“A MORTE DO AUTOR” EM BOUVARD E PÉCUCHET, DE GUSTAVE FLAUBERT – Ana Claudia Pinheiro Dias Nogueira


“A MORTE DO AUTOR” EM BOUVARD E PÉCUCHETDE GUSTAVE FLAUBERT

Ana Claudia Pinheiro Dias Nogueira

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

 
 
Resumo: O presente artigo pretende mostrar a posição do autor na obra Bouvard e Pécuchet de Gustave Flaubert, a partir dos conceitos levantados por Roland Barthes, em seu ensaio A morte do autor. Considerada uma obra às avessas da tradição do romance, Bouvard e Pécuchet traz à tona a imbecilidade humana, através da colagem de idéias alheias, catalogadas e pesquisadas por Gustave Flaubert durante seus últimos anos de vida. Assim, o romance confunde a posição do autor com a posição do leitor, inaugurando uma forma nova, sem precedentes, que Roland Barthes mencionou em vários de seus ensaios e escritos. Assim, Barthes mostra a retirada do autor, o nascimento da linguagem, para além do papel essencial do leitor, que, nesse caso, se mescla com a função autor.
 
Palavras-chave: Flaubert; Barthes; autor; literatura, Bouvard e Pécuchet.
 
Abstract: This article aims to present the author’s position in the work Bouvard and Pécuchet, by Gustave Flaubert, departing from some concepts raised by Roland Barthes in his essay “The Death of the Author.” Considered as a work apart from the Romantic tradition, Bouvard and Pécuchet brings about the human imbecility, by pasting other people’s ideas, catalogued and researched by Gustave Flaubert during his last years of life. Thus, the novel confounds the author’s with reader’s position, pointing to the absence of the author, and the birth of a new concept of language, which Barthes mentions in several of his writings and essays.
 
Keywords: Flaubert ; Barthes ; author; literature, Bouvard and Pécuchet .
 
Minicurrículo: Ana Claudia Pinheiro Dias Nogueira possui graduação em Letras (2007) e mestrado em Estudos de Linguagem (2013) pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Atualmente é bolsista Capes e doutoranda da Pós-Graduação de Estudos da Linguagem na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em literatura, atuando nos seguintes temas: literatura comparada, arte e crítica, percepção do texto poético e questões da contemporaneidade.
 
 
“A MORTE DO AUTOR” EM BOUVARD E PÉCUCHET,
DE GUSTAVE FLAUBERT
Ana Claudia Pinheiro Dias Nogueira
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
 
Guy de Maupassant (1990) registrou certa vez que Gustave Flaubert, em plena falência financeira, recluso em sua casa e entregue totalmente à escrita, morreu repentinamente em 1880, ao pé de sua mesa de trabalho, deixando em estado de roteiro as duas últimas cenas do capítulo X da mais desafiante de suas obras: Bouvard e Pécuchet.
Tal projeto desconcertou os seus contemporâneos, definindo-o como uma “aberração estranha”, segundo dizeres de Mallarmé (cf. CAMPOS, 1978, p. 13). Essa obra inacabada tinha o intento de provocar os burgueses, confrontar a sociedade da época. Assim:
 
a escrita é uma realidade ambígua: por uma parte, nasce incontestavelmente de um confronto do escritor com a sua sociedade por outra, dessa finalidade social, ela remete o escritor, por uma espécie de transferência trágica às fontes instrumentais de uma criação (BARTHES, 1974, p. 15).
 
 
Flaubert fez as seguintes confissões sobre tal produção, em carta a Mme. Roger Des Genettes, em 1872: “É preciso estar louco e triplamente frenético para empreender um livro como esse!”. Além disso, disse também que “nesse tempo de avacalhamento universal”, que lhe provocava revolta, “vomitarei sobre os meus contemporâneos o desgosto que eles me inspiram, ainda que tenha que romper o meu peito. Bouvard e Pécuchet me obcecam a tal ponto que eu me transformei neles! Sua estupidez é a minha e eu morro dela”.[1]
Assim, para Flaubert, a escrita era um ato de “fabricação”; uma “cerâmica”; uma “joia”; e isso mostra o seu intenso envolvimento com suas produções. Roland Barthes não esconde em seus ensaios sua admiração pelas obras do escritor, e disse que “para Flaubert, o estilo é a dor absoluta, a dor infinita, a dor inútil” (BARTHES, 1974, p. 68).
É esse estilo flaubertiano tão comentado por Barthes que chama atenção. Um estilo peculiar, que não tem somente a intenção de proporcionar prazer, mas também provocar o desconforto. Atentemos a Bouvard e Pécuchet, especificamente. Por que tal obra causa inquietação? O que Flaubert pretendia afinal? Qual é a posição do autor na obra? Qual é o limite do autor/leitor/personagens? Como tal escrita pode mostrar a retirada do autor e talvez mostrar a sua suposta “morte” simbólica como Barthes costumava afirmar?
Discorreremos sobre a posição do autor e a figura do leitor na obra Bouvard e Pécuchet, baseado nos conceitos tratados por Roland Barthes em seu ensaio A morte do autor, podendo durante a análise surgir outros conceitos e autores para dar maior suporte às idéias barthesianas.
 

