A ONDA QUE NÃO SE DEIXA LER: COMENTÁRIO SOBRE UM CONTO DE CALVINO
Samuel Rezende
Universidade Federal de Minas Gerais
Resumo: Inicialmente, este ensaio discute o conceito de simulacro enquanto resistência a um modelo fixo de representação e identidade. Em seguida, encaminha uma reflexão do filósofo Gilles Deleuze sobre a divisão de Platão, naquilo que contribui para um recalque do simulacro, visto que o intuito de Platão era a seleção da imagem que se assemelha à Ideia. Assim, o simulacro deve surgir enquanto resistência ao semelhante, colocando-se como a própria dessemelhança, cujo movimento nunca é o mesmo, mas sempre diferente. O conceito de simulacro é então ligado ao de eterno retorno, àquilo que, contraditoriamente, sempre se torna outro. Finalmente, tendo como pano de fundo tal reflexão teórica, o artigo comenta o conto de Italo Calvino “Leitura de uma onda”, do livro Palomar.
Palavras-chave: Simulacro; Diferença; Calvino; Deleuze.
Abstract: This essay initially discusses the concept of simulacrum as resisting to the fixed model of represenation and identity. Then, it follows a reflection on the philosopher Gilles Deleuze on the division in Plato, when it contributes to the idea of repression of the simulacrum, given that Plato’s intention was the selection of images similar to the Idea. So, simulacrum must be resist the similar, placing itself as its own dissmilitude, whose movement is never the same, but always diferente. The concept of simulacrum is then linked to that of eternal return, something that, contradictorily, always becomes another. Finally, having these discussions as its background, the article comments the short story “Leitura de uma onda”, from the book Palomar, by Ítalo Calvino.
Key-words: Simulacrum; Difference; Calvino; Deleuze
Minicurrículo: Samuel Rezende é aluno do mestrado em Teoria da Literatura e Literatura Comparada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde realiza pesquisa, financiada pela CAPES sobre a poética do mineiro Eloésio Paulo. Graduou-se em Letras pela Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG), onde também realizou pesquisas de iniciação científica, “Mímesis na história: uma proposta de síntese” e “Modernidade e pós-modernidade: uma aproximação”, e conclusão de curso, “Leituras simbólicas do feminino em três poetisas hispano-americanas”.
A ONDA QUE NÃO SE DEIXA LER: COMENTÁRIO SOBRE UM CONTO DE CALVINO
Samuel Rezende
Universidade Federal de Minas Gerais
I – Delineamento teórico
As críticas à metafísica, à verdade, à representação e à identidade são alguns dos temas que, na segunda metade do século XX, ascenderam ao primeiro plano de uma parte da reflexão filosófica. Tais críticas deram ensejos a novas interpretações e lançaram um novo olhar sobre as fundações do pensamento metafísico. Diante desse quadro, o pensamento de Platão, cujo primado é a fixação da verdade e da identidade, tornou-se o ponto de partida de alguns pensadores da filosofia da diferença.
Entre tais pensadores, Gilles Deleuze foi um dos que retornou a Platão, asseverando que “o projeto platônico só aparece verdadeiramente quando nos reportamos ao método da divisão” (DELEUZE, 2011, p. 259), ou seja, a filosofia de Platão não tinha por intenção a divisão dos gêneros em espécies. Na verdade, a teoria das Ideias buscava distinguir o puro do impuro, o verdadeiro do falso:
O objetivo da divisão não é dividir um gênero em espécies, mas selecionar linhagens, ou seja, distinguir o puro e o impuro, o autêntico do inautêntico. A dialética platônica não é da contradição, mas da rivalidade (DELEUZE, 2011, p. 260).
