A escritura feminina: Lya Luft e o sujeito no espaço literário
Níncia Cecília Ribas Borges Teixeira
Introdução
A escritura feminina constitui o olhar diferenciado, o olhar das minorias. A temática da escritura feminina é resultante do “estar” no mundo, abordando o retrato das vivências da mulher no seu dia-a-dia. Segundo Luiza Lobo:
(…) o cânone da literatura de autoria feminina se modificará muito se a mulher retratar vivências resultantes não de reclusão ou repressão, mas sim a partir de uma vida de sua livre escolha, com uma temática, por exemplo, que se afaste das atividades tradicionalmente consideradas “domésticas” e “femininas” e ainda de outros estereótipos do “feminino” herdados pela história, voltando-se para outros assuntos habitualmente não associados à mulher até hoje.1
A literatura de autoria feminina precisa criar o seu espaço próprio dentro do amplo universo literário mundial. Desde fins do século XIX e principalmente no século XX, a principal transformação pela qual passou a literatura de autoria feminina é a conscientização da escritora quanto a sua liberdade e autonomia e a possibilidade de trabalhar e criar sua independência financeira. Ocorreu, assim, a mudança da condição “feminina” para a condição “feminista”.
Desde a década de 1970, a consciência do corpo e o questionamento da existência, com a maciça entrada das escritoras na Universidade, pelo menos desde a década de 1950, tornaram suas vozes mais intensas. As escritoras passaram, então, a expressar suas realidades. Até muito recentemente, a crítica feminista não possuía uma base teórica. Assim, a crítica feminista era um ato de resistência, uma confrontação com os cânones e julgamentos existentes. Enquanto a crítica científica lutou para se purificar do subjetivo , a crítica feminista reafirmou a autoridade da experiência.
Existem duas formas de crítica feminista, e misturá-las é permanecer num território confuso. A primeira forma é ideológica, diz respeito à feminista como leitura e oferece leitura feministas de textos que levam em considerações as imagens e estereótipos das mulheres na literatura, as omissões e falsos juízos sobre as mulheres na crítica. A leitura feminista pode ultrapassar estas considerações; pode ser uma ação intelectual que busca a libertação, como propõe Adrienne Rich:2
Uma crítica radical da literatura feminista mostraria como vivemos, como temos vivido, como fomos levados a nos imaginar, como nossa linguagem nos tem aprisionado, bem como liberado, como o ato de nomear tem sido uma prerrogativa masculina, e de como podemos começar a ver e nomear, e, portanto, viver de novo.
Buscando a escritura feminina
A leitura feminista ou crítica feminista é, em essência, uma forma de interpretação, uma das muitas que qualquer texto complexo irá acomodar e permitir. Mas, a crítica feminista só pode competir com leituras alternativas. Kolodny3, teórica da interpretação feminina afirma:
Tudo que a feminista está defendendo, então, é seu próprio direito de libertar novos (e, talvez, diferentes) significados destes mesmos textos; e, ao mesmo tempo, seu direito de escolher quais os aspectos de um texto que ela considera relevantes, pois ela está, afinal de contas, colocando ao texto novas e diferentes questões. Durante o processo, ela não reivindica que suas leituras e sistemas de leitura diferentes sejam considerados definitivos ou completos estruturalmente, mas somente que sejam úteis para o reconhecimento das realizações específicas das mulheres como autoras, e que sejam aplicáveis na decodificação consciente da mulher como signo.
Toda crítica é revisionista, questiona as estruturas aceitas. A crítica feminista revisionista retifica uma injustiça e está construída sobre modelos já existentes. Contrapondo-se à teoria crítica masculina, ela tem como objetivo suplementar, revisar, humanizar conceitos baseados na experiência masculina e apresentados como universais.
A segunda forma da crítica feminista é que se propõe analisar a mulher enquanto escritora e sus tópicos são a história, os estilos, os temas, os gêneros e as estruturas dos escritos de mulheres, a criatividade feminina. Como não existe um termo para este discurso crítico especializado Elaine Showalter o define como ginocrítica. A ginocrítica não pretende mais reconciliar pluralismos revisionistas, as o que faz a diferença nos escritos das mulheres.
