A SEDUÇÃO DA IMAGEM DE AMOR EM CLARA DOS ANJOS, DE LIMA BARRETO
Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Que poderia haver em comum entre o filme, para adolescentes, Diário da Princesa 1 e 2, os festejados casamentos de celebridades e o romance Clara dos Anjos, de Lima Barreto? Obra que veio a público em dezesseis números daRevista Souza Cruz, de janeiro de 1923 a maio de 1924, após ter sido anunciado numa Primeira Versão Incompleta, com um capítulo publicado em O Mundo Literário, de maio de 1922, sob o título O Carteiro.
Paradoxalmente, num país de analfabetos, o discurso poderoso da literatura modelou o imaginário brasileiro a partir da relação de complementaridade entre palavra e imagem, estabelecida pelos escritores românticos. Transfere-se para a palavra que, segundo Alencar, “brinca travessa e ligeira na imaginação” a função “do buril do estatuário”, “a nota solta de um hino” ou a fotografia, para contrapor-se à linearidade da pintura clássica, ou, ainda, “o pincel inspirado do pintor” que faz surgir de repente do nosso espírito, “como de uma tela branca e intacta, um quadro magnífico, desenhado com essa correção de linhas e esse brilho de colorido que caracterizam os mestres” (ALENCAR, José de,1980, p. 98).
Compreender o estético como forma de manifestação dos conteúdos imaginários – como sintetizou E. Morin – “é por meio do estético que se estabelece a relação de consumo imaginário” (1977, p. 77) – faz parte da tradição do pensamento Ocidental, sistematizada já em Platão, quando no Livro III, da República, chama a atenção para o risco do fascínio, sobre a psique alheia, exercido pelo estético. “Não tens observado que quando se pratica a imitação durante muito tempo e desde a meninice ela acaba por se converter num hábito e numa segunda natureza, infiltrando-se no corpo, na voz e no próprio modo de pensar?” (s.d., p. 75).
No entanto, permanece bastante inexplorada a gama de reações provocadas pela dispersão das imagens literárias no imaginário coletivo, através dos fragmentos de páginas escritas mescladas à cultura oral, numa miscelânea de temas que se realizam simultaneamente. Num país de parcos leitores, a literatura organizou a memória, como registrou Graciliano Ramos em suas crônicas, flagrando, no cotidiano, a sedução do literário.
No interior do país, nas mais afastadas povoações, senhoras idosas tremem, emudecem os óculos gaguejando as histórias do Moço Louro e da Escrava Isaura,emprestam às netas brochuras do romantismo, conservadas miraculosamente. Alencar circula, e deve-se a ele haver por ali tanta Iracema, tanto Moacir (RAMOS, G., 1984, p. 107).
O escritor Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922), atento a esse processo de sedução do literário, procurou compreendê-lo a partir da observação crítica e dos estudos teóricos disponíveis em seu tempo, como atestam as anotações memorialísticas e os textos literários.
A partir de leituras das obras de Maudsley, Taine e Theodore Ribot, o último dos quais publicara Essai sur l´imagination créatice, e de Jules Gaultier, todas elas a respeito do conceito de bovarismo, o escritor pretende refletir sobre o que acontece com o homem comum, suburbano em geral, quando recebe as construções estéticas intelectuais. Como o homem comum reúne, no seu cotidiano, os fios esfarrapados de metáforas e estereótipos que definem o tempo, o espaço, a memória, a paisagem, o país, o homem enfim?
Na mesma medida em que a literatura veicula imagens, clichês, as lembranças e as heranças, até mesmo as produções distorcidas e reutilizadas, no imaginário coletivo, pode, também ela, refletir criticamente sobre esse processo. Exemplar nesse sentido, e também precursor é o romance Madame Bovary, de Flaubert que permite a percepção de como a herança cultural pulveriza-se no cotidiano de personagens de baixa extração social, formando crenças entendidas como naturais. Personagens incapazes de ver o quanto a imagem esconde dos sentidos da sua existência, dos fundamentos das suas dores, das causas do aniquilamento da sua vontade. Estão cegas quando dirigem suas vidas para a concretização, e defesa, das crenças no racionalismo científico; quando expressam o conteúdo das dicotomias, do século XIX, diluído em teorias apreendidas em segunda ou terceira mão; quando defendem os dogmas da religião, da pátria ou os clichês da própria literatura, todos elementos de construção cultural da sociedade. Tudo se concatena, para o leitor, através do percurso da personagem Emma Bovary, que do início ao fim da obra, busca incessantemente na sua imagem, projetada no espelho, a imagem do seu desejo ou os traços das heroínas dos romances que lera. Em síntese, o filtro, ou a lente, que obstrui a visão, torna-se ele próprio instrumento de visão (ZERAFFA, Michel, 1976).
