A MURALHA


Autor: Dinah Silveira de Queiroz
Título: A MURALHA, LA MURALLA
Idiomas: port, esp
Tradutor: Estela dos Santos (esp)
Data: 01/07/2005

A MURALHA

 
 

Capítulo I

 
 

Dinah Silveira de Queiroz

 
 
Era como uma brecha ou ferida rasgando as árvores e as plantas, uma vila miserável que transbordava de gente. Ela via os casebres, o povo afluindo ao porto, o navio chegando à bacia de óleo, e punha sua vista naquele teatro com a firmeza do sacrifico que se entregava, cuidando no céu. Se Deus bem quisesse, daí a momentos iria conhecer Tiago, seu primo, seu prometido, a resposta que dera à vida pequenina de Lisboa. O olhar crescia na água, atravessando as lágrimas que não queriam cair. Havia um apagado de luz branca, em torno da mancha vermelha e cinza de orlas verdes de São Vicente. Ali estava seu caminho, seu destino. “Sou como um inocente que entendesse se próprio nascer”.
Junto de Cristina, anunciada pelo seu cheiro de sandalo, Joana Antônia, companheira de longa viagem, apareceu. Trocara suas roupas simples. Trazia um vestido de adamascado escarlate, argolas de ouro e chapéu com uma pena frisada que o vento fazia viver. Hoje Joana Antônia estava decidida e cheia de coragem. Seus olhos cercados de tinta escura, como são os das mouras, luziam de bravata e não de choro:
– “Amenina bem me pode dar seu adeus… Se bem me fio em mim mesma, não lhe ajuntei mal ou desgraça nesta enorme viagem…”
– “Adeus…” Respondeu Cristina com súbita secura, sem voltar-se de lado. Parecia um retrato com fala e gesto, quando mais disse:
– “Deus Nosso Senhor a acompanhe”.
– “Ai, quanto a isto, menina, Deus Nosso Senhor estará comigo, bem que não tenho dúvida. Ele é pessoa mais companheira e sem orgulho…”.
Chegava o Capitão-Mor. Nunca, como nesse momento, ele lhe pareceu um galo novo, passeando sua crista e seu esplendor em meio a outros apagados e servis emplumados. Era distinto, fino, engomado e lustroso como boneco de príncipe. O cabelo caía em ondas de mulher; a mão que o alisava para trás mostrava o grande anel de lápis-lazúli, com seu escudo.
– “Bom dia, senhora minha”, disse ele a Cristina, passando junto de Joana Antônia, que se retirava, não a vendo, nem a sentindo. “Se soubésseis o que é esta terra, e estes endemoninhados sem Lei nem Rei, não gastaríeis aqui vossa gentil presença”. E, não esperando resposta, enquanto acenava para terra, acreditando que já fosse visto: “Em outros tempos, os desesperos de amor e as mágoas de família se aquietavam nos conventos. Agora, toca a passear a mágoa por um mundo diferente”.
Cristina sorria, deslindando as palavras com alegre afetação:
– “Basta de tristezas. Espero não ter gasto todo meu dinheiro em vão com tantos cobiçosos, neste barco. E saiba Vossa Senhoria que vou ser feliz e que não venho esquecer-me, mas viver…”
O Capitão-Mor continuava a acenar; depois, brusco, pondo na moça seus olhos azuis frios, a puxou pelo braço tremente, falando em cor de voz mais íntima:
– “Cure-se a menina de ilusões. A pobreza arrogante desta terra! Os índios feios como Judas, os brancos sujos, fanfarrões e briguentos, os negros fazendo o que lhes ensinam, como monos. Os padres disputando com os brancos, mas lhes dizendo as missas. E as mulheres escondidas em casa como coelhos nas tocas, ignorantes e obstinadas”.