O conceito da écriture féminine, estabelece a diferença feminina na língua e no texto, possibilitando uma maneira de se discutir os escritos femininos que reafirmam o valor do feminino e identificam o projeto teórico da crítica feminista como a análise da diferença. Tecnicamente, não se poderia falar em literatura “feminista” antes que o termo fosse cunhado, na década de 1960.
Para Luiza Lobo :
O termo “feminino” vem sendo associado a um ponto de vista e uma temática retrógrados, o termo “feminista”, de cunho político mais amplo, em geral é visto de forma reducionista, só no plano das ciências sociais. Entretanto, deveria ser aplicado a uma perspectiva de mudança no campo da literatura. A acepção de literatura “feminista” vem carregada de conotações políticas e sociológicas, sendo em geral associada à luta pelo trabalho, pelo direito de agremiação, às conquistas de uma legislação igualitária ao homem no que diz respeito a direitos, deveres, trabalho, casamento, filhos etc. (1999:4)
Considerando que o texto literário feminista é o que apresenta um sujeito consciente de seu papel social, sempre houve autoras “feministas” dentro do contexto de suas épocas, tornando-se o termo impróprio apenas por uma questão cronológica. Como exemplo, Safo, Sóror Juana Inés de la Cruz, possuidoras de uma consciência política ou esclarecida de sua existência em face da história excepcionais para seu tempo, e poderiam ser eventualmente identificadas com o “feminismo”.
A alteridade, ou seja, a énfase na diferença, da literatura de autoria feminina tornou-se a base da abordagem feminista na literatura. Ser o outro, o excluído, o estranho, é próprio da mulher que quer penetrar no “sério” mundo acadêmico ou literário. Não se pode ignorar que, por vários motivos sócio-político-culturais, a mulher foi excluída do mundo da escrita – só podendo introduzir seu nome na história através das fendas que conseguiu, arduamente, abrir.
Na literatura brasileira, até o presente momento, considera-se o romance Úrsula (1859)4 de Maria Firmina dos Reis, escritora maranhense, a primeira narrativa de autoria feminina. O romance reduplica os valores patriarcais, construindo um universo onde a donzela frágil e desvalida é disputada pelo bom mocinho e pelo vilão da história. Contrariando os finais felizes, a narrativa termina com a morte da protagonista, vítima da sanha do cruel perseguidor.
Mais recentemente, a preocupação em ser sujeito da própria escrita, deixando de ser só uma representação literária na ficção masculina, tem como principais expoentes (entre outras): Clarice Lispector, Sônia Coutinho, Maria Adelaide Amaral, Lya Luft (objeto principal deste ensaio).
Lya Luft : Caos e Reconstrução
Lya Luft é gaúcha de Santa Cruz, iniciou sua carreira há mais de vinte anos como tradutora de literaturas em alemão e inglês, que continua até hoje, traduzindo para o português Virginia Wolf, Doris Lessing, Günter Grass e Botho Strauss. Aos 40 anos, após publicar dois livros de poesia e um de crônicas, lançou-se como romancista com As parceiras, seguindo com A asa esquerda do anjo, Reunião de família, O quarto fechado, Exílio e A Sentinela, As Parceiras. Compõem ainda sua obra dois livros de poesia, Mulher no palco e O lado fatal, e o premiado O rio do meio, considerado a melhor obra de ficção de 1996.
Lya Luft desvenda através de seus escritos o submundo em que vive a mulher. Sua literatura extremamente intimista percorre o caminho desenhado por Clarice Lispector, mas com uma nota absolutamente pessoal. A questão feminina é tratada sob o ponto de vista feminino, configurando, dessa forma, a écriture féminine .
Zila Bernd, referindo-se a Luft afirma que: “Sua escrita é uma volta ao interior da casa, ao interior do desejo, encenando o mito do eterno retorno que é uma das principais marcas da escritura feminina”.