No quadro da metafísica platônica, o mundo inteligível é aquele que se liga à pureza e ao autêntico, e o mundo sensível é aquele que comporta as impurezas e as inautenticidades. Nesse marco divisório, ao sensível, portanto, cabe uma conotação baixa, ou seja, é um mundo onde somente há cópias e aparências, onde as coisas estão sempre em mutação – e é no mundo sensível em que se encontra a poesia. É, portanto, diante dessas cópias e aparências que o método de Platão tratará de selecionar, separando aquilo que possui uma linhagem com relação mais próxima à Ideia, daquilo que se distancia, que escapa à representação ideal, ou seja, o simulacro:
Sob esta condição que a divisão prossegue e atinge seu fim, que é não a especificação do conceito, mas a autenticação da Ideia, não a determinação da espécie, mas a seleção da linhagem. (…) À busca do lado do simulacro e de se debruçar sobre seu abismo, Platão, no clarão de um instante, descobre que não é simplesmente uma falsa cópia, mas que põe em questão a própria noção de cópia e de modelo (DELEUZE, 2011, p. 261).
O simulacro coloca-se como um problema para o método da divisão, pois ele abala a representação entre o modelo e a cópia. Não se liga a nenhum dos dois, não é nem mesmo uma cópia falsa. Ele não visa à imagem semelhante ou à imitação do modelo, ao contrário, produz uma dessemelhança, resistindo à representação. É um elemento que se esvai, que resiste, que não se deixar domar, sendo, portanto, difícil de codificar.
É importante notar que, para Deleuze, na contramão da interpretação tradicional feita do pensamento de Platão, o decisivo não é a separação entre essência e aparência, mas entre cópia e simulacro. É dessa forma que o pensamento de Deleuze se faz original, porque, para ele, a primeira separação é apenas para escamotear a segunda:
A motivação platônica consiste em [trata-se de, sic] selecionar os pretendentes, distinguindo as boas e as más cópias, ou antes, as cópias sempre bem fundadas e os simulacros sempre submersos na dessemelhança. Trata-se de assegurar o triunfo das cópias sobre os simulacros, de recalcar os simulacros, de mantê-los encadeados no fundo, de impedi-los de subir à superfície e de se “insinuar” por toda parte (DELEUZE, 2011, p. 262).
Há, portanto, uma desqualificação do simulacro, uma forte tentativa em derrotá-lo, em mantê-lo submerso no mais profundo. Tal indiferença aparece porque o simulacro não possui, assim como a cópia, uma identidade que o ligue à Ideia. Essa identidade deve pressupor uma imagem certeira entre essência e aparência, modelo e cópia, ou seja, “a cópia não parece verdadeiramente a alguma coisa senão na medida em que parece à Ideia da coisa” (DELEUZE, 2011, p. 262).
Por sua vez, o simulacro quer o objeto, mas não o quer por meio da ideia, ao contrário, o que quer é justamente subverter a imagem semelhante enquanto cópia. Pode-se dizer que o simulacro, enquanto resistência, abre uma fenda no interior da metafísica platônica, pois, o que fazer com algo que é a própria dessemelhança e o próprio desequilíbrio? Enquanto a cópia possui uma imagem que se assemelha à Ideia, o simulacro é justamente a imagem que não possui semelhança:
A cópia é uma imagem dotada de semelhança, o simulacro, uma imagem sem semelhança. (…) O simulacro é construído sobre uma disparidade, sobre uma diferença, ele interioriza uma dissimilitude. Eis porque não se pode nem mesmo defini-lo com relação ao modelo que se impõe às cópias. Modelo do Mesmo do qual deriva a semelhança das cópias (DELEUZE, 2011, p. 263).
A imagem que possui um caráter semelhante tende a ser sempre a mesma, sempre a identidade. A fim de que se mantenha o mesmo, deve-se, portanto, recalcar qualquer traço que destitua a imagem de sua proximidade com o modelo, ou seja, que a distancie de sua essência. Modela-se, assim, a experiência, cuja sensação deverá ser a mesma, nunca diferente. Na imagem semelhante, somente é possível experimentar o modelo, o mesmo que possui um liame essencial com a Ideia.
