Vagner Leite Rangel
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Real Gabinete Português de Leitura
Resumo: Este artigo objetiva apresentar a notação crítica da sensualidade nesta obra de Machado de Assis e explorar a sugestão de erotismo e sensualidade em Ressurreição (1872), o primeiro romance do autor. Para tanto, priorizará o terceiro capítulo desta obra, intitulado “Ao som da valsa”, visando a observar que a recepção coeva ao livro, feita sob a forma de censura à obra, é prova da presença do erotismo nas páginas do romance. Nossa hipótese é de que a sugestão de sensualidade em Ressurreição, como presente num ensaio publicado na imprensa em 1872-1873 censurando de modo explícito tais páginas, evidencia uma das lições de Antonio Candido em Formação da literatura brasileira a respeito da mundivisão do Romantismo brasileiro: a união entre literatura e moral.
Palavras-chave: Século XIX – Machado de Assis – romance – erotismo.
Abstract: This paper aims to present the existing criticism of sensuality and eroticism in relation to Ressurreição (1872), the first novel published by Machado de Assis. It presents the idea that the novel contains a suggestion of eroticism and sensuality. To prove it, this paper priorizes the third chapter of Ressurreição, titled “Ao som da valsa”. As a conclusion, it is discussed the relation between a book review published in the press in 1872-1873 criticizing eroticism in Ressurreição and Antonio Candido’s statement in Formação da literatura brasileira about the Weltanschauung of Brazilian Romanticism: to unite literature and moralism.
Keywords: 19th century – Machado de Assis – novel – eroticism.
Minicurrículo: Vagner Leite Rangel é Mestrando da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Pesquisador Júnior do Real Gabinete Português de Leitura (RGPL), sob os auspícios da Fundação Calouste Gulbenkian. Publicou alguns artigos sobre Machado de Assis (ver bibliografia).
A imprensa como tribunal
e a literatura como moral:
Ressurreição e a figuração feminina
Vagner Leite Rangel
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Real Gabinete Português de Leitura
INTRODUÇÃO
Não se costuma associar o erotismo à literatura de Machado de Assis. Costuma-se, ao contrário, tomá-la como exemplo de comedimento e submissão às formas canônicas. E há razões para tal costume, tanto na prosa de ficção quanto na poesia, há inúmeros exemplos de referências à moral e aos bons costumes. Por conseguinte, O Dicionário de Machado de Assis, de Castelar Carvalho, na seção temática, nos explica no verbete “Erotismo” que “Essa presença do erotismo na literatura já se faz sentir nas narrativas românticas de José de Alencar, mas em um autor recatado como Machado de Assis pode causar estranheza ao leitor” (CARVALHO, 2010, p. 261). E nós concordamos, porque, embora o autor de Dom Casmurro seja reconhecido por diversas facetas, – tanto em termos de gêneros praticados quanto em termos de temas explorados – nenhuma delas é erótica. Ao mesmo tempo, caberia investigar a razão de ser de tal ausência – não é outro o nosso objetivo. Do contrário, não entenderemos por que erotismo e Machado de Assis são antinomias. Quer dizer: a faceta erótica de Machado de Assis não tem sido explorada, o que explica o sentimento de estranheza. Contribuir para diminuir este sentimento é um dos objetivos deste artigo.
Retornando ao verbete do Dicionário de Machado de Assis e à explicação de Carvalho (2010, p. 261), lemos: “Mas não nos esqueçamos de que Machado era mais propriamente dissimulado do que recatado e, desde os primeiros romances e contos, percebe-se forte presença do erotismo em sua obra de ficção.” Com efeito, e a dissimulação em Machado de Assis tem estado presente nas análises de seus intérpretes, mas, como dito, a dissimulação tem sido explorada em termos de despiste – a personagem Capitu ilustra tal exploração hermenêutica. Portanto, o exemplo mais ilustrativo talvez seja Dom Casmurro. O que reforça o exposto: dissimulação e sensualidade não têm sido amplamente exploradas na ficção machadiana. Entre as faces deste autor de mil e umas facetas, a erótica permanece, em comparação com as outras, à margem. Por esta razão, a informação a respeito do erotismo na literatura de Machado de Assis termina por causar estranheza e parece ser um contrassenso, sobretudo porque a palavra erotismo remete à sensualidade e ao corpo – palavras incomuns na fortuna crítica a respeito da obra de Machado de Assis.
MACHADO DE ASSIS, UM GRANDE SENSUAL?