Há, na obra de Lima Barreto, uma galeria de personagens femininas, Cló, Ismênia, Lívia, Clara dos Anjos, e outras, que não são típicas leitoras, mas agem profundamente seduzidas pelas imagens criadas pela convenção romântica para a mulher. São, pois, produto de uma cultura na qual a literatura, em seus momentos de formação, fez-se mais para ser ouvida do que lida, constituindo aspectos do cotidiano,como já analisou Antonio Candido (1987).
Personagens incapazes de ver o quanto as ruínas do imaginário escondem dos sentidos da sua existência, dos fundamentos das suas dores, das causas do aniquilamento de suas vontades. Estão cegas quando dirigem suas vidas para a concretização e defesa das crenças e valores diluídos em teorias aprendidas em segunda ou terceira mão; quando defendem os dogmas da religião, da pátria ou os clichês da própria literatura, todos elementos da construção cultural da sociedade. São, na comparação de Flaubert, como “pobres almas obscuras, úmidas de melancolia guardada, como estes pátios nos fundos das casas de província, cujos muros estão cheios de musgo” (1993, p. 80).
Enquanto o autor de Madame Bovary trata dos inúmeros filtros, ou lentes, entre eles a ciência, a religião ou a literatura, Lima Barreto projeta a sua atenção no filtro contaminado de ficção – romântica e naturalista – que molda o olhar de personagens como Clara dos Anjos, Ismênia e tantas outras. Isto porque aspectos desse conteúdo, vindos do texto literário, impregnam as estruturas sociais e orientam a educação, as relações de poder, a organização da família e traçam perfis de identidade.
No caso brasileiro, as modinhas e canções populares estão contaminadas de fragmentos cristalizados de memória cultural – ruínas – herdadas da tradição romântica divulgando, por exemplo, a imagem de amor que garante felicidade, realização pessoal e nivelamento das diferenças sociais, com superação de todos os obstáculos. Tudo plantado no terreno da limitação intelectual, do distanciamento dos livros e do pensamento crítico. Numa ambiência cujos traços gerais incentivam a fantasia, a música dolente em versos repetitivos, com os sons “mágicos” do violão, o caráter de Clara dos Anjos molda-se pelas nuances da imagem de amor. O autor agiliza, na fala das personagens, as ruínas do imaginário, na forma de retórica amorosa, e demonstra como tais imagens movimentam vidas e destinos.
As modinhas falam muito de amor, algumas delas são lúbricas até; e ela, aos poucos, foi organizando uma teoria do amor (…)O amor tudo pode, para ele não há obstáculos de raça, de fortuna, de condição; ele vence, com ou sem pretor, zomba da Igreja e da Fortuna, e o estado amoroso é a maior delícia de nossa existência, que se deve procurar gozá-lo e sofrê-lo, seja como for. O martírio até dá-lhe mais requinte (LIMA BARRETO, 1956a, p. 89-90).
É a vulgarização do mito do amor recíproco infeliz – que permite conhecer, pelo sofrimento, o amor-paixão, simultaneamente partilhado e combativo, glorificado por uma catástrofe, ansioso por uma felicidade que rejeita – através da literatura, a via que desce até aos costumes, hábitos e mentalidades. Essas imagens da retórica do amor guardam ecos, também, da figura do príncipe herdeiro e sua nobre esposa; ela, absolutamente benevolente, ele absolutamente vigoroso; a lua e o sol feitos carne. Imagens que chegam ao cotidiano pela retórica que se torna, ela própria, condição suficiente para alimentar corações, avivar potencialidades latentes de sentimento.
