Diana Navas
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Telma Ventura
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Resumo: O presente artigo objetiva apresentar no romance Fazes-me falta (2002), da escritora contemporânea portuguesa Inês Pedrosa, as especificidades associadas à Escrita Feminina, as quais possibilitam a (des)construção narrativa. Tal propósito constituiu-se a partir da consideração de que a produção literária pedrosina apresenta uma tessitura composicional em renda, permeada por fendas, brechas e lacunas, revelando os procedimentos linguísticos de fragmentação e decomposição textuais contemporâneos, mesmo que enunciados por uma voz lírica característica de toda uma tradição literária portuguesa.
Palavras-chave: Inês Pedrosa; literatura portuguesa contemporânea; Escrita Feminina; (des)construção narrativa.
Minicurrículos: Diana Navas é pós-doutora pela Universidade de Aveiro e doutora em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo. Atua como professora no Programa de Estudos Pós-Graduados da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Suas pesquisas concentram-se nas tendências da literatura portuguesa contemporânea, mais especificamente, nos romances de António Lobo Antunes. Dentre suas produções, destacam-se: Narcisismo discursivo e metaficção – Lobo Antunes e a revolução do romance (2009) e Figurações da escrita (2013).
Telma Ventura é graduada em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. É especialista em Literatura pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e mestranda em Literatura e Crítica Literária por essa mesma Universidade. Pesquisa as Literaturas Portuguesa e Brasileira contemporâneas, com ênfase nos seguintes temas: Erotismo; Prosa Poética; (neo)barroco; Diálogo interartes; literatura fantástica; Psicanálise.
A ESCRITA FEMININA EM FAZES-ME FALTA, DE INÊS PEDROSA: O (DES)TECER NARRATIVO
Diana Navas
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Telma Ventura
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
A Escrita Feminina e a (Des)Construção do texto literário
A desconstrução da composição narrativa engendra a Escrita Feminina, visto que transforma a linearidade da narrativa e a tessitura da linguagem romanesca – esta, marcada pela poeticidade, pelas brechas e fendas textuais, pelo tecer ao redor do vazio e pelo fluxo de consciência, bem como pela autorreflexão em relação à própria estrutura e forma literárias.
Inúmeros são, entretanto, os equívocos relacionados à expressão Escrita Feminina, sendo a maioria associados à ideia de uma escrita “delicada”, ou ainda à ideia de uma escrita produzida unicamente por mulheres. A Escrita Feminina, enquanto modelo discursivo literário, pode apresentar-se, na realidade, tanto em produções escritas por mulheres quanto por homens. Assim posto, fica evidente que o que é compreendido como discurso feminino (ou Escrita Feminina) não deve ser entendido como o discurso da mulher (ou Escrita de Autoria Feminina). Lúcia Castello Branco, psicanalista e crítica literária que estabeleceu as bases para a fundamentação da Escrita Feminina, cita inclusive alguns exemplos de homens-escritores que apresentam este registro, a fim de desconstruir estereótipos: Marcel Proust, James Joyce, Guimarães Rosa e Raduan Nassar, aludindo que suas obras são produzidas no registro do estilo discursivo feminino.