De outro modo, o simulacro torna-se a imagem da dessemelhança, “imagem sem semelhança”, diz Deleuze. Sua construção é sobre aquilo que difere. Na tentativa platônica de codificar a cidade, o amor e as leis, o simulacro, mais próximo do poético, aparece como o elemento que não se deixa codificar, que resiste a se deixar apreender sob um sistema que pretende o igual. Nesse sentido, apenas a título de exemplo, o choro de Aquiles é o luminar do simulacro. O herói solar, forte e viril, desafiador de reis, vai até Tétis, sua mãe, chorar a prisão de Briseida, por Agamenon. O simulacro corrompe a ideia do mesmo, faz com que o grande guerreiro chore a perda da amada. No interior da imagem do herói, forte e viril, há, portanto, uma dessemelhança, o choro de Aquiles. É essa a diferença que envolve o simulacro, pois ele não permite, de certa forma, que o herói sustente sempre a mesma imagem, que seja sempre igual, porque deve tornar-se outro, sempre:
Em suma, há no simulacro um devir-louco, um devir ilimitado, (…) um devir sempre outro, um devir subversivo das profundidades, hábil a esquivar o igual, o limite, o Mesmo ou o Semelhante: sempre mais e menos ao mesmo tempo, mas nunca igual. Impor um limite a este devir, ordená-lo ao mesmo, torná-lo semelhante – e, para a parte que permaneceria rebelde, recalcá-la o mais profundo possível, encerrá-la numa caverna no fundo do Oceano: tal é o objetivo do platonismo em sua vontade de fazer triunfar os ícones sobre os simulacros (DELEUZE, 2011, p. 264).
Então, se há no simulacro um devir que não possui um limite, ou seja, que continua a se tornar sempre outro, tal conceito não parece distar muito do eterno retorno nietzschiano. Apesar de já se encontrar entre os pré-socráticos, o conceito pressupunha, entre os primeiros pensadores, um caráter cíclico e seria, portanto, por meio de tal movimento que todas as coisas retornariam ao mesmo e ao idêntico. Na visão de Deleuze, a originalidade de Nietzsche está em conceber o eterno retorno enquanto intensidade, cujo movimento é capaz de produzir sempre aquilo que não é mais o mesmo, produzindo sempre o diferente:
O eterno retorno não é um ciclo, não supõe o Uno, o Mesmo, o Igual ou o equilíbrio. Não é o retorno do Todo, não é o retorno do Mesmo, nem retorno ao Mesmo. (…) O desigual, o diferente é a verdadeira razão do eterno retorno. É porque nada é igual e nem o mesmo; o eterno retorno se diz somente do devir, do múltiplo. O eterno retorno constitui a única unidade do múltiplo, a única unidade do que difere (DELEUZE, 2006, p. 163-164).
Alinhado ao eterno retorno, o simulacro ganha força em sua resistência à tentativa de interpretação e de seleção. Não é possível fazer dele um conhecimento, ou ainda, uma experiência que seja universal, pois se reveste de um manto indiscernível às configurações que pretendem à igualdade.
II – A onda que não se deixa ler
O conto “Leitura de uma onda” é uma das diversas histórias que compõem o livro Palomar, de Ítalo Calvino. O título, além de ser o nome do grande personagem dos contos inscritos no livro, é também o nome de um observatório astronômico, que, por muito tempo, conteve o maior telescópio do mundo. A ligação entre os nomes talvez não seja casual, porque remete ao ato de observar. Tal como o observatório, que se fixa nos astros, o senhor Palomar é um observador, que olha atentamente para o mundo. E no conto em questão, ele põe-se a observar e, principalmente, a ler uma onda.
O senhor Palomar encontra-se diante de uma praia e observa as ondas. Ele não as contempla, ou seja, seu olhar não está completamente absorto, porque está seguro quanto ao que se põe a fazer: quer apenas observar. Não pretende observar todas as ondas que surgem e se esvaem no mar. O que o senhor Palomar pretende é selecionar apenas uma simples onda para observá-la:
Em suma, não são “as ondas” que ele pretende observar, mas uma simples onda e pronto: no intuito de evitar as sensações vagas, ele predetermina para cada um de seus atos um objetivo limitado e preciso (CALVINO, 1994, p. 7).
Há a intenção de se fixar um objetivo que, pode-se dizer, vise à seleção da melhor onda. A fim de que o procedimento não seja malogrado, as sensações vagas deverão ser evitadas e o delineamento, então, será estipular os limites precisos para o alcance do objetivo:
Como o que o senhor Palomar pretende fazer neste momento é simplesmente ver uma onda, ou seja, colher todos os seus componentes simultâneos sem descurar de nenhum, seu olhar se irá deter sobre o movimento da água que bate na praia a fim de poder registrar os aspectos que a princípio não havia captado; tão logo se dê conta de que as imagens se repetem, perceberá que já viu tudo o que queria ver e poderá ir-se embora (CALVINO, 1994, p. 8).
