por outro lado, a violência misógina comparece como forma de sublimar as possíveis pulsões homossexuais latentes na relação de cumplicidade entre os homens, aqui referida como homossocialidade.
Jamaica Inn é o último filme da fase inglesa de Alfred Hitchcock, visto que, no ano seguinte ao lançamento do filme, em 1940, ele se transferiria para os EUA, a fim de trabalhar com o produtor David O. Selznick. O filme é baseado no romance homônimo de Daphne du Maurier. Além de Jamaica Inn, outras duas narrativas hitchcoquianas foram baseadas em trabalhos da escritora: Rebecca (Rebeca, a Mulher Inesquecível, 1940) e The Birds (Os Pássaros, 1960).
Em Jamaica Inn, a jovem Mary Yellen (Maureen O’Hara) decide, após a morte dos pais, viver com a sua tia Patience (Marie Ney) numa estalagem, localizada na Costa de Cornwall, na Inglaterra do fim do século XVIII. A jovem ignora que o marido da tia, Joss Merlyn (Leslie Banks) faz parte de uma quadrilha de criminosos. O bando provoca naufrágios a partir do uso de luzes à guisa de um farol, fazendo os navios chocarem-se contra as rochas. Em seguida, matam os marinheiros e pilham a carga. O chefe da gangue, porém, é o Juiz de Paz, Sir Humphrey Pengallan (Charles Laughton), a quem Mary recorrem, em busca de ajuda, sem saber o perigo no qual se envolveria, ao se aproximar do magistrado.
Perspectiva de leitura: delineando um caminho
A psicanálise como perspectiva de leitura de textos fílmicos foi algo constante no período dos anos 70, até que se tornou questionável como perspectiva analítica, dada a fixidez com que alguns teóricos lançavam mão de conceitos da disciplina, como se esta fosse capaz de dar conta da totalidade do texto em sua complexidade. Aqui recorremos à psicanálise, num procedimento que repete estratégias de antanho, mas esta é uma repetição na diferença, ou seja, num contexto diferente, com força e perspectivas renovadas. De acordo com a perspectiva de Laura Mulvey (2009) a psicanálise seria componente fundamental à teoria feminista do cinema, pois consistiria numa arma política. O uso político da psicanálise, defendido por Mulvey vem no sentido de descobrir como o fascínio do filme é construído a partir de padrões preexistentes no imaginário da sociedade androcêntrica.
Não se trata, portanto, de aplicar a psicanálise à obra de arte, pois, como pondera Quinet (2013), a psicanálise como tratamento pelo discurso só se aplica a sujeitos. A nossa perspectiva, porém, a partir de um método interdisciplinar no qual a psicanálise é apenas uma das disciplinas com as quais se pretende manter um profícuo diálogo a fim de investigar como se caracteriza o olhar masculino na fruição da narrativa fílmica ora analisada. Em contraposição a uma perspectiva de análise que possa dar conta do texto fílmico como um todo, Aumont e Marie (2004) convocam a experimentação, como procedimento de análise, no sentido de reafirmar a inexistência de uma teoria global do cinema. Em contraposição a possíveis “chaves” interpretativas, os autores argumentam que cada analista deve habituar-se à ideia de que precisará construir o seu próprio método de análise – este talvez válido apenas para o filme analisado.
Propomo-nos, a partir destes pressupostos, a investigar os desejos acionados em função de um olhar masculino. Este não seria, porém, o olhar do homem, mas uma contingência, uma posição a qual uma mulher poderia ocupar, inclusive. Os filmes de Hollywood, ainda que estruturados em torno do prazer masculino, oferece às mulheres a possibilidade de uma identificação com o ponto de vista ativo, perpetrador da violência, assim, “permitem que a mulher espectadora redescubra este aspecto perdido de sua identidade sexual, que é a pedra angular, nunca inteiramente reprimida da neurose feminina” (MULVEY, 2005, p. 382). O ato de reconhecer em si impulsos destrutivos pode ser uma perspectiva libertadora para as mulheres, pois há a oportunidade de que elas os realizem na ficção – “Agressividade impedida parece envolver grandes danos; realmente é como se tivéssemos que destruir outras coisas, outras pessoas, para não destruirmos a nós mesmos, para nos guardar da tendência de autodestruição”, observa Freud (2010, p. 255), numa constatação, segundo ele, triste para os moralistas.