  • Barthes e Bouvard e Pécuchet

Antoine Compagnon, em O demônio da teoria (2006, p. 47) afirma que o ponto de maior controvérsia dos estudos literários é o lugar que o autor ocupa diante da obra. Antigamente, associava-se o sentido da obra do ponto de vista primordial do autor, exposto pela filologia, pelo positivismo, pelo historicismo. Porém, a partir de ideias contemporanêas, como o Formalismo Russo e o New Criticism, o texto tornou-se detentor do sentido, independente das intenções do autor. Não tardou para que nos meados dos 60, Hans Robert Jauss e outros teóricos trouxessem à tona a importância do leitor como agente significante para a obra literária.
A partir dessas vertentes de questionamentos da posição e da importâcia real do autor para obra, Roland Barthes formula a tese ‘A morte do Autor’. Partindo desses conceitos mencionados, a obra não se limita ao autor, e sim, a linguagem; é como foi composta e feita, segundo Barthes. Como formar um estilo através do trabalho árduo de compor uma linguagem artesanal, podendo assim  esse autor ver em sua obra o além de si mesmo? Vale ressaltar, que essa “morte” do autor, é uma morte simbólica ; o autor tem sua importância, porém ele não é a mais a figura central e o foco de todas as respostas do texto. Assim, não faria sentido mencionar a fortuna crítica e o trabalho intelectual de Gustave Flaubert. que se pretende abordar é o esvaziamento do espaço desse autor, valorizando o processo de escrita e sua recepção. Sendo assim, “A problemática da autoria surge e ressurge a todo instante na obra, tanto no que concerne aos personagens, quanto ao próprio Flaubert ” (SANTOS, 2013, p. 137).
Para Barthes, a escritura é esse neutro, esse composto, pelo qual o sujeito consegue obter sua fuga e perder sua identidade; seria esse “grau zero da escrita”. Logo, começa o corpo que escreve, não mais o indivíduo propriamente em si. Michel Foucault (2006, p. 295) também teceu pontos de vista (embora sejam por outros vieses), sobre a representatividade do autor em uma obra, dizendo que o autor se apaga para favorecer seu discurso. Logo, esse desaparecimento de quem compõe a escrita, nada mais é que um jogo da função do autor dentro da obra.
Antoine Compagnon menciona Roland Barthes em sua obra O demônio da teoria, dizendo que o escritor:
 
É aquele para quem a linguagem é problema, que experimenta sua profundidade, não a instrumentalidade ou a beleza”. A literatura é a partir daí plural, irredutível a uma intenção, donde a exclusão do autor. (COMPAGNON, 2006, p. 67)
 
Bouvard e Pécuchet  pretendia mostrar esse jogo; seria a “vingança moral” aos seus contemporâneos.  Esses personagenseriam a representação dos burguêses. Enquanto Emma Bovary representava uma figura feminina vazia, envolvida com as leituras românticas e submersa numa atmosfera burguesa falida como o casamento, os dois copistas representam o individuo burguês do século XIX aspirando conhecimento e progresso, em busca do desenvolvimento da civilização. “Este homem civilizado, por sua vez, deveria não somente usufruir da tecnologia, mas também buscar acumular o máximo de conhecimento” (SANTOS, 2013, p. 20).
Para compor a obra, Flaubert leu mais de 1.500 livros com temáticas variadas (como agronomia, jardinagem, fabricação de conservas, anatomia, etc.), como prova que a humanidade tem a necessidade de compreender e dominar o mundo através do saber. Além de autor, Gustave Flaubert era antes de tudo, um leitor. O autor é fundido aos personagens da história e a “colagem” e conceitos alheios recorridos às leituras feitas. Como prova disso, Julia Kristeva diz que “todo texto se constrói como um mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de outro texto (apud SAMOYAULT, 2008, p. 16). Dessa forma, existe uma criação? Tudo se resume a colagens de ideias? Qual é a função do autor que é também um leitor?
Atentemo-nos ao enredo: Bouvard e Pécuchet são dois copistas, que se conhecem por acaso e tornam-se amigos. Certa vez, em conversa informal, ambos confessam que são insatisfeitos com seus ofícios e se pudessem, se dedicariam à pesquisa, à leitura e fariam grandes coisas em diversas aréas do saber. Em determinado momento, Bouvard recebe a herança de um tio e faz a seguinte proposta ao amigo Pécuchet : comprar uma chacará e dedicar todo o tempo aos estudos de diversas áreas, a pesquisa e a prática. Depois de tanto tentarem e e praticarem, fracassam em todos intentos e desistem do sonho. É como se todo conhecimento adquirido fosse posto a prova e descobrisse que tudo não passa de uma farsa e grande estupidez.
Vejamos um exemplo a partir de um trecho do romance, que mostra as contradições que o conhecimento pode acarretar, que no caso, é na área da química especificamente:
 