Em relação aos intérpretes de Machado de Assis, Lúcia Miguel Pereira “foi quem, pela primeira vez, chamou a atenção para os aspectos sensuais presentes na ficção machadiana” (CARVALHO, 2010, p. 261-2). O autor do Dicionário de Machado de Assis está se referindo ao clássico Machado de Assis: estudo crítico e biográfico, publicado pela primeira vez em 1936, de L.M. Pereira. O subtítulo demonstra a metodologia empregada pela intérprete: a crítica biográfica. Nele, encontramos a seguinte explicação: “É verdade que, com o seu ar sonso e frio, Machado de Assis foi, no fundo, um grande sensual” (PEREIRA, 1988, p. 239).
É difícil concordar com a assertiva crítica, pois não podemos saber se ele foi ou não foi um grande sensual ou sonso. A dificuldade provém da leitura das obras: pode-se optar tanto pela negativa quanto pela afirmativa: há quem ateste a fidelidade de Capitu, apesar de algum atributo da personagem, e há quem ateste o contrário. É uma questão de ponto de vista. E, como ficou dito, o da autora é biográfico – o que parece levá-la à conclusão de que o autor era no fundo um sonso e grande sensual. Observando a sugestão do aspecto sensual na literatura de Machado de Assis, importa destacar, para além da referida dificuldade, o feito crítico da autora: chamar a nossa atenção para a faceta que objetivamos explorar: “as passagens em que se destacam as descrições (ou insinuações) de partes do corpo feminino, como lábios, língua, olhos, seios, cabelos, braços, olhares, meneios de corpo, descrições sempre impregnadas de sutis intenções eróticas” (CARVALHO, 2010, p. 262, citando L. M. Pereira).
Para tanto, exploraremos a sugestão de erotismo em Ressurreição (1872), que é o primeiro romance do autor, sendo o último Memorial de Aires (1904). Do primeiro ao último romance, são vinte e dois anos de distância. Margem de tempo que deve ser levada em consideração, quando se quer empreender a análise do tema da sensualidade, uma vez que Ressurreição foi a obra publicada no período mais próximo da juventude do autor (1872), quando o Romantismo brasileiro perdera a força mas não a influência sobre o sistema literário nacional. A prova desta influência encontra-se na recepção crítica de Ressurreição, que apontou a ausência de cor local deste romance como defeito, sendo esta uma marca do Romantismo pós-alencariano, evidencia-se a vigência do Romantismo.[1] Para nossa análise do romance, priorizaremos o terceiro capítulo, intitulado “Ao som da valsa”, buscando situar a sugestão de sensualidade e erotismo nessa obra do autor.
CAPÍTULO III – AO SOM DA VALSA
Os dois capítulos que precedem “Ao som da valsa” intitulam-se: “Capítulo I – No dia do ano bom” e “Capítulo II – Liquidação do ano velho”. Resumidamente, o leitor é apresentado, no primeiro capítulo, ao herói do romance:
Félix entrava então nos seus trinta e seis anos, idade em que muitos já são pais de família, e alguns homens de Estado. Aquele era apenas um rapaz vadio e desambicioso. A sua vida tinha sido uma singular mistura de elegia e melodrama; passara os primeiros anos da mocidade a suspirar por coisas fugitivas, e na ocasião em que parecia esquecido de Deus e dos homens, caiu-lhe nas mãos uma inesperada herança, que o levantou da pobreza. Só a Providência possui o segredo de não aborrecer com esses lances tão estafados no teatro.
Félix conhecera o trabalho no tempo em que precisava dele para viver; mas desde que alcançou os meios de não pensar no dia seguinte, entregou-se corpo e alma à serenidade do repouso. Mas entenda-se que não era esse repouso aquela existência apática e vegetativa dos ânimos indolentes; era, se assim me posso exprimir, um repouso ativo, composto de toda a espécie de ocupações elegantes e intelectuais que um homem na posição dele podia ter (ASSIS, 1962, I, p. 115).
Abastado e avesso à ideia de união estável, Félix tem os predicados do galanteador. Mal comparando, é um dândi da capital do Rio de Janeiro da metade do século XIX que se opõe ao padrão de relacionamento burguês: primeiros encontros, namoro, noivado e casamento – são costumes que aborrecem Félix, que se considera um bon vivant. Na contramão da tradição, Félix, no segundo capítulo, põe fim ao seu relacionamento com Cecília, jovem apaixonada por ele – e por outros, é verdade, pois representa o exemplo de mulher a não ser seguido pela leitora. O leitor tem acesso, portanto, ao perfil do personagem no segundo capítulo:
– Eu te digo, respondeu Félix; os meus amores são todos semestrais; duram mais que as rosas, duram duas estações. Para meu coração um ano é uma eternidade. Não há ternura que vá além de seis meses; ao cabo desse tempo, o amor prepara as malas e deixa o coração como um viajante deixa o hotel; entra depois o aborrecimento – mau hóspede (ASSIS, 1962, I, p. 121-2).