A Estalagem Maldita
Nas cenas iniciais do filme, fica evidente ao espectador que o Jamaica Inn goza de uma péssima reputação entre os moradores da região da Costa de Cornwall, com isso, o cocheiro que transporta a jovem Mary termina por deixa-la próxima à casa de Pengallan. O Juiz de Paz é sofisticado, bem relacionado, mas flerta com a loucura, visto que convoca à sala de jantar, diante de convidados, uma égua, constantemente comparada a uma jovem mulher. O Imperador Calígula (31 de agosto de 12 d.C.-22 de janeiro de 41 d.C.) nomeou seu cavalo Incitatus como senador, demonstrando seu desprezo àquela casa. O imperador e o Juiz de Paz demonstram, na verdade, um desprezo pela civilização e pelos rituais sociais, estes frequentemente representados em Hitchcock como vazios de significação. Zizek (2010) observa que grande parte da interação social seria regida por atos performativos, realizados apenas para manter as relações entre as pessoas. Porém Pengallan sabota os ritos sociais, algo do âmbito do incivilizado. O magistrado, por alguns instantes, deixa a máscara cair e se mostra avesso às convenções e incapaz de dominar suas pulsões.
Sob os auspícios da égua adentrando à sala de jantar, Mary conheceria o Juiz de Paz e se afeiçoaria a ele, apesar do olhar desejoso que lhe lança, algo ignorado pela moça – mas não pelo espectador. Pesa sobre as mulheres hitchcoquianas uma constante ameaça de serem estupradas. Na década de 60, com Marnie (Marnie, confissões de uma ladra, 1964) as constantes comparações entre mulheres jovens e equinos ganhariam o seu maior grau, envolvendo uma série de metáforas antropomórficas e insinuações no âmbito sexual. Há, portanto, uma constante desumanização das mulheres, algo, contudo, associado a um constante apelo de solidariedade e simpatia para com elas. A ambiguidade hitchcoquiana em relação às mulheres remonta a uma tradição literária, demarcada por Bloch (1995), quando do seu estudo acerca da misoginia medieval. O teórico aponta que a mulher, no universo simbólico cristão, seria, simultaneamente, a esposa de cristo e o portão do inferno. A angústia em relação à nudez da mulher acionaria este universo imaginário perverso, pois a visão dos genitais femininos convoca o fantasma da castração (MULVEY, 2009). Portanto, o suspense hitchcoquiano é construído na dimensão do olhar, conforme aponta o diálogo entre Mary e Pengallan:
Pengallan: Me faria o favor de tirar seu abrigo, senhora?
Mary: Por que?
Pengallan: Fiz uma aposta [de que a moça seria bonita]. Sempre gostei das apostas. Permita-me. – avança na direção dela e lhe despe do abrigo. É de uma figura esquisita. Querida, você é uma beleza. – e se curva em sinal de respeito (…) “Caminha bela, como a noite/trunfo claro céu de estrelas/Todo glamour, brilho e mistério unem-se nela e refletem-se nos seus olhos.”
O diálogo se pauta por um leve deslize em direção a impulsos perversos, por parte de Pengallan. A crueldade misógina se insere, de maneira sutil, como que inserida nos rituais sociais, algo subjacente até mesmo na literatura convocada pelo personagem como gracejo em relação à convidada. O suposto cavalheirismo de Pengallan é misógino, pois traz o germe da objetificação da mulher, considerada por ele como um algo a ser visto, fator que coloca em xeque a humanidade da jovem, a esta altura vista como objeto do gozo escópico do rico anfitrião.