Com o propósito de estabelecer as bases de uma definição da Escrita Feminina, Lúcia Castelo Branco postula que
(…) não se trata de detectar uma anatomia do texto, mas de examinar uma configuração discursiva específica – entendida, a partir de uma série de correlações, como feminina, mas que afinal pode ser concebida tanto por homens quanto por mulheres. (2010, p.12-13)
Abarcando as contribuições da Psicanálise, a Escrita Feminina tem como objetivo pontual a análise do texto literário. Branco afirma que ao estudo desta Escrita pouco importa o sexo biológico do autor do texto (e, em decorrência, o sexo do texto) mas as maneiras pelas quais sua trama se constrói, quais especificidades discursivas podem nele ser pontuadas, a fim de realizar um traçado – uma cartografia:
(…) não propriamente um mergulho nas profundezas do texto, mas um passeio por suas superfícies, um mapeamento, uma cartografia. Nessa viagem se pretende assinalar a dimensão temporal descontínua da memória, as terras da literatura, (…), a materialidade da letra feminina (letra feminina compreendida enquanto discurso feminino), os entrecruzamentos entre a memória e a ficção (1990, p.16-17 – grifo nosso)
O constructo da Escrita Feminina ocorre, destarte, por meio dos processos discursivos nos quais “a linguagem é sempre levada ao paroxismo de seus próprios limites” (BRANCO, 1990, p. 16). Construída em prosa-poética, entremeada por metáforas e apresentando marcas de ritmo e cadência específicas, a Escrita Feminina invariavelmente articula-se a partir de uma linguagem que produz um texto de gozo, na acepção que Roland Barthes confere a este termo:
Texto de fruição [texto de gozo]: aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (…), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem. (2013, p. 20-21 – grifo nosso).
A fim de compreender a Escrita Feminina enquanto texto de gozo, faz-se necessário comparar a sua composição à tessitura de uma renda – cujas linhas tanto constituem quanto margeiam os buracos, as fendas, os vazios, mas não os preenchem: “A lacuna desses textos (…) é um elemento estruturante: é em torno do vazio, do buraco, da falta, que a escrita feminina se constrói” (BRANCO, 1991, p.57). Em sendo tessitura, enreda o leitor, por meio de uma linguagem margeante, em sua malha, em sua rede de sentidos; e, em sendo margem, lança a própria narrativa ao precipício, à beira da morte, visto que retira desta todas as certezas e limites, levando-a a extremos de sentidos.
O texto produzido pela Escrita Feminina é tecido e destecido às vistas do leitor, oferecendo-lhe mais dúvidas do que certezas, mais ausência do que presença, e desafiando os limites linguísticos tradicionais. Assim configurada, uma narrativa desta forma produzida invariavelmente espelha e é espelhada por um enredo fragmentado, em uma intermitente tensão entre os polos da continuidade e da descontinuidade (do tecer e do destecer): buscando traçar uma linha narrativa contínua, delineia uma trama intervalar, cujos sujeitos narrativos oscilam entre a presença e a total desconstrução, e cuja voz, mesmo que ancorada na escrita, avulta apenas seu deslocamento.
Produzindo textos que jamais se permitem desvendar por completo e que concedem à lacuna e à falta um lugar privilegiado em sua tessitura, a Escrita Feminina faz uso de uma composição cujo elemento primordial é a Morte – primordialmente enquanto fator de (de)composição da trama linguística, pois que tal figuração “exibe a perda, por apresentar o vazio sem buscar obturá-lo e por fazer desse vazio e dessa perda os motores de produção de sentido e de palavras” (BRANCO, 1991, p.36). Tendo em vista que a morte a tudo desconstrói, a Escrita Feminina, por meio da linguagem, instala o texto em um lugar de desconforto, já que o sentido do escrito nunca está onde o texto se encontra, pois que desconstruído constantemente – e caminhando em direção ao gozo através da morte, já que a lógica do texto de gozo é a abolição dos limites.
Escrita sempre em construção, em movimento, em processo, sempre inacabada, a abolição dos limites linguísticos e a continuidade-descontinuidade narrativa são plenamente refletidas pela e na prosa poética e na linguagem erótico-amorosa, cujas funções sintáticas e semânticas apresentam-se subvertidas em prol do sentido, do ritmo, da cadência e da pulsação textuais. Corroborando esta concepção, Branco (1991) expõe que “o gozo está contido nesse movimento em direção à morte: das vibrações, palpitações e suspiros, que sugerem uma atmosfera evidentemente erótica da linguagem” (p. 53), ao que Barthes (2013) complementa ao salientar que o texto traga – e seduz, violentamente – o leitor para o seu íntimo, ao utilizar-se desta constituição formal.