A observação pretende tornar-se mais apurada, visto que o observador quer atentar para os detalhes ainda não captados num primeiro momento. A intenção é apreender, ou melhor, é reter uma imagem, o modelo da onda. Pode-se dizer que o grande objetivo do senhor Palomar seria, portanto, buscar a repetição das imagens. Assim que perceber que as imagens se repetem com todos os seus componentes simultâneos, a ideia de onda estará fixada no mesmo, em sua identidade.
Dessa forma, o senhor Palomar busca organizar uma imagem que retenha todos os aspectos em sua totalidade, a fim de que se tenha a ideia de onda. Ler uma onda, para o senhor Palomar, significa congelar uma imagem e, também, uma identidade, por isso, trata de limitar um campo de observação, para que possa “levantar um inventário de todos os movimentos de ondas que ali se repetem com frequência variada dentro de um dado intervalo de tempo” (CALVINO, 1994, p. 9). Não há dúvidas: Palomar quer selecionar a melhor onda dentre todas. Esse movimento de observação almeja a escolha da onda que se furte a qualquer movimento que contradiga a ideia de onda tida por Palomar. Haverá, portanto, uma imagem que deverá sobressair-se, será o modelo mais puro de onda.
Apesar de todo o esforço e determinação do senhor Palomar, em sua tentativa de observação e apreensão da pura imagem, a tarefa de selecionar, isolar, arrastar, separar ou ainda interpretar uma onda não é algo simples.
Isolar uma onda da que se lhe segue de mediato e que aparece às vezes suplantá-la ou acrescentar-se a ela e mesmo arrastá-la é algo muito difícil, assim como separá-la da onda que a precede e que parece empurrá-la em direção à praia, quando não dá até mesmo a impressão de voltar-se contra ela como se quisesse fechá-la (CALVINO, 1994, p. 7).
A excisão que pretende Palomar é árdua porque as ondas com o fluxo contínuo dos movimentos tendem sempre a rejeitarem uma imagem pronta e acabada. Assim, ao ver “uma onda apontar na distância, crescer, aproximar-se, mudar de forma e de cor, revolver-se sobre si mesma, quebrar-se, desfazer-se” (CALVINO, 1994, p. 7), Palomar já não pode apreendê-la. Isto porque é preciso considerar os diversos fatores que contribuem para a formação de uma onda e que devem estar incluídos na leitura de Palomar:
Para se compreender como uma onda é feita, é necessário ter-se em conta esse impulso em direções opostas que em certa medida se contrabalançam e em certa medida se somam, e produzem um quebrar geral de todos os impulsos e contraimpulsos no mesmo alagar de espuma (CALVINO, 1994, p. 9).
Como, no entanto, poderia o senhor Palomar enquadrar a imagem de algo que possui impulsos e contraimpulsos? Seria possível observar o modelo Ideal daquilo cuja força está exatamente em se opor a si mesma? Para se compreender uma onda é necessário entender a própria diferença que há nela mesma. Nesse sentido, parece haver nessa citação uma fina ironia da própria onda em relação ao observador, pois a onda rechaça a compreensão por meio de uma observação que a quer idêntica, por ser formada por impulsos e contraimpulsos. Assim, a onda resiste à interpretação do senhor Palomar, pois seu impulso faz com que assuma o caráter enigmático do simulacro, tornando-se algo que resiste ao domínio da interpretação ou à codificação. A onda, nesse caso, resiste à leitura do senhor Palomar.
A resistência da onda tende a sugerir um verdadeiro jogo de gato e rato em que, a todo o momento, parece haver uma fuga, como se algo escapasse, tornando-se impossível de ser conquistado, apreendido ou ainda territorializado. Sendo assim, para se definir o modelo, haverá sempre alguma consideração a ser feita:
Mas todas as tentativas de definir este modelo devem levar em consideração uma onda que sobrevém em direção perpendicular ao quebra-mar e paralela à costa, fazendo escorrer uma crista contínua e apenas aflorante (CALVINO, 1994, p. 10).