Na relação entre o Juiz de Paz e Mary se insere algo referido por Zizek (FIENNES, 2014), quando da análise de Titanic. O estudioso considera que a narrativa se organiza em torno de um suposto direito que os ricos teriam de se renovar a partir da relação com pessoas das classes trabalhadoras. Pengallan, então, terá algo de vampiresco, monstruoso. O filósofo argentino José P. Feinmann (2013) afirma a tendência de que o cinema dos anos 30 registre, de maneira constante, uma presença monstruosa e terrível, no que seria uma antecipação do Hitler. O magistrado carrega o título de Sir Humphrey Pengallan, um homem, portanto, distinto, mas a nobreza conferida pela distinção não o impede de cometer crimes, encarnando a antecipação hitchcoquiana do nazista monstruoso. Quando do diálogo com Joss, o magistrado se vangloria de conhecer o valor das mercadorias roubadas, algo impossível ao gerente da estalagem, que não é “filósofo nem cavalheiro”.
A narrativa hitchcoquiana passa a ser sintomática em relação aos valores eurocêntricos humanistas e de pretensão universal ao nos colocar diante de um personagem refinado, de alto status social, mas de comportamento cruel e terrível, algo sintomático em relação a uma suposta decadência da cultura ocidental. A perspectiva se torna novamente inserida na análise quando os convidados de Pengallan se jogam em direção ao dinheiro que ele arremessa à mesa. A estátua na decoração do hall de entrada da sua sala de estar, possivelmente de inspiração Grega, testemunha a reverência ao que seria o berço da cultura ocidental, enquanto a moça, colocada num patamar superior do hall ali estaria como num display, o que a consagra como uma coisa a ser vista. Há um plano médio de Pengallan, a partir das suas costas, enquadramento capaz de sugerir ao espectador uma cumplicidade em relação ao desejo perverso do Juiz de Paz (fotograma 12 min 06 seg)[4].
Por outro lado, aquele que seria o alter ego do agressor, a sua versão Calibã, o Joss, sujeito morador de um lugar “muito ruim, um lugar não à altura da senhorita”, conforme aponta Pengallan. O encontro de Joss com a sobrinha da mulher é pautado pela violência, pois o sujeito carrega uma arma e a aponta para a moça como se visse nela uma ameaça e lhe demandasse sua identificação. A arma ase projeta fálica em relação à jovem, como se ali estivesse presente a principal ameaça a pesar sobre si, a ameaça da violação sexual. O comportamento grosseiro faz a jovem pensar ser um criado o homem ameaçador que lhe pede um beijo, se comporta de maneira impertinente – atitude mantida mesmo após a chegada da Tia Patience. O espectador é convocado a suspeitar que a esposa de Joss sofra violência física a partir das cenas nas quais a violência psicológica lhe é imposta, dadas as imprecações do marido e o tom meio gutural no qual se dirige à esposa. Há outro possível paralelo em relação a Joss e Pengallan.
O proprietário da estalagem, como o Juiz de Paz, também teatraliza os rituais sociais. Quando abraça a esposa e se apresenta como tio de Mary dramatiza um papel familiar, daquele que assume o compromisso de cuidar dos filhos dos parentes, quando estes faltam, mas nós sabemos que este é um papel esvaziado e as palavras de Joss são vazias. A narrativa parece se organizar em torno da falência de uma família pensada como um clã, no qual os jovens migram para casa de parentes, por questões de sobrevivência e ali encontram o risco de abusos, em vez de abrigo para enfrentar tempos difíceis.
A Tia Patience parece atenta aos olhares e investidas de Joss em relação à jovem e parece se colocar entre os dois, de forma a proteger a moça. Porém, a situação da tia é ainda mais tensa, pois ela ainda tem que guardar segredo em relação às falcatruas perpetradas pelo marido bandido – Mary tem que ser mantida na ignorância em relação aos atos de naufrágio cometidos pelo bando de Joss, até mesmo para sua própria proteção. Ainda assim, Patience, apesar de todas as evidências em contrário, nega que sofra violência, e defende o marido: “Sem dúvida, sua mãe falou de mim. Ela pensava que eu estava mal por ter saído de casa. Ela estava equivocada. Joss tem sido um bom esposo, não mudaria nada nele se pudesse”, considera a tia, num diálogo com a sobrinha. A cena do diálogo, porém, tem uma peculiaridade, dado que, durante a fala de Patience, a atenção do espectador é convocada à reação de Mary, fazendo com que o espectador suspeite que a mãe da moça a havia alertado para os perigos que envolveria um relacionamento com homens como Joss. Patience, em inglês, Paciência, convoca o aspecto resilente da tia em relação aos abusos do marido, ao mesmo tempo, a questão de conseguir ver nele aquilo que supostamente ele teria de melhor, em detrimento da sua face mais terrível.
