A ESCRITA FEMININA LATINO-AMERICANA CONTEMPORÂNEA: EL PAÍS DE LAS MUJERES, DE GIOCONDA BELLI, E A FEMINIZAÇÃO POLÍTICA [1]
Amanda da Silva Oliveira
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)
Resumo: A partir da pesquisa desenvolvida para a dissertação de mestrado, a análise do texto El país de las mujeres, de Gioconda Belli, representa a construção social do poder feminino na sociedade nicaraguense, evidenciando justamente as características que estereotipam as mulheres como destacados elementos de crítica. Com base no pensamento de habitus, de Pierre Bourdieu, o objetivo do trabalho é a análise interpretativa da sociedade por meio da representação literária, e a significação do texto enquanto utopia social para bandeiras de mundos possíveis.
Palavras-chave: literatura latino-americana; Pierre Bourdieu; poder; gênero.
Resumen: A partir de la pesquisa desarrollada para la disertación de máster, el análisis del texto El país de las mujeres, de Gioconda Belli, representa la construcción social del poder femenino en la sociedad nicaragüense, evidenciando justamente las características que estereotipan las mujeres como destacados elementos de crítica. Con base en el pensamiento de habitus, de Pierre Bourdieu, el objetivo del trabajo es el análisis interpretativo de la sociedad por medio de la representación literaria, y la significación del texto como utopía social para banderas de mundos posibles.
Palabras clave: literatura latinoamericana; Pierre Bourdieu; poder; género.
Minicurrículo: Graduada em Letras Português/Espanhol pela Universidade Feevale, é mestra em Teoria da Literatura pela PUCRS e doutoranda em Teoria da Literatura pela PUCRS. Cursa também Ciências Sociais na UFRGS. Atualmente, realiza pesquisa sobre o espaço na literatura feminina latino-americana contemporânea, sob orientação da Profa. Dra. Maria Eunice Moreira.
A ESCRITA FEMININA LATINO-AMERICANA CONTEMPORÂNEA: EL PAÍS DE LAS MUJERES, DE GIOCONDA BELLI, E A FEMINIZAÇÃO POLÍTICA
Amanda da Silva Oliveira
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)
“Devemos tomar consciência de nosso poder, mas até agora na América Latina não o tomamos de forma como eu recebi minha feminilidade, que foi como um poder”.
(Gioconda Belli)
A voz relacionada ao gênero muitas vezes é definida sinonimamente como feminina, como se, de alguma forma, a necessidade de expressão do termo pudesse abarcar toda a atmosfera discriminatória da história. A possibilidade de considerar questões relativas ao social com certa naturalidade pode revelar a tendência cultural da relativização, sem, no entanto, encararmos o problema que por traz se esconde. Em um estudo sobre a “dominação
masculina”[2], Pierre Bourdieu afirma justamente essa ideia, ao expressar que a sociedade, através da dominação masculina, é levada a tornar como autêntico e inato os caracteres de diferenciação biológica dos seres masculino e feminino, de forma a evidenciar
certa valorização do primeiro em detrimento do segundo, e que a História dos grandes homens e dos grandes feitos corrobora para essas validades sociais.
Através de uma violência simbólica dos atos dos indivíduos, que reforçam os caracteres de força, hombridade e virilidade – todos adjetivos atribuídos aos homens –, somos levados a crer no predomínio masculino como organizador dos contextos sociais nos quais interagimos, e que a qualidade feminina deve ser não só evitada, como excluída:
A força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela dispensa justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se enunciar em discursos que visem à legitimá-la. A ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça: é a divisão social do trabalho, distribuição bastante estrita das atividades atribuídas a cada um dos dois sexos, de seu local, seu momento, seus instrumentos; é a estrutura do espaço, opondo o lugar de assembleia ou de mercado, reservados aos homens, e a casa, reservada às mulheres; ou, no interior desta, entre a parte masculina, com o salão, e a parte feminina, com o estábulo, a água e os vegetais; é a estrutura do tempo, a jornada, o ano agrário, ou o ciclo de vida, com momentos de ruptura, masculinos, e longos períodos de gestação, femininos (BOURDIEU, 2005, p. 18).