Para estudar química, providenciaram o Curso de Regnault, e aprenderam antes de tudo que “os corpos simples talvez sejam compostos”. Dividem-se em metalóides e metais, diferença que “nada tem de absoluto”, diz o autor. O mesmo acontece aos ácidos e às bases, “um corpo pode comporta-se à maneira dos ácidos ou das bases, dependendo das circunstâncias.”
A notação lhe pareceu estapafúrdia. As proporções múltiplas confundiram Pécuchet (FLAUBERT, 2007, p. 93).
 
Ao final, cansados de fracassarem em seus experimentos e depararem com tantas contradições, os dois homens voltam à posição inicial: de copistas que copiam tudo que leem! Segundo Guy de Maupassant, Bouvard e Pécuchet :
 
É a história da fraqueza da inteligência humana, um passeio pelo labirinto infinito da erudição com um fio na mão; este fio é a grande ironia de um pensador que constata sem cessar em tudo, a estupidez eterna e universal  (MAUPASSANT,1990, p. 38).
 
Para comprovar essa imbecilidade inerente humana e esse estado de frustração intelectual (e de gasto total da tão estimada herança), cria-se um “Tolicitário”, um Dicionário de ideias prontas que surgiu depois de tanto os personagens tentarem e experimentarem as teorias dos livros. Eles apropriam-se de vocabulários existentes e dão-se novas definições a elas, subvertendo-as. Vejamos alguns exemplos dos verbetes do “Tolicitário”: BUDISMO –  “Falsa religião da Índia”. ALCOOLISMO – “Causa de todos os males modernos”. BANQUEIROS – “Todos ricos, árabes e agiotas”. CALOR – “Sempre insuportável! Não beber quando faz calor.” CORTESÃ – “Mal necessário. Salvaguarda de nossas filhas e nossas irmãs. São sempre moças do povo, levadas à devassidão por burgueses ricos”. DOMINÓ – “Joga-se dominó melhor quando se está embriagado”. HOMERO – “Jamais existiu.” No mínimo, tais definições provocam certo estranhamento e riso.
Augusto de Campos afirma, em A margem da margem, que:
 
Se Bouvard e Pécuchet já desconcerta pela neutralidade da linguagem, sem qualquer brilho aparente, pelo anti-heroísmo dos personagens, e pela reiteração dos movimentos, sucessos e fracassos, o Dicionário atenta definitivamente a ação e os personagens e nos põe em contanto direto com o tema da imbecilidade (que ambiguamente confunde o leitor, autor e personagens, fictícios colecionadores de verbetes). (…) Nessa obra, “personagens se convertem em despersonagens, heróis em anti-heróis, ao passo que o estilo se desistila e se neutraliza, no segundo tomo o autor se retira de vez. O escritor desescreve (CAMPOS, 1978, p. 18-20).
 