Tia Patience tem, assim, um conhecimento em relação à violência do marido e aqui nos referimos à questão de uma violência no âmbito sexual. O segredo do qual a tia em idade madura pretende proteger a jovem sobrinha é em relação a uma possível relação sexual traumática, incestuosa e niilista, dados os seus efeitos potencialmente destrutivos sobre os sujeitos. Porém, a moça não está a salvo de violências como esta, visto que, no terço final do filme, Pengallan a sequestra, sem que seja dado ao espectador saber o que se passou com Mary enquanto ela esteve em poder do seu algoz, ainda assim, algumas cenas trazem o sadismo do Juiz corrupto que amarra a sua vítima e a arrasta quando da fuga. Bloch observa que, no universo judaico-ocidental e cristão, a mulher é vista como uma ambiguidade, sendo, ao mesmo tempo, Esposa de Cristo, mas, simultaneamente, como o Portão do Inferno. A obra de Hitchcock dialoga com este imaginário e a dualidade em relação à mulher é apaziguada com a violência que se lhe perpetra.
Camille Paglia (1994) observa que os crimes sexuais seriam uma vingança dos homens contra as mulheres, tendo em vista que elas passam por uma série de mudanças corporais que definem a sua identidade sexual adulta, ao passo que eles não. De acordo com a estudiosa, a violência misógina estaria ligada, dentre outros fatores, a uma insegurança em relação à própria masculinidade. A perspectiva encontra eco em Fávero (2011), quando a pesquisadora observa que a agressão contra mulheres está associada à incapacidade do homem de impor a sua vontade, pois encontra resistência e apenas consegue fazer valer as prerrogativas do patriarcado mediante o uso da força. Numa entrevista concedida por Camille Paglia (1993, p. 70) à revista SPIN, a entrevistadora, a jornalista Celia Farber, que revelou ter sofrido agressão sexual, manifesta a sua opinião em relação ao assunto:
Num caso de estupro, o homem tem que usar a força bruta para obter algo que a mulher possui – seu próprio sexo. Assim, naturalmente, ela é mais fraca no aspecto físico e sempre será fisicamente oprimida por ele. Mas, no momento em que ele decide que a única maneira de obter dela o que ele quer emocionalmente, ou sexualmente, seja lá o que for, é estuprando-a, está confessando uma fraqueza total. É ela quem sofre o abuso, mas é ele quem é absolutamente trágico e patético. Uma coisa é temporária, a outra permanente.
Kaufman (1999, p. 3) observa que a violência se transforma num agente compensador em relação às angústias de homens emocionalmente perturbados em função da perda do seu poder em relação às mulheres:
(…) para alguns homens, respostas violentas ao medo, dor, insegurança, rejeição ou o sentimento de ser depreciado ou desprezado não são incomuns. Isto é particularmente verdadeiro quando há a sensação de perda do controle e poder. Este tipo de sentimento potencializa as inseguranças masculinas: se masculinidade é algo sobre poder e controle, não ser poderoso significa que você não é um homem. Novamente, a violência consiste num meio de provar isso a si próprio e aos outros.
O estudioso ainda observa que, apesar dos complexos motivos psicológicos e sociais determinantes da violência contra a mulher, contribui para a situação um universo de permissividade social, explícita ou tácita. Os discursos legitimadores da violência estariam numa série de lugares, como os costumes, os códigos legais ou mesmo as doutrinas religiosas. Por outro lado, há uma violência que transcendo ao aspecto físico, mas se insere numa perspectiva simbólica de fixar a mulher no lugar do Outro, do objeto – indiretamente culpando-a por seus desejos.