Na justificada opressão masculina de que ela é neutra e superior a qualquer outro discurso que a negue ou a ponha em cheque, a violência simbólica, portanto, inicia-se na naturalização das diferenças pela premissa biológica dos corpos, sendo, assim, a legitimação masculina
dominantemente aceita em processo saudável, válida e socialmente aceita. Pela lógica de sentido do habitus[3], a mulher, como inverso do homem, é vista como vazia – recebe a semente, a fertilização – e superficial – preocupação com a aparência
e com os detalhes –, sensível – dores, tensões, menstruação/menopausa, calores e dores de cabeça – e emotiva – choro, carinho, necessidade de afeto –, características sociais que a discriminam em relação à força de caráter, racionalismo e domínio, traços considerados tipicamente masculinos, tendo a relação sexual o maior exemplo da dominação pelo homem dos atos que regem a vida cotidiana, além de ser o canal central de todas as referências de domínio masculino/inferioridade feminina.
À medida que se estabelecem as relações sociais de dominação, através da construção naturalizada de suas ordens simbólicas de sentido, o habitus define-se no princípio dominante masculino e percebe-se o mundo através desse princípio. É nessa lógica que se organiza o conceito de violência simbólica: a dominação masculina, encontrando todas as condições para seu pleno exercício, possui primazia universal, afirmando-se na “objetividade de estruturas sociais e de atividades produtivas e reprodutivas, baseadas em uma divisão sexual do trabalho de produção e de reprodução biológica e social” (BOURDIEU, 2005, p. 45), o que conferiria aos homens a melhor parte. Para Bourdieu, o habitus, “moldados por tais condições, portanto objetivamente concordes, eles funcionam como matrizes das percepções, dos pensamentos e das ações de todos os membros da sociedade, como transcendentais históricos” (BOURDIEU, 2005, p. 45), que, “sendo universalmente partilhados, impõem-se a cada agente como transcendentes” (BOURDIEU, 2005, p. 45).
É no uso das categorias dominantes pelo dominado que este intensifica e naturaliza o poder social delas, fazendo com que a violência simbólica seja aplicável e aplicada. Esse tipo de violência se constitui pela “adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao dominante” (BOURDIEU, 2005, p. 47), quando o indivíduo não a pensa e a segue como classificação natural do ser no mundo. Dessa forma, o domínio é totalmente regido pelos padrões aceitos e regrados pela ótica capitalista (no sentido das elites) e masculina (no sentido da violência simbólica e o gênero) de dominantes sobre dominados, na estrutura social que encontramos nas sociedades tidas como modernas.
Lógicas de sentido se pautam em domínios para sua existência, e são essas relações que estabelecem os símbolos de poder, nos quais os governos se utilizam para organizar socialmente os espaços e os territórios. Através do sentimento de pertencimento, as relações se constituem segundo estratagemas sociais conscientemente pensados e difundidos de modo a serem aceitos inconscientemente e de forma natural em nosso meio. Há que se destacar que só a crítica a esses espaços simbólicos podem trazer à tona essas matizes de organização social, para passar a perceber as posições não mais como simplesmente naturalizadas, mas como poderosamente impostas.
A escrita feminina: o rompimento dos campos de poder masculinos.
Gioconda Belli desempenha, nesse sentido, duplamente, o papel de representação da mulher e de sua visibilidade em espaços de poder, tanto em suas personagens quanto na sua própria postura como ativista política. Afiliou-se ao movimento sandinista na década de 1970 (Frente Sandinista de Liberación Nacional – FSLN), opondo-se à ditadura de Anastasio Somoza. Ainda como organização clandestina, o FSLN tinha como principal objetivo a derrocada da ditadura somocista, e Belli foi, dentre as ações de correio clandestino, transportadora de armas e divulgadora da proposta sandinista, membro da comissão político-diplomática do partido. Após a Revolução Nicaraguense, de 1979, ocupou vários cargos políticos no governo sandinista, mas largou tudo em prol da literatura, em 1986. Mesmo assim, a luta política por uma Nicarágua mais justa não a abandonou; pelo contrário, apenas dirigiu-se para o viés do engajamento literário.