A narrativa assim engendrada apresenta características discursivas específicas em sua linguagem poética e erótico-amorosa: as lacunas e fendas, a ausência de certezas, a pontuação e a sintaxe singulares, a linguagem em proximidade com a fala, o ritmo sincopado e a (des)tessitura narrativa. Revelando constantemente a precariedade da linguagem, a fragmentação do sujeito, e oscilando entre a existência e a inexistência, o enredo do texto produzido pela Escrita Feminina, por sua vez, se dissipa, encenando suas relações com a morte e a vacuidade do eu, e desenhando um sujeito contemporâneo, fraturado e descontínuo.
Os lugares de Inês Pedrosa
Inês Pedrosa (1962 – ), escritora portuguesa nascida em Coimbra, licenciou-se em Comunicação Social pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa em 1984 e, por esta mesma Universidade, doutorou-se em Línguas, Literaturas e Culturas.
Em janeiro de 1983, iniciou sua carreira como cronista, tendo publicado suas crônicas em diversos jornais; a constante crítica às múltiplas formas de discriminação – raciais, de gênero, de acesso à cultura e às injustiças sociais – levou a que suas crônicas fossem laureadas com o Prêmio Paridade, da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Gênero. A compilação das crônicas relacionadas à condição da mulher na sociedade portuguesa deu origem ao livro Crónica feminina, publicado em 2005.
Seu primeiro romance, A Instrução dos amantes, foi publicado em 1992 e, em 1997, publicou Nas tuas mãos, romance que recebeu o Prémio Máxima de Literatura, prêmio este que voltou a receber, em 2010, com a obra Os Íntimos. Além de romances, entretanto, Inês Pedrosa também publicou 20 mulheres para o século XX, ensaio composto por um conjunto de biografias de mulheres marcantes do Século XX, dentre as quais figuram Simone de Beauvoir, Agustina Bessa-Luís, Coco Chanel, Frida Khalo, Lou Andreas Salomé, Virginia Woolf. Fica comigo esta noite (2003), por sua vez, caracteriza-se por uma reunião de contos permeados pelas vozes femininas da contemporaneidade que questionam os homens modernos e suas identidades e desejos.
A produção romanesca pedrosina apresenta uma profunda transformação da lógica interna de seus romances, a qual, marcada por uma ordem não linear e por múltiplos cruzamentos de perspectivas narrativas, prima por uma ordem aparentemente desconexa e incoerente, comportando saltos que subvertem o tempo-espaço interno ao texto. O autoquestionamento das personagens principais em relação à sua existência espelha-se nesta (des)construção da escrita, demarcada pela profunda solidão existencial das personagens. Assim, a palavra poética, único procedimento formal capaz de expressar tais vazios e questionamentos humanos, particulariza a escrita pedrosina.
Questionando as mudanças estruturais na sociedade, as obras de Inês Pedrosa também colocam em pauta a mudança das mentalidades, a partir do momento em que sua escrita estabelece o contraponto da voz da autoria feminina – a voz da diferença -, interpelando o discurso ditatorial patriarcal salazarista que se perpetua em Portugal, travestido de androcentrismo. À semelhança de suas antecessoras, utiliza, em algumas de suas composições, a Escrita Feminina a fim de construir narrativas que espelhem o subjetivismo fragmentado do indivíduo contemporâneo.
(Des)tecendo narrativas: A Escrita Feminina de Fazes-me falta
Em Fazes-me falta (2002), Inês Pedrosa encena uma narrativa de vínculos e separações que, entre o amor, a amizade e o desejo, expõe os afetos (in)existentes entre uma mulher morta – a personagem feminina – e um homem vivo – a personagem masculina. Durante o velório do corpo dela, ambos empreendem uma jornada elaborada em monólogos, permeados de desespero e pranto, na tentativa de compreender a ausência definitiva, a partir da qual o enredo se enuncia no romance: a ausência do corpo, a ausência da fé, a ausência dos afetos e vínculos e, principalmente, a ausência que se resume na personagem feminina e que representa a tradição literária contemporânea de Portugal – a ausência de uma narrativa tecida nos moldes literários queirosianos, pois que a presente obra pedrosina apresenta todas as características de um romance desconstrucionista metahistórico português.