 
Com essa visão de desconstrução da escrita, Flaubert parece não acreditar mais no romance em si, na literatura como algo detentor de todo sentido e completo, considerando o processo de escrita e artificialidade desse gênero, que não poderia representar a vida em sua verossimilhança e totalidade. Oram segundo Barthes (1974), em O grau zero da escrita, a escrita pode se reduzir a um tipo de modo negativo em que dados sociais ou míticas de uma linguagem comprometida em favor de um estado neutro e inerte da forma.
A questão de autoria/leitor também entra em discussão. Em Bouvard e Pécuchet, quando a cópia se torna o impulso da produção, é possível perceber uma descaracterização da ideia dessa autoria, pois o discurso do texto só é construído a partir de outros discursos e referências, dando fim ao que seja propriedade tanto no “roubo” do que é do outro quanto na construção daquilo que seja próprio. A obra confunde a posição autor/leitor, se retroalimenta, tornando-se fragmentada.
Segundo Barthes (2004, p. 62), ao citar a composição de Bouvard e Pécuchet, diz que o escritor imitará sempre um gesto já existente, já dito, como se a criação fosse algo ilusório, ou seja, jamais original; o poder dessa “entidade” (que é o escritor) é de dar novos sentidos ao “já-dito”, mesclar informações, criar contradições. Ou seja, um livro nada mais é que um retalho de citações anteriormente feitas. Philippe Sollers reforça essa idéia dizendo que “Todo texto situa-se na junção de vários textos dos quais ele é ao mesmo tempo a releitura, a acentuação, a condensação, o deslocamento e a profundidade (apud SAMOYAULT, 2008, p. 17).
Antoine Compangnon, em La seconde main, citado por Tiphaine Samoyault (2008), comenta sobre essa escrita que agrega outros discursos e lhe dá continuidade, ou um novo conceito e entendimento:
 
O trabalho da escritura é uma reescritura, visto que se trata de converter elementos separados e descontínuos num todo contínuo e coerente […] Reescrever, realizar um texto a partir de seus fragmentos, é arranjá-los ou associá-los, fazer as ligações ou as transições que se impõem entre os elementos presentes. Toda escritura é colagem e glosa, citação e comentário (apud SAMOYAULT, 2008, p. 35).
 
A autoria aqui parece confundir-se com a leitura, pois, para Flaubert, utilizar aquilo que é de outro, deve-se colocar no lugar de leitor, e, retomando a noção de scriptor, o autor leva este lugar de ação ao extremo ao concretizar este novo texto a partir de outros. Para Barthes, “a linguagem conhece um “sujeito”, não uma “pessoa”, e esse sujeito, vazio fora da enunciação que o define, basta para “sustentar” a linguagem, isto é, para exauri-la” (BARTHES, 2004, p. 60).
A seguir, analisaremos outro trecho da obra Bouvard e Pécuchet, que mostra claramente a colagem de idéias de outros autores, sendo confrontadas e ridicularizadas pelas contradições de argumentos, que coloca em questão a seriedade científica:
 
(…) O ideal de ambos era Cornaro, o fidalgo veneziano que, graças a um regime rígido, foi muito longevo. Sem chegar a imitá-lo totalmente, poderiam tomar as mesmas precauções, e Pécuchet retirou, da sua biblioteca, o Manual de higiene, do doutor Morin.
Como haviam conseguido viver até então? Os pratos que gostavam eram proibidos. Germaine, confusa, não sabia mais o que lhes servir.
Todas as carnes têm inconvenientes. Os chouriços, as salsicharias, o arenque defumado, os crustáceos e a caça são “refratários”. Quanto maior o peixe, mais contém gelatina e, consequentemente, é mais pesado. Os legumes causam acidez, o macarrão produz pesadelos, os queijos “de um modo geral são difíceis de digerir”, um copo de água pela manhã é “perigoso”. Toda bebida ou todo comestível vem acompanhado de um aviso dessa espécie, ou então destas palavras: “Nocivo! – Cuidado com o abuso! – Não convém a todos!”
Faz mal por quê? Em que consiste o abuso? Como saber se determinada coisa nos convém?
Que problema o almoço! Abandonaram o café com leite devido à sua reputação detestável e, em seguida, o chocolate, por ser “um amontoado de substâncias indigestas”. Restava o chá. Mas “as pessoas nervosas não devem bebê-lo de forma alguma. No entanto, no século XVII, Decker prescrevia vinte decalitros por dia, para limpar as estagnações do pâncreas.
Aquela informação abalou a estima deles por Morin. Além do mais, condenava todas as coisas que cobriam a cabeça – chapéus, bonés e barretes –, exigência que revoltou Pécuchet. Então compraram o Tratado de Becquerel, onde viram que o porco é em si “um bom alimento”, o tabaco, perfeitamente inocente e o café, “ indispensável aos militares”.
Até então tinham acreditado na insalubridade dos lugares úmidos. Nada disso! Casper declara que são menos mortíferos que os outros. Não se toma banho de mar sem antes refrescar a pele. No entanto, Bégin recomenda que se entre nele ainda transpirando. O vinho puro após a sopa é considerado excelente para o estômago. Lévy acusa-o de prejudicar os dentes. Finalmente, o colete de flanela, esta salvaguarda, este protetor de saúde, este paládio, tão caro a Bouvard e inerente a Pécuchet, é desaconselhável pelos autores, sem rodeios, nem medo da opinião, aos homens pletóricos e sanguíneos.
Afinal, o que é a higiene? “Verdade aquém dos Pirineus, erro além”, afirma o senhor Lévy, e Becquerel acrescenta que não é uma ciência (FLAUBERT, 2007, p. 108- 109).
 