Belli diz que há muito por fazer pela sua Nicarágua, pois, se não o fazemos, deixamos nossa responsabilidade para as futuras gerações. Para ela, há que feminizar
a política[4], trazer o felicismo para a sociedade, e desfazer-se do governo arcaico e
masculino que sempre tivemos. Sua posição é muito próxima da ideologia de El país de las Mujeres que, apesar de revolucionário e sarcástico, representa para ela uma vitória do sentido feminino frente à dominação masculina na política. Mas não é só: para a autora, seu livro é uma mostra de que as mudanças ocorrem segundo ações pequenas no próprio cotidiano, e que esse deveria ser um indício de como mudar efetivamente na vida real.
A própria referência de vida na obra e nas escritas criacionais de Gioconda Belli não são frutos do acaso. Nos anos 80, ela fez parte do grupo Partido de la Izquierda Erótica (PIE), junto com outras mulheres, nome esse baseado em um livro de poemas de Ana María Rodas, que buscava na força do feminino as motivações para as mudanças sociais que naquele contexto revelavam ser necessárias. É esse o partido que ressurge no romance de Belli aqui em questão, o que familiariza o autor com a luta engajada cuja responsabilidade a própria autora atribui a si e sua literatura.
A autora defende que a luta da mulher por um lugar no mundo deva ser feita “com unhas e dentes”, pois acredita que “há uma carga emocional muito grande, há uma dose de sofrimento bastante grande no fato de ser mulher”. Além do grande problema de assumir seu próprio corpo, nós, as mulheres, para a autora, temos que “tomar consciência de nosso poder, mas até agora na América Latina não o tomamos de forma como eu recebi minha feminilidade, que
foi como um poder”[5].
Nesse campo de sentido, a autora evidencia o habitus distinto feminino e entrega-se à luta por uma realidade melhor a seu país. É através da palavra que a formulação de uma realidade possível, ainda que utópica, pode surgir e significar, apesar de a realidade da obra não condizer com a própria realidade de seu país, e o capital simbólico produzido pela obra de Belli corresponde a um caminho, estreito, de liberdade feminina, mas que ainda sim se sustém em função de que é parte de uma cultura, a literatura, e que ela possibilita o envolvimento dos leitores e a crença à ideia através do ato de ler. Gioconda, portanto, estabelece o sentido da literatura como valor simbólico de uma possibilidade da realidade social cuja realização a própria autora busca em sua vida. Ela mesma diz que há uma crise da imaginação, e pensar nisso corrobora a tese de uma realidade material e superficial, em que as relações emocionais dão espaço ao instantâneo e ao espaço virtual. Vivemos presos às tecnologias, e já o espaço de sonhar se desfez em meio às necessidades do vencer o tempo em nosso cotidiano.
Mais que um espaço de interação, o ativismo político de Belli dá espaço a que muitas mulheres, principalmente de seu país, possam falar sobre seus traumas e angústias, além de
refletir sobre as questões de nosso tempo. A Nicarágua, segundo Isabel Soto Mayedo[6],
“foi o sétimo país do continente – depois do México, Costa Rica, Guatemala, Chile, El Salvador e Peru – em definir e condenar os crimes contra a violência à mulher”, em todas suas expressões (físicas, psicológicas, sexuais e trabalhistas). Através da aprovação da Lei nº 779, em 21 de junho de 2012, o número de denúncias de abusos contra as nicaraguenses aumentaram muito. No primeiro ano, “sete mil e quinhentos homens foram acusados por maus tratos – segundo a Corte Suprema de Justiça -, o que supõe o aumento da confiança das mulheres para denunciar seus agressores, uma vez que sabem que têm respaldo legal”. Além disso, a partir da entrada em vigor da referida Lei, pôde ser possível “conhecer com mais clareza a quantidade de assassinatos cometidos contra as mulheres, quase sempre por seus companheiros masculinos, apegados ao conceito machista de que elas devem ser subordinadas a eles em todos os aspectos”.