Analisando o mundo e a sociedade, a obra pedrosina em estudo demarca a crítica à realidade portuguesa, a qual sofreu grandes transformações a partir da Revolução dos Cravos. O lugar do sujeito, afetado pelas mudanças sócio-político-econômicas do Portugal moderno, participa do novo fazer literário, pois que a narrativa denuncia a alienação dos indivíduos pelo sistema e o vazio provocado por esta situação.
A guerra colonial em África, a angústia dos retornados e as consequências de todas as configurações sócio-históricas de Portugal decorrentes de tais fatos históricos marcam igualmente a narrativa de Fazes-me Falta com o ícone da morte e da ausência. Uma profunda falta de esperança em relação à política nacional, marcada pelo pós-colonialismo, e aos indivíduos que a representa encontra-se delimitada no romance em questão.
A fim de demonstrar, igualmente, a mentalidade misógina da sociedade portuguesa, a qual observa com olhar desacreditado a emancipação e os posicionamentos das mulheres que buscam ações afirmativas que garantam seus direitos legais e sociais, o romance coloca, na voz da personagem feminina, um desabafo: “Tanto insistias. Que eu não me definisse como feminista em público. (…) Que sorrisse em vez de criticar. Ou pelo menos sorrisse enquanto criticava” (PEDROSA, 2003, p.160). Entretanto, é factual que a condição feminina possui ampla proeminência na Literatura Portuguesa, sobretudo nos escritos de autoria feminina contemporânea, iniciada por Agustina Bessa-Luís, Maria Teresa Horta e Natália Correia, como contraponto à ditadura salazarista.
As ideologias, todavia, se estenderam igualmente às delimitações quase ditatoriais impostas à linguagem literária que, em geral, na tradição anterior à revolução pós-salazarista da Literatura, caracterizava-se pela prosa linear, organizadora e mantenedora da instrumentalização social. O romance pedrosino em estudo, em decorrência, subverte esta linearidade ditatorial, rompendo inicialmente, de acordo com Álvaro Gomes (1993), com a estrutura fechada que tentava negar autonomia à produção literária, pois que traz à composição formal a multiplicidade de eus narrativos e propicia, destarte, múltiplos modos de abordagem da realidade, consoante os diversos pontos de vista das vozes narrativas.
O aparente caos narrativo é ainda reforçado pelo fato de Fazes-me falta ser fundado na poeticidade, constituindo um texto em fragmentação, em ruptura e descontinuidade temporais, exibindo o abandono da linearidade e da ausência de fechamento, que marcam a completa destruição do enredo. A obra em questão enuncia uma fala subreptícia, resistente e sempre dissidente, uma poética da perda e da morte, da falta irremediável e do indizível – a linguagem do discurso feminino, a qual se anuncia traçada e tecida, sobretudo, “na perda e na lacuna, (compondo) um viscoso limbo discursivo, onde as palavras explodem, implodem e nada dizem, além desse impossível de dizer” (BRANCO, 1990, p. 341-342). A poética da escritura pedrosina oferece um estilo elaborado, um tratamento exuberante às palavras, a força de uma lírica amorosa ancestral, demarcada na tradição literária portuguesa.