E enquanto cortejava a gente que já o podia distinguir, com um aceno altaneiro:
– “Vede bem esta miséria. De perto ainda é pior! Porque este povo cheira diferente… Se algum dia descoroçoar, contai com minha valia”.
Cristina foi prendendo a mantilha, enrolando-a no pescoço:
– “Com esta gente de que fala não viverei eu. Há de ser com meu esposo, que tem meu próprio sangue, e será um homem igual a meu irmão”.
O Capitão-Mor balançou a cabeça, mirou Cristina de cima a baixo:
– “Deus Nosso Senhor conserve a alegria da menina, e também sua beleza, em terra tão sem galas. Adeus!”
Cristina se viu, descida do bote, num atordoar de povo que a olhava com se ela viesse de outro mundo. Ela se viu a contar suas arcas, a vigiar os tripulantes que as traziam para a terra. Como reconheceráTiago? Voltava-se depressa, em sustos, a cada instante. Mas o homem que podia ser seu noivo já a inquiria com jeito desaforado na face. Eram todos curiosos, e as suas coisas excitavam interesse geral. O moço que a acompanhara empurrou com o corpo, de lado, certa mulherinha escura, de duros cabelos, que passava a mão pelo seu vestido, como alguém encantado a alisar um bicho.
– “Arreda! Arredem todos!”
Nesta confusão se chegou uma figura estranha: Um mestiço ruivo, de face sardenta e rosada, de olhos fendidos no rosto chato. Vestia roupa decente, calça de algodão, jubão de couro.
– “Ei…Procuro a dona mandada pra meu senhor…”
Cristina, embora em sua tonteira de emoção, quis ajudar. Seria o criado para levar Joana Antônia… E mostrou:
– “Vai acolá. Espera ali à sombra…”
Mas o criado a olhou, de lado, suspeitoso:
– “Sou da Lagoa Serena. Meu senhor aqui me mandou pela dona de seu filho…Tiago, meu sinhozinho”.
Cristina sentiu o sangue no rosto:
– “Tiago não vem?”
O mestiço olhou a moça – triunfante:
– “Aimbé leva a dona dele!”
Cristina viu dois homens quase despidos, escuros, de cabelo liso e sem barba. Pareciam gêmeos.
– “Gente boa. Gente da Lagoa Serena. Aimbé mesmo caçou eles pra meu Senhor!”
Os índios, com Aimbé, carregaram as arcas. Um homenzarrão barbudo e em farrapos puxou a mantilha de Cristina, e riu, um riso de dentes pretos:
– “Ai, a branquinha tão fresca!”
Aimbé lhe cortou a explosão:
– “É a sinhazinha pra Lagoa Serena!”
O homem fechou a boca, deu um passo desajeitado para trás, fazendo o arremedo de uma escusa ou de um cumprimento. Ela arrebanhou firme a saia na mão, e enfrentou a populaça, formada de faces espantadas ou admirativas, ingênuas ou caçoístas. Desviou os olhos de uma mulher morena, só de saia, com os longos seios bambos expostos; deu com o braço no peito de um velho que ria divertido para ela, intrigado com se ela fosse um boneco de engonço. Uma ave, no ombro do velho, dava gritos terríveis, ofendida e solidária com seu amo, logo que este foi empurrado.
Cristina estava agora animada de heroísmo obscuro. Aceitava tudo, queria tudo aceitar com perfeita naturalidade, porque ao fim daquele fio de cenas e acontecimentos ela teria Tiago, o seu Tiago; tão bom, decerto, como seu irmão, e ainda mais belo. Exatamente como aparecia no medalhão que escondia sob o vestido.
(…).
 