Os romances A asa esquerda do anjo, Reunião de família, O quarto fechado e As Parceiras abordam, principalmente, a luta contínua entre o princípio da vida e da morte, entre Eros e Tanatos. A criação das personagens esta ligada à sua visão de mundo, não aceita mais a perpetuação do poder masculino, embora aponte para a decadência do patriarcado. A contestação aos valores patriarcais se revela, em Lya Luft, de forma cortante, mostrando o drama da mulher, educada dentro de rígidos padrões moralistas. As protagonistas continuam presas à família, presas às regras do jogo social. A situação social da personagem tem importância à medida que representa condicionamentos impostos por práticas sociais.
As personagens femininas são flagradas num determinado momento de sua trajetória: o momento em que o mundo, carecendo de sentido, se esvazia sob a ótica feminina. Lya Luft constrói em suas obras um mundo decadente que se desagrega e se desmancha, compondo um universo feminino marcado pela loucura, pela doença e pela morte; o jogo e o grotesco, o trágico e o grotesco se articulam para desvelar as regras, desvendando os absurdos de uma sociedade repressora e injusta, em que a mulher é o “lado esquerdo”, que fica sempre à margem da sociedade.
Na obra romanesca de Luft a narrativa é sempre feita por uma mulher que relata sua problemática, partindo de um universo fragmentado, procurando sua verdadeira identidade. Em As Parceiras é Anelise, adulta, que busca explicação para os destinos das mulheres da família; em A asa esquerda do anjo é Guísela/ Gisela, também adulta que refaz sua trajetória em busca de sua identidade; em Reunião de família é Alice, que rememora, na sua história familiar, a repressão; em O quarto fechado, há quase uma exceção, pois a narrativa é feita em 3ª pessoa, mas o discurso interior de Renata é forte e alterna-se com a voz narrativa.
O existencialismo percorre toda a escritura luftiana, as protagonistas, se analisadas do ponto de vista existencialista, representam a negação, o nada, pois não conseguem, do ponto de vista sartreano, realizar seus projetos – Sartre afirma que “o homem nada mais é do que aquilo que projeta ser” – Anelise, Guísela / Gisela, Alice, Renata são impedidas de se realizarem como seres humanos plenos, independentes, sujeitos ativos de seu destino. Algo se rompe dentro delas: Alice, em Reunião de família, torna-se escrava da rotina, mas encontra no espelho a outra Alice que simboliza a liberdade; Anelise, em As Parceiras, fixou-se na maternidade para vencer seus fantasmas, Gisela, em A asa esquerda do anjo, sofre por ser a imagem da exclusão e pelo autoritarismo da matriarca da família; Renata, em O quarto fechado, é a própria imagem da fragmentação (mãe-esposa-profissional), diante do filho morto, ela é o nada.
Na concepção de Sartre, o homem também é angústia, e as personagens de Lya são a própria imagem da angústia, angústia na solidão ou na ausência dela, angústia de viver e morrer. A casa, a solidão, o moralismo, todos este impulsos configuram a morte do desejo e o auto-exílio.
Ela constrói com ambigüidade suas personagens, aponta para realidades diversas, inserindo o ser humano numa eterna contradição. O mundo psíquico das mulheres de Luft está continuamente envolto, nas levas apaixonadas e sem fronteiras de um ambíguo sentimento simultâneo de amor e ódio, cujos limites não são possíveis de traçar e, exatamente por esta razão, retém a personagem num universo melancólico . Para a pesquisadora Lucia Helena:
A ficção de Lya Luft dedica-se a narrar a tematização da passagem de uma sociedade regida pelos laços ainda telúricos da experiência e da tradição torna-se pouco a pouco um outra, um mundo movido pelo choque, pela fragmentação, pelo spleen corrosivo e melancólico. Esta transformação é vivida melancolicamente pelo imaginário soturno da personagem, que se debate nas fímbrias da morte do desejo compulsivamente barrado (1991:86).
A linguagem simbólica torna sua narrativa universal e perpassa toda a obra, e a morte, encarada sob o prisma mitológico, torna-se uma alegoria. Lya Luft recorre a símbolos recorrentes (árvores, noite, verme, anão) que possuem em sua carga semântica uma duplicidade de sentidos, configurando, sempre, a eterna contradição humana, a luta eterna entre Eros e Tanatos.