Terminara o relacionamento com Cecília porque o amor só lhe apraz como um capítulo curto. No ano novo, Félix está solteiro – e o leitor, com base nos dois primeiros capítulos do romance, pode deduzir que o próximo relacionamento do herói não será diferente. No terceiro capítulo, participando de uma festa na casa do Coronel Morais – casa de família, diga-se de passagem – Félix encontra Lívia. Acresce que o leitor entenderá que a casa de família representa os valores da tradição. Nela, símbolo da moral, os valores são seguidos à risca. E a filha do coronel, a virgem Raquel, é exemplo de moralidade. É como se Raquel fosse o antídoto contra a possível influência negativa de Cecília. Conforme a configuração dos capítulos antecedentes e o terceiro, o nosso dândi oitocentista está na presença de personagens representativas de uma tradição bem específica e delimitada nas páginas iniciais de Ressurreição: a moral e os bons costumes do Brasil da época. O conflito entre as personagens acontecerá posteriormente. O leitor, porém, já tem acesso ao princípio desta desarmonia entre a mundivisão das personagens:
Lívia representava ter vinte e quatro anos. Era extremamente formosa; mas o que lhe realçava a beleza era um sentimento de modesta consciência que ela tinha de suas graças, uma coisa semelhante à tranquilidade da força. Nenhum gesto seu revelava o amor-próprio geralmente inseparável das mulheres bonitas. Sabia que era formosa, mas tinha para si que, se a natureza se havia esmerado com ela, era por uma razão de harmonia e de ordem nas coisas terrestres. Afear as suas graças, parecia-lhe um crime; tirar orgulho delas, frivolidade (ASSIS, I, 1962, p. 128).
Note-se que ela, mesmo tendo uma beleza estonteante, não é vaidosa. Tem consciência de sua singularidade física, porém, age de modo diametralmente oposto aos modos de Félix, cuja beleza o narrador põe em xeque: “Não direi que fosse bonito, na significação mais ampla da palavra; mas tinha as feições corretas, a presença simpática, e reunia à graça natural a apurada elegância com que vestia” (ASSIS, I, 1962, p. 115). O contraste de caracteres está desenhado. O dândi, então, encontra a despojada jovem alucinante de vinte e quatro anos:
Félix examinou-lhe detidamente a cabeça e o rosto, modelo de graça antiga. A tez, levemente amorenada, tinha aquele macio que os olhos percebem antes do contato das mãos. Na testa lisa e larga, parecia que nunca se formara a ruga da reflexão; não obstante, quem examinasse naquele momento o rosto da moça veria que ela não era estranha às lutas interiores do pensamento: os olhos, que eram vivos, tinham instantes de languidez; naquela ocasião não eram vivos nem lânguidos; estavam parados.
Sentia-se que ela olhava com o espírito (ASSIS, I,1962,p. 128).
A passagem destaca a beleza de Lívia, “modelo de graça antiga”, aos olhos do moderno Félix, cujo olhar observa o rosto, os olhos, mas a voracidade do olhar não o deixa perceber as “lutas interiores do pensamento” (ASSIS, I, 1962, p. 128), pois é o narrador que frisa tal detalhe: “quem examinasse naquele momento o rosto da moça veria que ela não era estranha às lutas interiores do pensamento” (ASSIS, I, 1962, p. 128). Não sabemos o motivo do pensamento, mas sabemos que ela está absorta. Enquanto Lívia olha “com o espírito”, o parágrafo seguinte especifica o tipo de olhar empregado por Félix:
Félix contemplou-lhe longo tempo aquele rosto pensativo e grave, e involuntariamente foram-lhe os olhos descendo ao resto da figura. O corpinho apertado desenhava naturalmente os contornos delicados e graciosos do busto. Via-se ondular ligeiramente o seio túrgido, comprimido pelo cetim; o braço esquerdo, atirado molemente no regaço, destacava-se pela alvura sobre a cor sombria do vestido, como um fragmento de estátua sobre o musgo de uma ruína. Félix recompôs na imaginação a estátua toda, e estremeceu. Lívia acordou da espécie de letargo em que estava. Como também estremecesse, caiu-lhe o leque da mão. Félix apressou-se a apanhar-lho.