Motivada pelas inúmeras ideias de como seria um mundo em que as mulheres não fossem subjugadas, Belli percebe que quiçá as ações não seriam difíceis de serem mudadas: são os pensamentos sociais de uma consciência coletiva de dominação organizacional e política que devemos desestruturar e que, se isto não muda, seguiremos acreditando que nossas particularidades biológicas sigam sendo desvantagens de interação e sucesso social.
El país de las mujeres: a literatura como utopía social
Viviana Sanzón é a nova Presidente de Fáguas. Viúva, mãe de uma filha, foi eleita por voto popular, junto com as amigas, que, juntas, fundaram o Partido de la Izquierda Erótica, termo recuperado da organização de mulheres que desejavam melhor condições de vida para todos, nos anos 1980. A conquista dessas mulheres pelo governo de seu país confere um caráter novo na realidade deste, e se deve ao fato de Viviana, apresentadora de um famoso programa de TV, passar a denunciar as ações corruptivas e abusivas dos envolvidos nos anteriores governos. Quando elas sobem ao poder, Viviana e as amigas, Martina Meléndez, Eva Salvatierra, Ifigênia Porta e Rebeca de los Ríos, passam a inverter toda a ordem de domínio masculino pelo feminino: todos os cargos do governo, de ministérios à polícia local, passam a ser chefiados por mulheres.
Os homens, afetados por um desvio hormonal de testosterona, passam a ter que chefiar as atividades domésticas, como casa e filhos, e suas mulheres, liderando os cargos que antes eram puramente masculinos, passam a atuar na vida pública. O caos social se instala: os homens passam a ter medo dessa nova atitude adotada pelas suas mulheres, mas não podem fazer nada em virtude das sensações despertadas pelos baixos índices de testosterona, que explicam ser uma alteração relacionada à erupção do vulcão da cidade. Com a premissa de “cuidar do país”, elas passam a gerenciar os cargos públicos da mesma forma que cuidavam da casa e dos filhos.
É claro que nem todos se mantiveram contentes com essas mudanças todas no governo, e a oposição encontrou espaço de atuação, de forma violenta e na obscuridade. A Presidenta Viviana sofre um atentado, e é internada em coma. Em flashback, o leitor sabe da história do atentado pelo depoimento da testemunha, José de la Aritmética, vendedor de sorvete que tenta salvar a Presidenta, e pelas cenas posteriores ao atentado, quando as amigas passam a tentar chefiar o governo na falta de Viviana, que se encontra em coma no hospital da cidade. Num relato, em primeira pessoa, a voz inconsciente de Viviana, internada no hospital, que rememoramos a história dessas mulheres, até o ponto do atentado.
Com a descoberta de que o atentado foi de responsabilidade da oposição, a Presidenta se salva, mas fica com a bala alojada no crânio. Decide, então, abrir mão da liderança do país, pois não acreditava que, naquele estado, apesar de bem de saúde, podia representar seu país. No entanto, a população pede seu retorno, pois acreditam que essa sequela apenas reforçaria seu desejo de mudança pelo país, e que seguiria lutando pelos direitos de todos. Através do pedido popular, Viviana volta ao poder e segue, ao lado das amigas, seu ideal de melhoria social.
A narrativa de Belli se destaca pelas relações sobre o público e o privado, na dualidade entre esses dois espaços e a reflexão crítica que identifica o pensamento apresentado como feminista. A compreensão dessas duas esferas revela as diferentes implicações que esta fronteira imaginária significa para homens e mulheres. Segundo definiu Carole Pateman (1988), a obra corresponderia a uma exposição “da história não contada da construção da esfera pública e dos direitos individuais na modernidade a partir da posição das mulheres” (MIGUEL; BIROLI, 2013, p. 14). Segundo Miguel e Biroli, a esfera pública corresponderia à política, como se o espaço doméstico não o fosse, negando-se, dessa forma, as relações de poder da vida cotidiana, familiar, reduzindo o valor e o poder para “fora de casa”, e “a esfera pública estaria baseada em princípios universais, na razão e na impessoalidade, ao passo que a esfera privada abrigaria as relações de caráter pessoal e íntimo” (MIGUEL; BIROLI, 2013, p. 15).