Os personagens, ao depararem com tais absurdos, questionam cada conceito lido: não entendem, tentam pôr em prática e fracassam. Mesmo assim, resta-lhe esperança, pois eles insistem em outras áreas e leituras, até que concluem que tudo não passa de uma ilusão e de uma soma de equívocos intelectuais e científicos que se afirmam hoje e se negam amanhã.
Flaubert compôs essa narrativa, através da colagem de idéias, questionando cada conceito lido, mostrando que a “forma literária pode doravante provocar os sentimentos existenciais que estão atados ao interior vazio de todo objeto, sentido de insólito, familiaridade, repugnância, complacência, uso, homicídio” (BARTHES, 1974, p. 5). Flaubert ao fazer isso, desconstrói a escrita e logo, o papel de escritor no romance, tendo que assumir o caráter dessacralizador da linguagem e de autoria, dando essa liberdade de interpretação e leitura da obra.
Contudo, “Dar ao texto um Autor é impor-lhe um travão (…) é fechar a escritura” (BARTHES, 2004, p. 63). Independente dessa fala feita posteriormente, Flaubert justificou o pensamento barthesiano anteriormente. Guy de Maupassant disse que Flaubert era um “apóstolo da impessoalidade na arte” e que ele não admitia que o autor fosse, em momento algum, um ser vislumbrado, iluminado; que por descuido deixasse transparecer em uma página ou frase, uma articulação de sua opinião íntima como forma de intenção (cf. MAUPASSANT, 1990, p. 72).
Para Fernanda Ferreira Santos, Flaubert tinha essa consciência mencionada por Maupassant:
 
Toda a folia enciclopédica de Flaubert, todos os discursos que ele apresenta no texto servem pura e simplesmente, segundo Contador Borges, para denunciar o próprio momento de escrever. Isso nos faz pensar acerca da teoria de que o escritor já se preocuparia com a linguagem, de que ela, em seu texto, já aparece como um retorno a si (SANTOS, 2013, p. 32).
 
Consciente de seu ofício, Flaubert era altamente disciplinado e comprometido; jamais descuidaria em parecer um autor dono de sua obra e de suas verdades.
 
Gustave Flaubert, ao contrário, procedendo com inteligência e compreensão profundas, muito mais que por intuição, trazia em uma linguagem admirável e nova, precisa, sóbria e sonora, um estudo de vida humana profundo, surpreendente, completo (MAUPASSANT, 1990, p. 29).
 
Julgava que a personalidade do autor deve evaporar na originalidade da criação de um livro. Esse autor não se “apaga”, mas a escrita “nasce” e é algo aberto, inacabado; essa escrita torna-se atração principal onde o leitor se deleita e interage com o que lê.
 

  • O Leitor/autor:

Esse Leitor (já disse uma vez Calvino) é aquele que agrega o “não-dito” dentro da obra; que preenche as lacunas, que traz novos entendimentos (cf. CALVINO, 2003, p. 243). Logo, o Leitor torna-se figura essencial para completude de uma obra.
Poderemos citar Umberto Eco (1994) e seu “bosque narrativo”, onde o leitor é convidado adentrar e explorar cada espaço desse lugar. Usando as palavras desse autor, o texto seria uma máquina “preguiçosa”; que não responde a todas as perguntas; essa máquina pede ao leitor que faça o seu trabalho na obra, e por isso, o “passeio no bosque” torna-se mais interessante. Esse tipo de leitor-modelo, definido por Eco, é criado pelo texto em si e dele se torna refém, ou seja, esse leitor-modelo desfruta apenas a liberdade que o texto lhe oferece. Logo, Eco formula o entendimento que o autor/leitor-modelo devem andar juntos, pois
 
Precisam aparecer juntos porque o autor-modelo e leitor-modelo são entidades que se tornam claras uma para outra somente no processo de leitura, de modo que uma cria a outra. Acho que isso é verdadeiro não apenas em relação aos textos narrativos como em relação a qualquer tipo de texto (ECO, 1994, p. 30).
 