– Obrigado, murmurou ela distraída (ASSIS, 1962, I, p. 128).
O olhar de Félix mirou o rosto de Lívia, os olhos, o corpo e as curvas acentuadas pela vestimenta, o busto volumoso e os braços descobertos em contraste com o vestido escuro – todo o corpo da jovem, mas não percebe a referida luta no semblante de Lívia por uma razão: a volúpia. Toda a descrição assinala o erotismo do olhar de Félix, cujo corpo de Lívia, objeto deste olhar, é, de fato, descrito como voluptuoso. O contraste entre a pele de Lívia e a cor do vestido sugere a imagem de “um fragmento de estátua sobre o musgo de uma ruína” (ASSIS, 1962, I, p. 128) a Félix, que, imaginando a estátua em toda a sua corporeidade material, sente ainda mais a volúpia do corpo feminino – sobretudo pela sugestão da nudez do corpo. A sensualidade de Lívia não só desperta o olhar dele como também o seu desejo. A beleza, embora não seja supervalorizada por ela, acaba sendo aos olhos de outrem, neste caso Félix – posteriormente por Luís Batista e Moreirinha.
Retornando à descrição anterior, após a imaginação de Félix completar a imagem fragmentada pela vestimenta de Lívia, o corpo do herói responde à imagem recomposta na imaginação: o estremecimento do herói evidencia a volúpia ensejada pelo erotismo da cena, que se completa quando Lívia parece responder da mesma forma: “Como também estremecesse, caiu-lhe o leque da mão” (ASSIS, 1962, I, p. 128). Se antes não sabíamos em que ela estava pensando, temos agora uma sugestão. A sugestão do erotismo do olhar, que influencia a imaginação, criando a imagem erótica da personagem por completo em sua mente tal como uma estátua, e a resposta física com o estremecimento dos dois personagens parece ratificar a referida sugestão. Como se nota, a sensualidade é bem sutil. Ou, para usar a palavra corrente na fortuna crítica, dissimulada. Mas o verbo-chave deste mistério é estremecer: o corpo responde quando os costumes prescrevem o silêncio. Lívia, que parecia alheia ao olhar de Félix, responde, em alguma medida, ao olhar libidinal do herói.
Da sugestão narrativa da resposta física de Lívia ao olhar libidinal de Félix, o parágrafo seguinte parece não deixar dúvida de uma resposta positiva de Lívia, porque nele observaremos que ela se recompõe. Ora, se ela parecia ter estremecido, a recomposição afirma a alteração, isto é, resposta física ao olhar ambicioso de Félix. Em outras palavras, o desejo de Félix foi correspondido por Lívia. Em termos simples, o erotismo dos corpos veio à tona e a vergonha expressa por Lívia, no parágrafo seguinte, pode ser o significante do referido significado:
Depois, parecendo envergonhada daquele longo silêncio, pretextou um incômodo nervoso; levantaram-se e dirigiram-se ao salão. Ali, no meio da conversa e do bulício, readquiriu ela o império de si mesma, e conversaram largamente com volubilidade e galanteria. A viúva era um pouco sarcástica, mas daquele sarcasmo benévolo e anódino, que sabe misturar espinhos com rosas. Pela primeira vez Félix a conhecia, porquanto apenas a tinha visto duas vezes, e não basta ver uma mulher para a conhecer, é preciso ouvi-la também; ainda que muitas vezes basta ouvi-la para a não conhecer jamais (ASSIS, 1962, I, p. 128).
Ao recuperar o império de si Lívia recompõe-se, isto é, comporta-se de acordo com a expectativa moral, o que reforça a resposta corporal – a sugestão de erotismo dos corpos. E vale recordar que ela está no lar dos Morais. Ou seja, a presença de personagens principais e partícipes de uma cena erótica na casa de família.