Estando as mulheres no ambiente doméstico, estariam elas reduzidas a uma domesticidade, no seio da casa e da família, dando caráter naturalizado de status a uma posição de comportamento e de papel social. Para os autores, “a preservação da esfera privada relativamente à intervenção do Estado e mesmo às normas e valores vigentes na esfera pública, significou, em larga medida, a preservação de relações de autoridade que limitaram a autonomia das mulheres” (MIGUEL; BIROLI, 2013, p. 15). Como “rainha do lar”, a mulher torna-se o ser sinônimo de regência da sistemática do espaço privado, “cujos princípios da justiça não se aplicariam, já que nas relações sociais predominaria o afeto” (MIGUEL; BIROLI, 2013, p. 15), o que de certo modo inviabiliza seu papel social dissociável de vida pública. Nesse sentido, não só o homem passa a ter domínio sobre o espaço público, como também é dotado de livre circulação entre os dois espaços. Miguel e Biroli acrescentam:
Não há sociedade justa na qual as relações na família sejam estruturalmente injustas; a democracia requer relações igualitárias em todas as esferas da vida, incluída a familiar. Nesse caso, o compromisso com a universalidade como ideal normativo significa um compromisso com a universalidade como ideal normativo com uma sociedade na qual o fato de se ser mulher ou homem não determine o grau de autonomia e as vantagens/desvantagens dos indivíduos ao longo da vida. O universal opõe-se, assim, ao arbitrário e a uma sociedade que supere o gênero é considerada um ideal adequado para o feminismo (MIGUEL; BIROLI, 2013, p. 17).
Em El país de las mujeres, a cidade fictícia Fáguas serve de espaço geográfico para um governo organizado, liderado e comandando por mulheres. Nesse sentido, a atmosfera literária está marcada pelo rompimento dos paradigmas socialmente imposto pelas mulheres, através da ótica de conquista do espaço pelo reforço do estereótipo.
Após o atentado contra a presidenta, Viviana Sanzón, temos conhecimento, através do processo de rememoração dela num espaço chamado galpão, um entre-lugar entre vida e morte, espaço que sua alma estaria enquanto o corpo encontrava-se em coma no hospital local, do processo de conquista eleitoral do PIE, que explorou, justamente, os estereótipos femininos para renovação da política, num processo de feminização na administração governamental.
A partir da valorização das próprias características que recebem as mulheres como definidoras de seus perfis, ou o lado feminino, a serem desqualificadas socialmente frente à política, ou às decisões e cargos que têm por argumento serem masculinos por conta das características testosterônicas, o manifesto explora justamente esses elementos como o processo de renovação política e organização social através da feminização, menos pelo fato de ser por uma mulher, mas, e principalmente por serem essas características as mais direcionadas ao governo justo e voltado ao cuidado para/com os cidadãos. A ideia do felicismo como proposta política indica exatamente o que Miguel e Biroli definiram como a premissa da característica de julgamento das mulheres como diferenciadoras e benéficas em relação à realizada por homens.
Nesse sentido, Gioconda Belli evidencia seu posicionamento político de escritora, mas, principalmente, de representatividade social de cidadã. Ao abordar na obra todos os estereótipos femininos como o próprio processo de autonomia das mulheres, ela busca exatamente os poderes políticos há muito desejados pelas mulheres. Longe de uma igualdade de gênero, o que ela busca é justamente a valorização das ações e características das mulheres, desenvolvidas no espaço privado, para a área pública dos contextos, sendo as questões relativas à democracia da mulher por ser mulher, e não na afirmação das vantagens masculinas de dominação. A mulher, nesse aspecto, não necessitaria ser homem para ser ouvida, mas apenas utilizar-se das artimanhas das quais foram sempre consideradas elementos opressores. Mais do que igualdade, o que Belli proporciona na obra é a manutenção dos perfis femininos de forma critica e participativa socialmente.
A perspectiva da obra é a construção de um espaço fictício para a renovação e o surgimento de um novo mundo possível, dentro da negação do habitus dominante masculino que há socialmente consolidado e aceito como correto. Na violência simbólica feminina e na sua subalternidade, a mulher, ou a proposta feminina de negação ao masculino, coloca-se como um entre-lugar do que historicamente sempre significou e as possibilidades de mudança frente aos contextos opressores. A cultura valorizaria, nessa obra, o posicionamento feminino, abrindo caminho para a discussão dos elementos que outrora significavam a carga de violência simbólica tratada a/pelas mulheres.