A linguagem poética, lírica, está presente em todo o texto, construindo uma forte imagética permeada de metáforas, visto ser esta a única tessitura possível para expressar os sentimentos das vozes narrativas, pois que as palavras cotidianas, a prosa linear e organizadora, não dão conta de manifestar a ausência e as lacunas constitutivas do relacionamento entre as personagens feminina e masculina de Fazes-me falta as quais, já em suas primeiras falas, exprimem poeticamente a morte e consequente sentimento de ausência:
[Ela] Agora que saí do corpo que fui – para me tornar pólen, poeira nos teus olhos, pura imaginação de mim – imagino-o melhor ainda, ébrio de luz, lúcido, encandeado por um Lúcifer oculto e criador incrustado no seu próprio ser, em estado de paixão com a história desencadeada pela sua omnipotente solidão. E balouço no Seu sorriso outra vez, a vez definitiva porque o meu corpo está lá em baixo, num caixão, contemplado e lembrado e chorado pela última vez. (PEDROSA, 2003, p.10)
[Ele] Tu. Agora puro vapor do universo. Serves-me de Deus – quem diria? Serves-me no que não sei ser, e é a verdade. Olho para o mar do Guincho, para essas ondas frias e violentas em que tanto gostavas de mergulhar, e sinto-me também eu meio morto, meio frio. Feliz por estar ao teu lado outra vez. Ao lado dessa que já estava morta um bom par de anos antes de tu morreres. Fazes-me falta. Mas a vida não é mais do que essa sucessão de faltas que nos animam (PEDROSA, 2003, p. 13-14).
Por apresentar-se enraizada na prosa poética, Fazes-me falta é, da mesma maneira, o lugar de um erotismo, de um texto oposto ao pensamento linear-prosaico, e que se abeira, como a própria poesia, dos limites da linguagem, em um movimento incessante de palavras que exibem nuances e vacuidades. “A poesia é feita de palavras enlaçadas que emitem reflexos, vislumbres e nuances (…), e nos fazem ouvir o inaudito e ver o imperceptível”, assegura PAZ (1994, p. 11). E, ao proferir o imperceptível, a palavra poética, da mesma forma, apresenta uma “festa de linguagem, em seu espetáculo de perda e de desordem, de loucura e de siderações do sujeito” (BRANCO, 1990, p. 434).
Ao considerar-se a Escrita Feminina, a mesma imagem metafórica é observada, pois que o discurso feminino sugere, na verdade, o que não foi dito, de maneira objetiva, no texto, mas o que está presente, presentificado no ilimitado, no indizível, que apenas pode ser concebido por meio da linguagem. Em Fazes-me falta, esta Escrita se constitui, na verdade, em uma desescrita, em uma destessitura da narrativa, explícita nas lacunas e nos abismos da linguagem utilizada, à semelhança de todo processo poético que, levado aos seus limites, aproxima-se desse lugar. O destecer narrativo é pontuado logo no primeiro monólogo da personagem masculina que, ao definir o que o unia à personagem feminina, expressa: “O que existia, existe, entre nós, é uma ciência do desaparecimento. Comecei a desaparecer no dia em que os meus olhos se afundaram nos teus. Agora que os teus olhos se fecharam, sei que não voltarás a devolver-me os meus” (PEDROSA, 2003, p. 12). Uma ciência do desaparecimento igualmente ocorre com a própria composição, ao longo da narrativa.
Os fragmentos, os vazios, os bordados no nada, com ritmos entrecortados e respirações ofegantes, compõem uma escrita espasmódica, uma linguagem erótica, permeada por detalhes ínfimos, meticulosidades e minúcias, criando um texto excessivo e desdobrado e, ao mesmo tempo, elíptico, fraturado e lacunar. A personagem masculina, em meio a seu sofrimento, diz que a personagem feminina traz em si um “tecido de mortos” e um “saber de cinzas” (PEDROSA, 2003, p. 65), assinalando a lacuna, a dissipação e a fragmentação da personagem e da narrativa, representadas na Escrita Feminina de Inês Pedrosa. Em Fazes-me falta, tudo está presente, mas quase nada acontece: não existem fatos reais, nem um grande enunciado, ou mesmo uma revelação fundamental; a Escrita Feminina, nesta obra, revela o sujeito através de seu esvaecimento e, em decorrência, uma narrativa enunciada no vazio:
[Ele] O teu corpo é agora alimento da terra (…). E no cheiro do vento, na matéria física dos dias e das noites. Olho para a tua campa e sinto os teus olhos negros a serem devorados pelas larvas, o teu sorriso espelhento apodrecendo a cada instante, as tuas mãos desfazendo-se, desaparecendo para sempre deste mundo que é ainda tão teu (PEDROSA, 2003, p. 156).