Reveladora em relação a isso é a fala de um dos cúmplices de Joss, na série de naufrágios e assassinatos. Trata-se de um homem velho, com olhar vazio que cumpre uma função de sábio, aquele capaz de, a partir da sua experiência de vida, prever o futuro, bem como ocupar uma posição de ascendência em relação aos capangas componentes da quadrilha. Na fala, está a questão da desvalorização dos sentidos, do corpo, como aliados à opressão das mulheres. A fala do velho antecipa o suicídio de Pengallan nas sequencias finais do filme: “[Vocês] só pensam em mulheres. Vaidade da carne. Seguindo saias irão pelo caminho da perdição eterna. (…) Você ri agora, mas será outro a cair quando arder na fogueira que acesa nos espera a todos, inclusive a mim”.
Logo em seguida, o velho homem afirma que todos dentre os comparsas estarão presos em breve e correntes estarão atadas a seus pés. O bando, assim, seria punido não tanto por seus crimes, mas por seus desejos perversos, sublimados a partir de uma homossocialidade potencialmente destrutiva, manifestada na sua união para cometer crimes. Porém, dentre eles, há um elemento que não comunga dos valores desta masculinidade perversa. Trata-se daquele que seria um dedo suro, mas que, na verdade, é um policial infiltrado no bando a fim de desbaratar a quadrilha, o oficial Jem Trehearne (Robert Newton). A questão de uma masculinidade perversa torna-se mais evidente a partir do instante no qual Patience ousa adentrar àquele recinto para falar com o marido, mas, porém, é severamente repelida por ele, sob a ameaça de uma agressão. O alvo do grupo passa a ser, então, Trehearne. O bando trama fazer algo terrível ao rapaz, quando o aspecto misógino de uma versão perversa da masculinidade torna-se presente na narrativa, a partir da declaração de um dos componentes da quadrilha, antes da tentativa de assassinato: “Espere. Deixe-me ver se as mulheres estão por perto. Não quero interferência” – uma evidência a mais de uma homossocialidade perversa, que mantém as mulheres a distância como forma de reforçar os laços de cumplicidade entre os criminosos.
Há, porém, uma discussão entre os comparsas acerca da ética em relação ao assassinato, tentativa da qual Trehearne consegue se livrar – os criminosos vacilam em relação a matar um homem que está inconsciente ou mesmo sobre a validade de roubar do cadáver. Há uma ética e uma estética da violência, apesar da crueza da cena de tortura e agressão contra o jovem rapaz. Tanto no civilizado jantar de Pengallan no início do filme, quanto na cena da agressão a Trehearne há ritos sociais envolvidos e a pergunta em relação ao humanismo e à intelectualidade como garantidores da dignidade humana persiste. Joss é a versão recalcada de Pengallan, a sua alteridade isolada no Jamaica Inn, a pousada de aspecto sinistro e má fama. Mas, ainda assim, a clivagem entre os dois não é estanque, algo que pode ser conferido quando de uma das falas do magistrado ao gerente da estalagem maldita, quando da fuga de Trehearne e Mary: “Se você não consegue manter a calma não venha me importunar. Quando não se tem cérebro, o corpo morre e não é necessário lembrar que nesta organização você e os rapazes são só o corpo”, pondera Pengallan.
Com contraposição à associação criminosa e a uma sociedade falida, na qual o acesso a alta cultura não garante ética ou dignidade, o amor romântico se torna uma perspectiva de redenção dos sujeitos, no universo ficcional hitchcoquiano. Uma mesma ação se repete em dois filmes de Hitchcock, separados por quase vinte anos. Trata-se das sequencias finais de North by Northwest, quando o publicitário Roger O.Thornhill ergue Eve Kenall e lhe dá o status de mulher casada, a afastando de ocupar um status precário no universo adrocêntrico – ela agora é uma esposa e não mais uma mulher que joga com a sexualidade em trabalhos de espionagem para o governo americano.