 
________________
 
Fonte: QUEIROZ, Dinah Silveira de. A Muralha. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1954.p. 11-15.
 

LA MURALLA

 
 

Capítulo I

 
 

Dinah Silveira de Queiroz

 
 
Esa villa miserable desbordada de gente era como una brecha o una herida que rasgaba los árboles y las plantas. Ella veía las casuchas, el pueblo afluyendo al puerto, el barco que llegaba a ala hondonada aceitosa, y ponía sus ojos en ese teatro con la firmeza del sacrificio que se hace pensando en el cielo. Si Dios quería en pocos momentos conocería a Tiago, su primo, su prometido, la contestación que había dado a la vida pequeña de Lisboa. Sus ojos crecían de agua por las lágrimas que no querían salir. Era una apagada luz blanca alrededor de la mancha roja y ceniza con orlas verdes de São Vicente. Allí estaba su camino, su destino. “Soy como un inocente observando su propio nacimiento”.
Junto a Cristina, preanunciada por su olor a sándalo, se acercó Joana Antonia, su compañera del largo viaje. Se había cambiado sus ropas sencillas. Traía un vestido de damasco escarlata, aros de oro y un sombrero con una pluma rizada que la brisa hacía vivir. Hoy Joana Antonia estaba decidida y llena de coraje. Sus ojos orlados de oscura tinta, como los de las moras, brillaban de bravura y no de lágrimas:
-La niña podría saludarme… Según mi opinión, no le contagié ningún mal ni desgracia en este enorme viaje…
-Adiós… – contestó Cristina con súbita sequedad, sin darse vuelta. Parecía una fotografía que hablaba y se movía cuando le dijo:
-Que Dios Nuestro Señor la acompañe.
-Ay, niña, Dios Nuestro Señor estará conmigo, no tengo la menor duda. Él es una persona compañera y sin orgullo…
Llegaba el capitán. Nunca como en ese momento le pareció un gallo joven paseando su cresta y su esplendor en medio de otros oscuros y serviles emplumados. Era distinto, fino, almidonado y lustroso como un muñeco de príncipe. El cabello le caía en ondas femeninas y su mano, al alisarlo hacia atrás, mostraba un gran anillo da lapizlázuli con su escudo.
-Buen día, mi señora – le dijo a Cristina pasando al lado de Joana Antonia que se retiraba, sin verla ni sentirla. “Si supiera lo que es esta tierra y estos endemoniados sin ley y sin Dios, no gastaría aquí su gentil presencia”. Y sin esperar respuesta, mientras hacía señas hacia tierra pensando que ya había sido visto: “En otros tiempos las desesperaciones amorosas y las angustias familiares se sosegaban en los conventos. Ahora la tristeza se pasea por un mundo diferente”.
Cristina sonreía deslindando las palabras con alegre afectación:
-Basta de tristezas. Espero no haber gastado todo mi dinero en vano con tantos codiciosos en ese barco. Y sepa Su Señoría que voy a ser feliz y que no vengo a olvidar sino a vivir…
El capitán continuaba haciendo señas; después, bruscamente, poniendo sus fríos ojos azules en la muchacha, la agarró por el brazo tembloroso, hablándole en tono de voz más íntimo:
-Cúrese de ilusiones, niña. La pobreza altiva de esta tierra, los indios feos como judas, los blancos sucios, fanfarrones y borrachos, los negros repitiendo lo que les enseñan como monos. Los curas peleándose con los blancos pero diciendo las misas. Y las mujeres escondidas en las casas como conejos en sus cuevas, ignorantes y obstinadas.
Y mientras cortejaba a la gente que ya lo podía distinguir, con un acento altanero:
-Mire bien esa miseria. ¡De cerca todavía es peor! Porque este pueblo huele diferente… Si algún día se descorazona, cuente con mi apoyo.
Cristina tomó su mantilla y empezó a envolverse el cuello:
-Con esa gente de la que habla yo no viviré. Estaré con mi esposo, que tiene mi misma sangre y será un hombre igual a mi hermano.
El capitán movió la cabeza y miró a Cristina de arriba abajo:
-Dios Nuestro Señor conserve su alegría, niña, y también su belleza, en esta tierra carente de galas. Adiós.
Al bajar del bote, Cristina se encontró en medio del tumulto que la miraba como si viniese de otro mundo. Tuvo que contar sus baúles y vigilar a los tripulantes que los traían a tierra. ¿Cómo reconocería a Tiago? A cada instante se daba vuelta deprisa, asustada. Pero el hombre que podía ser su novio ya la buscaría con el rostro desaforado. Todos eran curiosos y sus cosas excitaban el interés general. El mozo que la había acompañado empujó con su cuerpo, de costado, a una mujercita oscura, de cabellos duros, que le pasaba una mano por el vestido como alguien encantado de acariciar un animal.
-¡Atrás! ¡Atrás todos!
En esa confusión se acercó una figura extraña: un mestizo rubio, de mejillas pecosas y rosadas y ojos hundidos en la cara chata. Vestía ropa decente, pantalón de algodón y saco de cuero.
-¡Ei!… Busco a la señora mandada para mi señor…
Cristina, atontada en su emoción, quiso ayudar. Sería el criado para llevar a Joana Antonia… Y le señaló:
-Anda allá. Espera en la sombra…
Pero el criado la miró de reojo, sospechando:
-Soy de la Lagoa Serena. Mi señor me mandó por la señora de su hijo… Tiago, mi sinhôzinho.
Cristina sintió que la sangre le subía al rostro:
-¿Tiago no viene?
El mestizo la miró, triunfante:
-¡Aimbé lleva a la señora!
Cristina vio a dos hombres casi desnudos, oscuros, de pelo liso y sin barba. Parecían mellizos.
-Buena gente. Gente de la Lagoa Serena. ¡Aimbé los cazó para mi señor!
Junto con Aimbé, los indios cargaron los baúles. UN hombrón barbudo y harapiento tocó la mantilla de Cristina y se rió con una risa de dientes negros:
-¡Ay, qué blanquita tan fresca!
Aimbé lo cortó:
-Es la sinhazinha para Lagoa Serena!
El hombre cerró la boca, dio un paso sin gracia hacia atrás remedando una excusa o un saludo. Ella levantó con firmeza la pollera con la mano y enfrentó al populacho formado de caras asombradas o admiradas, ingenuas o burlonas. Desvió los ojos de la mujer morena, sólo con polleras y los largos pechos bamboleantes al desnudo y golpeó con su brazo a un viejo que se reía, divertido con ella, intrigado como si fuese una muñeca articulada. Un ave sobre el hombro del viejo largaba terribles gritos, ofendida y solidaria con su amo, apenas éste fue empujado.
Ahora Cristina estaba animada de un oscuro heroísmo. Aceptaba todo, quería aceptar todo con perfecta naturalidad, porque al final de ese desfile de escenas y sucesos tendría a Tiago, a su Tiago, seguramente tan bueno como su hermano y todavía más hermoso. Exactamente como aparecía en el medallón que escondía por dentro de su vestido.
(…).
 
 
_________________
 
Fonte: QUEIROZ, Dinah Silveira de. La Muralla. Traducción de Estela dos Santos. Buenos Aires: Macondo Ediciones, 1978. p. 15-17.