O governo de Fáguas, liderado por uma mulher, passou a exercer mudanças significativas e efetivas na vida de todos. Através das ações políticas adotadas por Viviana e as outras companheiras de governo, a primeira ideia foi a de colaborar com a formação cidadã do povo. Na ação dos “cuidadãos”, “cuja maior inovação foi usar o feminino para o geral e introduzir o conceito de ‘cuidadania’” (BELLI, 2010, p. 37), homens e mulheres tornaram-se agentes da prática de cidadania, ideia essa “pega emprestada” de um grupo de feministas espanholas. Por outro lado, a educação formal também passou a ser mais destinada à formação do sujeito cidadão. Nessa nova didática, defendida pela ministra da educação espanhola, que chegou a fazer um discurso público na cidade sobre a nova proposta, “as crianças de até doze anos estudavam nas escolinhas dos bairros”. (p. 47). “Aprendiam a ler e escrever e, no restante do tempo, faziam o que mais gostavam, qualquer matéria” (p. 48):
Além das disciplinas como gramática e ciências, tinham aulas de “maternidade”, fossem homens ou mulheres. Os homens saíam doutores em trocar fraldas, pôr para arrotar, dar colo e cuidar das crianças. Ensinavam-lhes que não tinham que bater nos filhos e um monte dessas coisas de psicólogos. Não era má ideia (BELLI, 2010, p. 48).
Engajada no discurso feminista de nosso tempo, a proposta de campanha e de governo de Viviana é quebrar o paradigma da visão política, mas também social da mulher, justamente através do reforço do estereótipo feminino de cuidadora, mãe e dona de casa. Nessa premissa, não é só a ideia de exploração do âmbito privado na vida pública de um país, mas no reforço de que são as atividades das internas, que se configuram pela valorização do afeto e das relações humanas, que evidenciaria a mudança nos contextos sociais racionais para contextos mais amigáveis e positivos nas relações interpessoais, e isso não estaria só destinado às mulheres. A abertura do valor do privado para uma atmosfera maior incluiria todos, inclusive os homens. E isso significaria a questão de democracia social:
– – E o que vamos defender? Lavar, passar e cuidar das crianças!
– Vou repetir: lavar, passar e cuidar das crianças não é o problema. O problema é que se menospreze o cérebro por trás disso, que se restrinja essa atitude feminina ao âmbito privado, que não entendam que isso tem de ser feito com todos e entre todos; que cuidar da vida, da casa, das emoções, deste planeta miserável que estamos destruindo é o que todos temos que fazer: trata-se de socializar a prática do cuidado, na qual somos peritas, e nos apresentar como as especialistas, as mais qualificadas para isso (BELLI, 2010, p. 83).
Através da campanha, as mulheres decidiram valorizar e, com a ajuda forte da publicidade, “bendizer seu sexo”, numa referência a um poema de Gioconda Belli. O rompimento da velha forma de fazer política deu lugar à exploração do corpo e da imagem daquelas mulheres como críticas de uma sociedade marcada pelo machismo. Se esse era o principal senso comum de Fáguas, Viviana e as companheiras do PIE, passaram a justamente, no reforço das ideias machistas de que não seria capaz encontrar o combustível necessário para reconfigurar a velha máquina política. Na ânsia por criticarem a postura dessas mulheres, os candidatos homens da campanha esqueceram-se de suas próprias propostas para o governo de Fáguas. Foi dessa forma que elas conseguiram a eleição: trazendo à tona o reforço da realidade existente, e injusta, as mulheres encontraram uma forma de ingressar no poder e dele se sobressairem com suas ideias de mudança efetiva.