 
Se a obra Bouvard e Pécuchet é múltipla diante de quem escreve, ela triplica na mão de quem a lê. Fazer nascer esse leitor é ofuscar o autor (esse “ofuscar” seria valorizar o papel do leitor, não excluir completamente o autor); a voz desse leitor se torna imperceptível enquanto o império de autor prevalece intacto, segundo Barthes. Flaubert era um autor/leitor.
Logo, tanto Flaubert como seus personagens Bouvard e Pécuchet não passam de leitores que tentam reproduzir o que leram, o que torna a obra interminável. “De todos os seus textos é o que mais aponta para o futuro e para o nosso tempo” (CAMPOS, 1978, p. 14). O autor, em carta a Louise Colet, em dezembro de 1852 diz: “Seria necessário que, em todo o livro, não houvesse uma só palavra de minha autoria e que depois de tê-lo as pessoas não ousassem mais falar com medo de dizer instintivamente uma das frases que lá se encontram”.[2] Diante disso, cria-se uma liberdade da recepção, nasce uma obra sem procedentes, provocadora e um autor disposto a “morrer” para sua criação, ou seja, se tornar um ponto neutro; deixa sua obra dizer por si mesma.
Podemos aqui decretar outra “morte” simbólica: a morte do livro. Seria o fim da concepção do livro como algo encerrado, dotado de toda significação, sendo assim na escritura passível de encontrar a inserção do sujeito na internalidade da escrita. Os livros citados e usados em Bouvard e Pécuchet passam por essa morte, pois não carregam plena significação, o que é percebido na leitura que não se concretiza dos personagens. Para justificar tal argumento, Derridá diz que “(…) o fim da escritura linear é definitivamente o fim do livro (…)” (DERRIDA, 2011,  p. 108).
Obra pela obra, autor desconstruído, prosa aberta, fragmentada e inclassificável, Flaubert desafiou e provocou quem pudesse presenciar seus dois copistas em suas labutas e desventuras. A obra não se encaixa em nenhum tempo, mas sim, na eternidade. Se as figuras do autor/leitor eram bem demarcadas no romance tradicional, Flaubert fez questão de desconstruí-las, como Barthes já disse posteriormente. Além disso, ele ousou profetizar caso “concluísse” a obra: “Se eu conseguir, será falando seriamente, o ápice da Arte”. Pelo visto, ele conseguiu.
 
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARTHES, Roland. Novos ensaios críticos: o grau zero da escritura. São Paulo: Cultrix, 1974.
BARTHES, Roland. A morte do autor. In. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
CALVINO, Ítalo. “Apêndice”. In: Se um viajante numa noite de inverno. São Paulo: Cia das Letras, 2003.
CAMPOS, Augusto de. O Flaubert que faz falta. In: A margem da margem. São Paulo: Companhia das Letras, 1978.
COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria : literatura e senso comum. Trad. Cleonice Paes Barreto Mourão, Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte : Ed. UFMG, 2001.
DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo : Perspectiva, 2011.
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor ? In :Estética : Literatura e Pintura, Música e Cinema. Trad. Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
MAUPASSANT, Guy de. Gustave Flaubert. Trad. Betty Joyce. Campinas, SP: Editora Pontes, 1990, p. 72
SAMOYAULT, Tiphaine. A intertextualidade. Trad. Sandra Nitrini. São Paulo :Aderaldo & Rothschild, 2008.
SANTOS, Fernanda Ferreira dos. Flaubert, Bouvard e Pécuchet : autor ou leitor? Congresso Internacional da associação de pesquisadores em crítica genética, X edição, 2012. http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/anais/apcg/edicao10/Fernanda.Santos.pdf acessado em 15/01/2016.
SANTOS, Fernanda Ferreira dos. Ler e escrever: Bouvard e Pécuchet e a multiplicação da escrita. 2013, 148f. Dissertação (mestrado)- Departamento de Letras Modernas. Faculdade de filosofia, Letras e ciências humanas da Universidade de São Paulo.
 
 
 
 
 
 
 
 
[1] Essas passagens foram retiradas do ensaio CAMPOS, Augusto de. O Flaubert que faz falta. In: A margem da margem. São Paulo: Companhia das Letras, 1978, p. 17 e 18.
[2] Carta mencionada no ensaio de  CAMPOS, Augusto de. O Flaubert que faz falta. In: A margem da margem. São Paulo: Companhia das Letras, 1978, p. 17 e 18.