Como vimos, o erotismo em Ressurreição não ultrapassa os limites da sugestão. A prerrogativa libidinal parece ser masculina, visto que o narrador faz torneios linguísticos para representar ficcionalmente o desejo feminino. Sugere-se o desejo em lugar de afirmá-lo. Por isso, o verbo estremecer torna-se a chave de afirmação da sugestão. Considerando a forma empregada para representar o desejo masculino, pode-se inferir que até mesmo esta representação está eivada de certa visão negativa da libido. Ou seja, se o desejo masculino é mal visto, na metade do século XIX, podemos imaginar a situação do feminino. Esta, no que tange a libido, parece interdito pela moral em voga, tanto do ponto de vista da ficção, porque, como dito, o autor emprega formas que informam de modo dissimulado – “Como também estremecesse, caiu-lhe o leque da mão” (ASSIS, 1962, I, p. 128) e “parecendo envergonhada daquele longo silêncio” (ASSIS, 1962, I, p. 128). Negação dupla: a moral parece não legitimar este tipo de representação ficcional, e o modelo de representação literária parece corresponder à expectativa do status quo, pois, o autor, consoante com os dois primeiros elementos da equação, utiliza-se de formas que dizem de modo oblíquo. O resultado é claro: a personagem, ao responder ao desejo corporal e ao desejo de outrem, sente-se envergonhada, sendo então necessário o ato seguinte: “readquiriu ela o império de si mesma, e conversaram largamente com volubilidade e galanteria” (ASSIS, 1962, I, p. 128) – o emprego do prefixo “re” (readquiriu) com o verbo adquirir no passado afirma, às avessas, o que o corpo sentira mas o que os bons modos oitocentistas, o comportamento oficial feminino, negavam. O desejo é seguido de reparação.
MORAL, IMPRENSA E CENSURA
Das nove resenhas jornalísticas dedicadas ao livro publicado em 1872, apenas um dos leitores coevos do primeiro romance de Machado de Assis, José Carlos Rodrigues, notou que o que chamamos de sugestão de erotismo e desejo corporal interdito – pelo menos para a figura feminina – estava bem claro à época e, por esta razão, deveria ser combatido.
O artigo crítico de Rodrigues foi publicado originalmente em O Novo Mundo, em 23 de dezembro de 1872, em Nova Iorque. Rodrigues, crítico e proprietário do jornal, registrou que “O final da página [de Ressurreição] é imperdoável; a estátua do final da página […] bem podia ser omitida” (RODRIGUES, 2003, p. 91). O censor não explica os motivos pelos quais censura a referida sugestão de erotismo no romance. Considerando a Formação da literatura brasileira, no entanto, encontramos algumas explicações dignas de consideração para o nosso estudo: em primeiro lugar, “todo o período romântico foi de consciência aguda de fundação da nossa literatura; logo, de justificação da sua existência, proclamação da sua originalidade, etc.” (CANDIDO, 1993, p. 304, ênfase no original). Ressurreição é posterior ao auge da moda romântica – note-se que é posterior ao auge e não posterior ao fim da moda romântica. Portanto, o horizonte de expectativa da literatura feita à época estava sob a influência da razão de ser do Romantismo. Opor-se ao propósito romântico, é opor-se à justificativa romântica. Logo, a crítica romântica tem a prerrogativa de exigir que o aspirante à posição de escritor legítimo da literatura brasileira corresponda ao padrão estabelecido. Notamos o caráter deste padrão legitimador do autor de literatura brasileira em outra lição considerável da Formação, que também serve como explicação da justificativa romântica: “Acresce ainda, no Brasil, a circunstância de o Romantismo não ter aparecido como ruptura, mas, de um lado, como continuação; de outro, como início de um período auspicioso, logo incorporado à ideologia oficial, nas formas moderadas e transicionais com que surgiu” (CANDIDO, 1993, p. 306). Como se vê, o resenhista é mais do que um crítico proferindo um determinado juízo sobre o romance. É um censor da moral, e a imprensa é uma espécie de tribunal do Romantismo nacional.