O governo das eróticas contribuem para a quebra do paradigma socialmente imposto, no (in)consciente coletivo, do domínio masculino. Em um dos capítulos, destaca-se a nova vida de Petronio Calero, um dos inúmeros maridos que ficam em casa enquanto é a mulher que começa a trabalhar fora:
Como ela organizava essas atividades para se manter ocupada durante os anos que ficou em casa sem trabalhar? Porque não tiveram filhos. A natureza não lhes fez esse favor. Olga não se aborreceu. Tinha espírito de freira: sacrificada, silenciosa. Até na cama era assim. Fazê-la suspirar era uma proeza. Mas era inteligente. Mais inteligente do que ele. Agora ganhava mais do que ele jamais ganhara. Viviam melhor. Viveriam melhor, corrigiu-se, se ele se ocupasse da casa, mas a preguiça o consumia (BELLI, 2010, p. 65).
A evidência machista do texto é clara, e é um dos exemplos do pensamento social naturalizado que o novo governo tem de vencer. Em primeiro, o questionamento de como a mulher consegue fazer os inúmeros serviços domésticos que agora competia ao homem é apenas a constatação de que ela não tinha “preguiça”, e não por talento ou por competência, até porque a inteligência da mulher é justificada pelo fato de ela ganhar mais, e como uma compensação pelos hábitos “de freira” da esposa nos atos sexuais.
Nessa premissa, a comunidade imaginada de Belli é um país no qual se organiza através da mulher, ou da ótica estereotipada ao feminino. Seus entre-lugares são estabelecidos o tempo todo, seja através do espaço não físico em que a personagem
Viviana[7] se encontra enquanto está em coma, seja pela lógica de sentido
transviada que o novo governo estabelece, que passa a refletir o que já foi feito, e negado, pela nova possibilidade de formação de nação, que transgride o passado em um novo modelo de atuação, no entanto, ainda não, de todo, consolidado. As personagens masculinas, no estabelecimento e no desenvolvimento de ações cotidianas próprias das mulheres até então, como cuidar da casa e dos filhos, e as femininas, no assumir dos espaços de trabalho que outrora eram ocupados pelos homens, como os próprios cargos de governo e da polícia, neste espaço utópico, tornam o sentido de nação definível tanto pelo entre-lugar de negar e cambiar, como o de renovar e transformar o habitus consolidado em novas realidades possíveis. Através de sua escrita, a própria autora identifica-se no entre-lugar da sua literatura, pois a representa num duplo de realidade sonhada, portanto realidade possível, e a validade social, e, portanto, vivenciada.
Literatura: espaços de diálogos, espaços de reflexão sociais.
Em O país das mulheres, Viviana Sanzón viverá para o resto da vida com uma bala alojada no crânio, marca viva de um atentado contra não só sua vida, mas principalmente a um ideário igualitário para todos, homens e mulheres. Com um pé em frente ao outro, um passo de cada vez, a cidade de Fáguas pode ter representado o padrão de respeitabilidade entre os seres humanos, independentemente de sua condição biológica de gênero.
Em um espaço onde cada vez mais a mulher tenha que justificar suas posições, delimitar seus espaços e exigir a respeitabilidade que deveria ser obrigatória, as questões relativas ao gênero ainda necessitam de muitos avanços. Muitos dizem serem exagero certas manifestações sociais em que a mulher possa ser subjugada, mas tão naturalizados estão certas condutas que já é difícil as conquistas de espaço simplesmente pelos talentos pessoais.
Na própria narrativa, as mulheres, mais do que divulgar suas ideias, precisam buscar a conquista de espaços específicos para que essas ideias possuam efeito positivo. A campanha do PIE é atacada pelos opositores masculinos, que, esquecem suas propostas em nome das acusações de desprestigio de um governo liderado por mulheres. Homens não precisam reforçar estereótipos masculinos como elementos de dominação e de superioridade, porque seus estereótipos já configuram esses sentidos. Por que as mulheres na narrativa são julgadas não pela possível falta de experiência, mas pelas “ideias descabidas” como propostas de campanha? Como acreditar que as posições sociais entre homens e mulheres são iguais se há justamente uma necessidade de provação das segundas aos julgamentos dos primeiros? No reforço de crenças únicas, somos fadados a seguir óticas machistas e injustas, e a negação disso como crítica já estabelece outros estereótipos.