Contudo, “o senhor Palomar não perde o ânimo e a cada momento acredita haver conseguido observar tudo o que poderia ver de seu ponto de observação, mas sempre ocorre alguma coisa que não tinha levado em conta” (CALVINO, 1994, p. 9), ou seja, no instante em que for considerada a direção perpendicular ao quebra-mar e paralela à costa, ainda haverá uma consideração outra, pois a onda resistirá ao modelo e à interpretação da consideração anterior e, portanto, já não será mais a mesma, exigindo que novos elementos sejam avaliados:
Ao mesmo tempo precisa-se considerar as reentrâncias da frente, em que a onda se divide em duas alas, uma que tende em direção à praia da direita para a esquerda e outra da esquerda para a direita, e o ponto de partida ou de chegada dessa divergência ou convergência é aquele ponto em negativo que segue o avançar das alas, mas sempre se mantendo um pouco atrás e sujeita ao sobrepor-se alternando delas, para que não venha a ser alcançada por uma outra onda mais forte embora também esta com o mesmo problema de divergência-convergência, ou talvez por outra ainda mais forte que resolva o impasse rompendo o nó (CALVINO, 1994, p. 8-9).
Apesar de o senhor Palomar não perder o ânimo com a sua observação, sempre surge um novo traço na onda que anteriormente não lhe havia ocorrido. O surgimento desses traços, a todo o momento em que Palomar tenta captar uma imagem, parece revestir as ondas de uma força que as ajudam a resistir a qualquer tentativa de representação. Torna-se, portanto, difícil abarcar uma imagem idêntica de algo que no interior de si mesmo se debate, produzindo impulso e contraimpulso, divergência e convergência. Nessa controvertida ação, a onda ascende à superfície como sendo o próprio simulacro, porque impede a imagem do mesmo, resistindo ao controle da identidade e à ideia mesma de onda:
Em suma, não se pode observar uma onda sem levar em conta os aspectos complexos que concorrem para formá-la e aqueles também complexos a que essa dá ensejo. Tais aspectos variam continuamente, decorrendo daí que cada onda é diferente de outra onda; mas da mesma maneira é verdade que cada onda é igual a outra onda (CALVINO, 1994, p. 8).
Cada onda é igual à outra onda em sua diferença interior, porque são formadas por abalos e contra-abalos. Mas as ondas diferem umas da outras porque se assemelham na própria diferença. Cada onda é diferente de outra onda. Nesse sentido, quebra-se a ideia do uno enquanto detentor de todo valor da imagem pura de onda. Se a onda é o simulacro, porque, tal como o “Homem da multidão” de Poe, “não se deixa ler”, então ela se alinha intimamente ao eterno retorno, porque, não se deixando ler, apresenta sempre novos aspectos que continuamente variam e, portanto, não recaem no uno, no mesmo, no igual ou ainda no universal. Assim tendem a ser as ondas do oceano, cujos movimentos escapam à apreensão do observador, porque nunca são as mesmas. As ondas estão sempre a revolverem-se no ir e vir. Elas sempre estão em devir.
Finalmente, para contemplar tamanha multiplicidade, ao senhor Palomar “bastaria não perder a paciência, coisa que não tarda a acontecer” (CALVINO, 1994, p. 11). Palomar frustra-se por não conseguir o retrato ideal da onda, porque “só conseguindo manter presentes todos os aspectos juntos, ele poderia iniciar a segunda fase da operação: estender esse conhecimento a todo o universo” (CALVINO, 1994, p. 11).
Referências bibliográficas:
CALVINO, Italo. Leitura de uma onda. In: Palomar. 2ª ed. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 7-11.
DELEUZE, Gilles. Conclusões sobre a vontade de potência e o eterno retorno. In: A ilha deserta. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Iluminuras, 2006. p. 155-166.
DELEUZE, Gilles. Platão e o simulacro. In: Lógica do sentido. 5ª ed. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 2011. pp. 259-271.
MACHADO, Roberto. Platão e o método de divisão. In: Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. p. 41-49.