A retórica, portanto, pressupõe a imitação de um modelo, mesmo que as motivações intrínsecas àquele modelo, na sua origem, tenham desaparecido, sejam outras, ou, até mesmo, inacessíveis na sua compreensão plena. Equivale a uma ruína, ou fragmento de memória, guardado no imaginário, acerca do mito do amor, tanto no nível de atitudes (o gestual, a aparência), quanto no das palavras. Nessa perspectiva, compreende-se a sedução de Clara dos Anjos e o papel de Cassi Jones, o sedutor, nesse imaginário. Para a protagonista, a realidade torna-se um pálido reflexo da imaginação e passa a viver através dela e por ela. É da imaginação que brotam todos os seus anseios, sua dor e vitalidade no presente. A imaginação do amor interessa-lhe mais do que buscar conhecer o amor verdadeiro, que poderia estar a seu lado e não no conteúdo das modinhas.
Nessa perspectiva, pode-se compreender o papel sedutor de Cassi Jones, interagindo com esse imaginário. Apesar da constante vigilância da mãe e da honestidade do pai, é pela porta da frente da casa, convidado para tocar violão, em uma festa oferecida pela família, que entra Cassi Jones na vida de Clara dos Anjos e o narrador apresenta-nos o seu retrato.
Era Cassi um rapaz de pouco menos de trinta anos, branco, sardento.
Insignificante, de rosto e de corpo; e, conquanto fosse conhecido como consumado “modinhoso”, além de o ser também por outras façanhas verdadeiramente ignóbeis, não tinha as melenas do virtuose do violão (…). Vestia-se seriamente, segundo as modas da rua do Ouvidor, mas pelo apuro forçado e odegagé suburbanos, as suas roupas chamavam a atenção dos outros. (…). Não usava topete, nem bigode (LIMA BARRETO, 1956a, p. 45).
As armas de Cassi seriam: o violão – “bem misterioso, um elixir ou talismã de amor” (1956a, p. 45), a retórica, expressa nas modinhas e cartas de amor, que atualizava todas as frases feitas e situações típicas das imagens de amor para a sedução. Há um diálogo com o paradigma do sedutor, cujas raízes aprofundam-se nas lendas, originadas provavelmente em Sevilha, cuja expressão dramática aparece em El burlador de Sevilha, obra de Tirso de Molina de 1630. Independente de sua sensualidade, “Don Juan” figura como um burlador, cujo fim é o arrependimento e a confissão (BLOCH, Ernst, 2006).Outra raiz vem das páginas de Moliére, Don Juan ou o festim de Pierre, obra de 1643 que mostra o cavalheiro intrépido, frio e racionalista; não desenvolve paixão nenhuma, apenas egoísmo. Triunfa, sempre, por suas extraordinárias armas amorosas e pelo poder social que pode mobilizar, seduzindo damas de alta sociedade com promessas de fidelidade e de casamento.
De fato, a imagem de “Don Juan” modifica-se depois da Revolução Francesa: aparece o homem de sorte preso a um sentimento sem limites, dirige suas ações, obstinadamente, na direção de um impulso amoroso radical, isto é, em busca da idéia-síntese de mulher. (BLOCH, Ernst, 2006) Nessa perspectiva, a sua infidelidade empírica é a extrema fidelidade amorosa: fiel à busca amorosa do ser no qual pudesse repousar. Avança vertiginosamente em busca de feminilidades – formosas e sugestivas – que se tornam asquerosas e entediantes, assim que se colocam a seus pés.
Afinal, como se desenha o “Don Juan” de Lima Barreto em seu diálogo com a tradição cultural e literária? Temos um Cassi Jones burlador, conquistador inveterado, cheio de perfídia e maldade, a ponto de ordenar assassinatos, atualizando pela retórica o mito do amor. A linguagem recheada de metáforas recebe o auxílio da sátira com a finalidade de chamar a atenção do leitor para um processo mais sofisticado, não tão facilmente perceptível de identificação psicológica por empatia, diferente da mera imitação abstrata. Em muitos casos, esse comportamento também é físico, uma questão de fala, gesticulação, modo de andar, postura, vestimenta e outras coisas semelhantes. Prepara o leitor, enfim, para flagrar Clara dos Anjos em absoluto envolvimento “pelo tic invencível do tocador de violão” ou o fascínio, a sedução da imagem sobre a psique alheia.