Na parte final do livro, Viviana Sanzón toma a palavra e narra o que lhe parece válido, após sair com vida do coma. De certezas, apenas que muitas das ideias sociais de ativistas feministas preocupadas com a democracia de gênero puderam ser aplicadas e geradoras de mudanças positivas no país. No mundo possível de Belli, Viviana Sanzón foi a mulher que, junto com toda uma equipe de também mulheres, e de um homem que pôde valorizá-la dentro da igualdade de vê-la como uma companheira de vida e de sonhos, trouxe também um mundo possível para inúmeras personagens que desejavam justiça, dignidade e, acima de tudo, felicidade para viver entre os seus.
Mais que uma experiência de vida, a representação do contexto nicaraguense viabiliza a riqueza que a autora possibilita ao leitor, sendo a responsável pela denúncia de opressão, na busca pela igualdade de todos, pelo respeito e pela identidade. Mais que utopias, a narrativa de Gioconda Belli indica a representação ficcional de um ideário em que homens e mulheres possuem os mesmos direitos, porque são eles, em união, os responsáveis por uma sociedade mais justa. O felicismo proposto pela autora não é sinônimo da antítese homem-mulher, mas da combinação feminino+masculino, porque se vence mais que a batalha de gênero: vence-se a batalha de poucos que tem possibilidades sociais.
REFERÊNCIAS:
BELLI, Gioconda. El pais de las mujeres. Disponível em: http://humweb.ucsc.edu/aaperez/tarea/spss63/pais_mujeres_completa.pdf. Acesso em: maio de 2014.
BELLI, Gioconda. O país das mulheres. São Paulo: Verus, 2011.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Difel, 2001.
Gioconda Belli: “Hay que feminizar la política”. YouTube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3Y9zqTnpe1I. Acesso em: nov. de 2014.
MIGUEL, Luis Felipe, e Flávia BIROLI. Teoria política feminista: textos centrais. Vinhedo: Editora Horizonte, 2013.
“Mulheres da Nicarágua: avanços contra a violência”. Revista Diálogos do Sul. Disponível em:
http://www.dialogosdosul.org.br/mulheres-da-nicaragua-avancos-contra-a-violencia/06072013/. Acesso em: nov. de 2014.
UNIVERSIDAD COMPLUTENSE MADRID. “Entrevista com Gioconda Belli”. Disponível em: https://pendientedemigracion.ucm.es/info/especulo/numero34/giobelli.html Acesso em: nov. de 2014.
NOTAS AO TEXTO
[1] O presente trabalho é uma adaptação da dissertação de mestrado da autora. A versão completa do trabalho está disponível em: http://repositorio.pucrs.br/dspace/handle/10923/7371?mode=full.
[2] BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
[3] A definição de habitus, segundo o autor, corresponde a “um conhecimento adquirido e também um ‘haver’, um capital (de um sujeito transcendental na tradição idealista) o ‘habitus’, a ‘hexis’ [termo de Aristóteles], indica a disposição incorporada, quase postural” (BOURDIEU, 2001, p. 62), cuja intencionalidade é “a de sair da filosofia da consciência sem anular o agente na sua verdade de operador prático de construções de objeto”. (BOURDIEU, 2001, p. 62).
[4] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3Y9zqTnpe1I. Acesso em: nov. 2014.
[5] UNIVERSIDAD COMPLUTENSE MADRID. Disponível em:
https://pendientedemigracion.ucm.es/info/especulo/numero34/giobelli.html. Acesso em: nov. 2014.
[6] Imprensa Latina, de Manágua, Nicarágua, para Diálogos do Sul. Disponível em:
http://www.dialogosdosul.org.br/mulheres-da-nicaragua-avancos-contra-a-violencia/06072013/. Acesso em:
nov. de 2014.
[7] O primeiro capítulo da obra intitula-se “A presidenta”, e o último, “Viviana”. A Personagem, assim como a autora, também vive o entre-lugar das posturas sociais que possui historicamente por ser mulher (mãe, esposa, mantenedora do lar, etc.) e as que buscam conquistar (após a morte do marido, dedicam-se ao jornalismo, à denúncia de atrocidades feitas por políticos, à criação do partido, à eleição e à presidência).