Há, também, em seus escritos, a presença da circularidade, pois fica evidenciado que suas personagens sempre retornam ao ponto de partida, a narradora é flagrada num momento de caos interior e tenta recuperar o elo entre o eu e o mundo. Essa voz feminina revela-se e encontra coragem para enfrentar o passado, porém sempre retorna ao presente. Além disso, sua obra está construída sobre uma circularidade de elementos que dão suporte a sua narrativa, que se configura, também, por meio da recorrência de temas.
As personagens da obra de Lya Luft carregam uma culpa imemorial, a culpa de Pandora, a culpa de ser incapaz de reter o tempo perdido; a felicidade, se aconteceu é só uma lembrança, pois num mundo dominado pelo tempo, Eros será mera recordação do passado, Tanatos é sempre o vencedor. A morte não acontece apenas no plano físico, mas também configura-se através da incapacidade de amar. Se, por um lado, todas as personagens têm dificuldade para lidar com a morte (e todo ser humano tem), também demonstram incapacidade para lidar com a vida e com o amor.
Lya Luft é uma voz feminina que busca sua identidade literária num mundo em que a mulher, ainda, continua à margem esquerda da sociedade. Mas que luta para se fazer sujeito da História. Desta ficção se pode também dizer que abandona a narrativa centrada na vida pessoal de uma personagem quase que autobiográfica e se aprofunda no exame crítico dos múltiplos papéis da mulher na sociedade. A condição feminina, vivida e transfigurada esteticamente, é um elemento estruturante, não se trata de um simples tema literário, mas da substância de que se nutre a narrativa. A representação do mundo é feita a partir da ótica feminina, portanto, de uma perspectiva diferente (para não dizer marginal), com relação aos textos reconhecidos pelo cânone literário. A mulher, vivendo uma condição especial, representa o mundo de forma diferente.
O discurso da escritura feminina é conseqüência de um processo de conscientização, não que o discurso feminino se confunda com feminismo, mas traz como alicerce a consciência da situação social da mulher. Este discurso subverte a ordem vigente, questionando papéis sociais, representando a mulher dividida, numa linguagem que também subverte os padrões normais.
Este é o discurso feminino, uma necessidade de um tempo e de um espaço especiais. Dessa forma, não há como considerá-lo algo segregado do acervo literário. Ele representa uma tendência altamente significativa do ponto de vista estético e social, pois é uma representação artística da situação da mulher feita por mulheres.
Notas:
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1Citação retirada do ensaio de Luiza Lobo, “A Literatura Feminina na América Latina”, publicado na Revista Brasil de Literatura (on-line), 1999, reimp. De idem, ibidem, Registros do Seplic, Seminário Permanente de Literatura Comparada, Departamento de Ciência da Literatura, Faculdade de Letras da UFRJ, n. 4, 1997. 40 p.
2Adrienne Rich citada por Heloísa Buarque de Holanda in Tendências e Impasses- o feminismo como crítica da cultura (1994).
3Heloísa Buarque de Holanda cita Kolodny in idem (1994).
4Ver Luiza Lobo, “Auto-retrato de uma pioneira abolicionista”, in Crítica sem juízo, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1992, p. 222-38; “O negro de objeto a sujeito”, idem, p. 205-21; José Nascimento de Moraes Filho, ed. Maria Firmina dos Reis – fragmentos de uma vida. São Luís, Governo do Estado do Maranhão, 1975.
Referências Bibliográficas:
GOTLIB, Nádia Batella, org. A mulher na literatura. Belo Horizonte: Imprensa da UFMG,1990
HOLLANDA, Heloísa Buarque, org. Tendências e impasses – O feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
LOBO, Luiza. “A Literatura feminina na América Latina.” Revista Brasil de Literatura, on-line, 1999. Reimp. de idem, Registros do Seplic,
Seminário Permanente de Literatura Comparada, Departamento de Ciência da Literatura, Faculdade de Letras da UFRJ, n. 4, 1997. 40 p.
——. “Auto-retrato de uma pioneira abolicionista”, in Crítica sem juízo, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1992, p. 222-38; “O negro de objeto a sujeito”, idem, p. 205-21.
LUFT, Lya. A Asa Esquerda do Anjo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
—. Reunião de família. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
—. O quarto fechado. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
—. As Parceiras. Rio de Janeiro: s. ed., s. d.