Clara, que sempre a modinha a transfigurava, levando-a a regiões de perpétua felicidade, de amor, de satisfação, de alegria, a ponto de quase ela suspender, quando as ouvia, a vida de relação, ficar num êxtase místico, absorvida totalmente nas palavras sonoras da trova, impressionou-se profundamente com aquele jogo de olhar com que Cassi comentava os versos da modinha. Ele sofria, por força, senão não punha tanta expressão de mágoa quando cantava – pensava ela (LIMA BARRETO, 1956a, p. 81).
Sem discernimento crítico e absolutamente fascinada por Cassi Jones, Clara não percebe a encenação no jogo de sua voz e de seu olhar. Semelhante a um processo de automatismo cognitivo a imagem sucede rapidamente a imagens, automáticas, acríticas, à mercê da manipulação dos recursos do inconsciente.
A insistência de todos ao redor em denegrir o sedutor, alertá-la do risco que corre, só fortalece as razões do imaginário: as imagens do amor recíproco infeliz, porque em luta contra as forças externas – “ Naturalmente havia nisso muita inveja dos méritos do rapaz, em quem ela não via senão delicadeza e modéstia e, também, os suspiros e os dengues do violeiro consumado” (LIMA BARRETO, 1956a, p. 91) – argumenta Clara dos Anjos.
Em Triste fim de Policarpo Quaresma podemos ver Ismênia, a jovem que sem ser feia, até bem simpática, “com sua fisionomia de pequenos traços mal desenhados e cobertos de uma tintas de bondade”, encontrara o sentido da existência na tentativa de responder à pergunta: “Então, quando te casas?”, logo depois do festejado noivado (LIMA BARRETO, 1956b, p. 55).
Na cultura brasileira, à visão romântica da função da mulher na sociedade patriarcal – matrimônio e maternidade – une-se a abordagem patológica para a ausência desse modelo feminino familiar. A literatura naturalista é farta de exemplos de histéricas, reproduzindo sintomas tais como desmaios, enxaquecas, gritos, próprios de temperamentos doentios. No romance de Lima Barreto, é a delicadeza o traço que desenha, com profundidade, o perfil de Ismênia, para resgatar o contorno da pessoa humana marcada pelos dogmas e convenções sociais.
Em coerência ao processo de urbanização, o desenvolvimento dos transportes, a ampliação do processo de circulação das mercadorias, a modernização dos fins do século XIX e início do século XX, ocorre uma reformulação no âmbito da família. O homem delega na condução da ordem familiar por ser também mais intensamente solicitado na esfera pública. Permanece a mulher no espaço privado e, simultaneamente, privada das importantes decisões pertinentes à existência pública. No entanto, revestida de novas funções, além do matrimônio, entre outras a de consumir artigos industrializados, ter profissões “delicadas” como o seu perfil e até ser alegre e espirituosa com moderação. O predomínio de faculdades afetivas tornava-a menos apta para o trabalho intelectual do que para a condução da família.
O romance traça um painel desse aspecto regulador da existência social da mulher, transmitido de geração a geração. Dona Maricota, a mãe de Ismênia, “não compreendia que uma mulher pudesse viver sem estar casada. Não eram só os perigos a que se achava exposta, a falta de arrimo; parecia-lhe feio e desonroso para a família” (1956b, p. 66) As jovens amigas de Ismênia confirmam em suas conversas, a ansiedade em torno do casamento, única oportunidade real de ascensão e reconhecimento social para a mulher. Falam muito às claras sobre os enxovais, o que devem conter, onde adquiri-lo, “as casas barateiras”, “as peças mais importantes”, mas às escondidas, em meio tom, abafavam curiosidades e impulsos da vida sexual.
Estefânia, a doutora, normalista, que tinha nos dedos um anel, com tantas pedras que nem uma joalheria, num dado momento, chegou a boca carnuda aos ouvidos da noiva e fez uma confidência.