Pode-se argumentar que só a posição de Rodrigues não seria o suficiente para propor a analogia entre imprensa e tribunal romântico, até mesmo por que ele não era crítico literário, mas sim dono e editor de O Novo Mundo. Na época, o posto de editor e a pena de jornalista eram condições suficientes para que um articulista tivesse voz no sistema literário oitocentista, pois a crítica ainda não era profissional, mas sobretudo impressionista. Críticos como Quintino Bocaiúva, José de Alencar, e o próprio Machado de Assis, reclamaram deste amadorismo, e exigiram uma crítica imparcial. “O ideal do crítico” (1865), de Machado, é testemunho histórico desta reclamação. Segundo João Roberto Faria (1989; 2004), este não seria mais do que a expressão da ideia de um Quintino Bocaiúva, que, em 1857, publicara Estudos críticos e literários: lance d’olhos sobre a comédia e a sua crítica. De 1857 a 1865, autores e críticos posicionarem-se contra o impressionismo crítico, o que prova a presença e – o pior – a aceitação do amadorismo. É por esta razão que a simples publicação de opiniões impressionistas, por mais que fossem destituídas de fundamentos teóricos, como alega Machado naquele texto, era o suficiente para a glória ou derrocada de um autor. Ser editor e/ou chefe de um jornal era, em alguma medida, a obtenção de passaporte para participar ativamente do sistema literário nacional. Lembramos aqui que a inserção do jovem Alencar se deu a partir das cartas que escreveu contra A Confederação dos Tamoios – obra que tinha o apoio de D. Pedro II –, quando Alencar não passava de um aprendiz de escritor. Independentemente da condição alencariana à época, o fato é que a oposição à obra de Magalhães lhe conferiu nomeada, que lhe ajudou a divulgar O Guarani (1857). Daí a analogia entre imprensa e tribunal. No caso brasileiro, em relação à Ressurreição, pesa ainda outra circunstância: o Romantismo brasileiro era um movimento em favor da moral e dos bons costumes e, como tal, não tolerava obras com sugestões eróticas. Logo, a oposição de um resenhista, por mais que este não fosse um crítico na acepção da palavra, não parece ser algo que se pudesse ignorar. Por fim, outro dado extraliterário parece comprovar a possível influência de José Carlos Rodrigues, no sistema literário nacional, é a futura atuação dele como diretor do Jornal do Comércio – “Jornalista e advogado, emigrou para os Estados Unidos em 1867, após uma tentativa de fraude contra o Estado. Em Nova Iorque, fundou e dirigiu O Novo Mundo, revista que durou de 1872 a 1879. De volta ao Brasil, tornou-se um homem influente e de prestígio, dirigindo o Jornal do Comércio durante 25 anos” (MACHADO, 2003, p. 89).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As páginas precedentes parecem subsidiar a seguinte conclusão: da resenha de Ressurreição à censura do erotismo nas páginas do romance, Rodrigues parece estar autorizado a desempenhar o papel de crítico e censor da literatura brasileira, visto que, com base na relação de continuidade entre Romantismo e tradição brasileira oitocentista (CANDIDO, 1993) – que não foi um movimento cultural de oposição mas sim de afirmação do status quo cristão – a presença do erotismo nas páginas de Ressurreição é duplamente contrária ao padrão estabelecido: afeta a justificativa do Romantismo brasileiro e opõe-se ao decoro exigido pelo crítico. Talvez por isso o crítico sinta-se à vontade para afirmar que o final do capítulo é imperdoável e deve ser omitido numa próxima edição. É por esta razão que se afirmou que a imprensa oitocentista, tomando como exemplo a configuração do sistema literário brasileiro e a resenha de Rodrigues no Novo Mundo, funcionou, para Ressurreição, como tribunal do Romantismo brasileiro, visto que o resenhista sugere a retificação do terceiro capítulo do livro. Pelo avesso, o veto do tribunal à presença da sugestão de erotismo nas páginas de Ressurreição admite tal presença, pois, para negá-la, foi preciso admitir a presença, ainda que sugestiva.
Chegamos, assim, perto de outra conclusão: considerando os romances posteriores da primeira fase, não estaria aí uma possível explicação para a ausência do erotismo, ou a sua presença dissimulada? Um crítico machadiano aponta, Ivan Teixeira (1987), – e outros concordam –, no que tange à primeira fase, que os romances posteriores – A mão e a luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878) –, se comparados com a experimentação feita em Ressurreição, são mais convencionais, uma vez que se encaixam nos moldes do romance ortodoxo, o romance brasileiro pós-alencariano, e nós perguntamos: não teríamos aqui alguns indícios desse retorno ao modelo de romance vigente? Afinal, é verdade, de A mão e a luva até Iaiá Garcia, dos personagens, que se mesclam através do encontro entre classes sociais distintas, até a afirmação da moral, que se acentua de modo espantoso, a partir de A mão e a luva, percebe-se que o autor opta pelo caminho batido pela tradição. Por isso, fica a pergunta, já que esta é outra história…
REFERÊNCIAS
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MACHADO, Ubiratan. Machado de Assis: roteiro da consagração (crítica em vida do autor). Rio de Janeiro: UERJ, 2003.
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TEIXEIRA, Ivan. Apresentação de Machado de Assis. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
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NOTA AO TEXTO
1Sobre a recepção de Ressurreição, recomenda-se a leitura de Machado de Assis: roteiro de consagração (crítica em vida do autor), de Ubiratan Machado (2003).
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