Uma cena parecida ocorre entre Mary e Trehearne, quando da fuga do rapaz da quadrilha criminosa. Escondido no teto de um celeiro componente da propriedade de Joss, ele ergue a moça e a protege da perseguição. Apesar de romântico e cavalheiresco, o gesto é misógino, pois pressupõe que apenas sob a tutela de um homem a mulher pode ter segurança e dignidade numa sociedade dominada pelo masculino.
Considerações Finais
A representação das mulheres nos filmes de Hitchcock é conflituosa. Patience é emblemática em relação a este aspecto, pois, apesar de todas as agressões sofridas, ela inda protege Joss e demonstra amor pelo marido. Há uma cena reveladora em relação a este aspecto, no momento no qual a senhora flagra o marido saindo do quarto da sobrinha, o olha com severidade, mas não manifesta irritação. Logo em seguida, tenta afastar a sobrinha da propriedade do Jamaica Inn. A atitude é conflituosa, pois, ao mesmo tempo em que age para salvar a moça, parece estar a eliminar a concorrência de uma rival indesejada, jovem e bonita. É como se, apesar de toda a situação de violência e tortura psicológica na qual vive, haveria um certo gozo naquela situação, por mais perversa que esta possa nos parecer.
A ambiguidade novamente volta a comparecer quando, no final da narrativa, Mary lamenta pelo suicídio de Pengallan. A moça manifesta piedade pela situação do magistrado – Requena (2004) considera que uma das peculiaridades dos vilões hitchcoquianos é que o espectador é convocado a desejar a sua punição pelos dolos cometidos ao longo do filme – Pengallan é um assassino, ladrão, mas, ainda assim, humano, demasiado humano. O magistrado representa, talvez, a decadência de uma determinada classe social, envolta em crise financeira, por conta dos percalços da economia mundial na década de 30, período no qual o filme foi lançado. Há um pessimismo perceptível, inclusive, pela produção intelectual europeia durante o período, como o Mal Estar da Civilização, de Freud (2010), ou a perspectiva heideggeriana (1996), da angústia como constitutiva do ser humano.
A nossa perspectiva foi verificar como as emoções de desejo pela violência misógina se somam enquanto vetores da produção do suspense e angústia, tendo por base um inconsciente androcêntrico constituinte das representações audiovisuais no sentido de culpar as mulheres por suas aspirações e desejos, pois este lugar de ser desejante sempre lhe foi tradicionalmente negado.
Referências:
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[1] A partir de Maria Fávero (2011, p. 75) destacamos que o conceito de violência misógina “é entendido hoje de forma ampla abrangendo as diversas formas de discriminação e as diversas manifestações de relações de poder. Trata-se, em última análise, de considerar essas formas de violência e de relações de poder desiguais, como formas de violação dos direitos das mulheres, que fazem parte dos direitos humanos universais, tal como reconhecido desde 1993 pela Conferência Mundial dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU). Assim, a chamada violência de gênero consta no texto da Declaração como incompatível com a dignidade e o valor da pessoa humana”.
[2] Na introdução de Alice Doesn’t, Teresa de Lauretis (1984, p. 6) demonstra a preocupação de definir o que se pode entender por mulher: a pesquisadora afirma que, por “mulher” eu menciono os seres reais que não podem ser definidos de maneira exterior às formações discursivas, mas que, apesar de tudo, têm existência material concreta. As relações entre as mulheres como sujeitos históricos e a noção de mulher como produto dos discursos hegemônicos não constituem uma relação direta de identidade, uma correspondência um por um, nem uma simples relação de implicação. Como todas as outras relações expressas na linguagem, esta é arbitrária e simbólica, ou seja, construída no âmbito da cultura.
[3] Homossocialidade é aqui referida como o companheirismo e cumplicidade entre os sujeitos masculinos, sem que este relacionamento envolva, necessariamente, a homoafetividade.
[4] Neste trabalho, optamos por não recortar os fotogramas componentes da citação do filme, mas apontar o momento no qual se inserem na narrativa.