Quando deixou de segredar-lhe, assim como se quisesse confirmar o dito, dilatou muito os seus olhos maliciosos e quentes e disse alto:
– Eu quero ver isso…Todas dizem que não… Eu sei… (LIMA BARRETO, 1956b, p. 67).
Se, para Ismênia, as normas sociais, projetadas nas imagens do casamento, tornaram-se a medida de sua individualidade, tomando-a por inteiro, Olga – a afilhada de Quaresma – possui o discernimento capaz da emancipação e da crítica, superando a mediania a ponto de sr a única real interlocutora do padrinho, por entender os motivos que o prendem à reserva de sonho; Ismênia, por sua submissão, dependência e incapacidade de crítica, sem qualquer ousadia, é, silenciosamente, tragada pelas representações do cotidiano. Por isso, para Olga o casamento serve a seus intentos, isto é, reconhece no matrimônio o aval social para articular novos vôos, convenientes e imprevisíveis, longe do fatalismo dos contos de fada. “Casava por hábito da sociedade, um pouco por curiosidade e para alargar o campo de sua vida e aguçar a sensibilidade” (LIMA BARRETO, 1956b, p.102).
Ao contrário, quando se evidencia para Ismênia a impossibilidade de resposta para a pergunta “Quando te casas?” que lhe carimbava uma identidade, esfacela-se em inúmeros fragmentos e, silenciosamente. Depois de perder o noivo, não reencontrara mais o sentido para a vida, afinal o código de sua integração com o mundo estava contido na palavra casamento, e todo o feixe de significações que ela guardaria. Ismênia enlouquecera, “de uma loucura mansa e infantil”. Exausta, enfraquecida, feito espectro, a personagem alcança o sublime na morte, porque a sua tragédia permite a possibilidade de conhecimento ao leitor, retirando-lhes as ilusões.
Ismênia despertou: viu, por entre a porta do guarda-vestido meio aberto, o seu traje de noiva. Teve vontade de vê-lo mais de perto (…).
Viu os seus ombros nus, o seu colo muito branco… Surpreendeu-se…
Era dela aquilo tudo? Apalpou-se um pouco e depois colocou a coroa.
O véu afagou-lhe as espáduas carinhosamente, como um adejo de borboletas. Teve uma fraqueza, uma cousa, deu um ai e caiu de costas na cama com as pernas para fora… Quando a vieram ver, estava morta (LIMA BARRETO, 1956b, p. 258-259).
Clara dos Anjos, Ismênia ou Lívia – a protagonista do conto do mesmo nome, que sonha com um casamento como único recurso para tirá-la da rotina do trabalho doméstico – todas exemplificam a atualização das imagens do amor no cotidiano e, como bibelôs, esfacelam-se, silenciosamente, em inúmeros fragmentos de dor e decepção.
– O que é amar? Interrogava fremente.
Não é escrever cartas doces? Não é corresponder a olhares?
Não é dar aos namorados as ameaças da sua carne e da sua volúpia? (…)- Qual amor! Qual nada! A questão é casar e para casar, namorar aqui, ali, embora por um se seja furtada em beijos, por outro em abraços, por outro…
– Ó Lívia! Você hoje não pretende varrer a casa, rapariga!
Que fazes há tanto tempo na janela?! (LIMA BARRETO, 1956c, p.155).
O que as move? As ruínas ou fragmentos de memória cultural, como imagens cristalizadas, difundidas pelo romance romântico e agilizadas no dia a dia pela retórica do amor, que define o casamento e o papel destinado à mulher na sociedade.
A sofisticada cultura de massas, hoje, reúne esses mesmos fios esfarrapados de memória cultural para enredar as “Michelles, Pamelas”, as “louras” – que se inspiram nas protagonistas das novelas de televisão para a escolha do vestuário, da linguagem e de atitudes, coerente à “colonização da alma”, na perspectiva de Edgar Morin (1997) – mas também para reeditar as imagens de amor, com seus redentores príncipes encantados e a retórica de “Don Juan”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ZÉRAFFA, Michel (1976). Fictions. The Novel and Social Reality. London: Penguin Books.