A tal tessitura composicional cindida e fragmentária corresponde a poeticidade, uma linguagem que se aproxima da fala, da linguagem oral, “com sua dupla capacidade de fluir com o tempo e de o fazer durar” (BRANCO, 1990, p. 285), a qual, simultaneamente, projeta a narrativa em direção ao futuro, movida pelo passado e, no entanto, paralisada no presente – na morte da personagem feminina. Na prosa poética de Fazes-me falta, urdida no esquecimento, produto de lapsos e omissões, “a linearidade se torce, atropela seus próprios passos, serpenteia: a linha reta (a prosa) deixa de ser o arquétipo em favor do círculo e da espiral (a poesia). Há um momento em que a linguagem deixa de deslizar e (…) move-se sobre o vazio” (PAZ, 1994, p. 13).
No serpentear da linguagem poética, o presente narrativo da obra pedrosina estudada relaciona-se à fala, à voz e ao corpo feminino – morto –, exibindo a angústia da ausência e da descontinuidade, desse lugar de imobilidade e silêncio:
[Ela] De quem é esta morte encenada em caixão? De onde vem esta febre fria que me sela a boca? Luto para fugir desta caixa onde me expõem e me lamentam. Se ao menos soubessem rezar. Pai Nosso, eu não quero já o céu. (…) No lugar do morto, é o medo que enjoa e entontece. O medo que os vivos têm de mim, agora, do futuro que lhes anuncio, vestida para enterrar. Esse medo cria ondas de calor, ondas enevoadas, que a luz das velas, a baba dos sussurros amplia. Meto-te medo, também a ti? Aqui imóvel, de olhos fechados, olhando-te ainda, para não me olhar a mim, para me afastar do cheiro a medo que é talvez o cheiro derradeiro (PEDROSA, 2003, p. 21).
A angústia enunciada em Fazes-me falta, de dupla orientação, funda-se no desejo de negação da morte: “Preciso de me despedir de ti, ou de aceitar a morte, que é a mesma coisa” (PEDROSA, 2003, p. 71), bem como na tentativa de sobreviver à ausência do outro: “Ensina-me a tua morte, que em vida apenas pude surpreender” (PEDROSA, 2003, p. 90), ausência esta que marca o corpo de quem fica com os sinais do corpo ausente: “Esforço a imaginação, estendo-a até aos teus dedos, mas não consigo mais do que um ligeiro roçagar de asas. São os lençóis que agito, bem sei – mas não me concederás a graça de transformar a fímbria do meu lençol na ponta dos teus dedos?” (PEDROSA, 2003, p. 144). Ao sujeitarem-se à ausência, no tempo presente da perda e da angústia, as vozes narrativas a manipulam, transformando, por meio do discurso feminino poético:
(…) a distorção do tempo em vai e vem, (a fim de) produzir ritmo, abrir a cena da linguagem (…). A ausência torna-se uma prática ativa, um atarefamento (que me impede de fazer qualquer coisa); cria-se uma ficção com múltiplos papéis (dúvidas, recriminações, desejos, melancolias). Essa encenação linguageira afasta a morte do outro. (BARTHES, 2003, p.39)
Nesse vai-e-vem narrativo, a poesia recria o objeto amoroso por meio de palavras que, de acordo com Octávio Paz, “sangram pela mesma ferida” (2012, p. 137), ferida aberta pela perda deste objeto, como se pode verificar na seguinte passagem:
[Ele] Estou sozinho. Sozinho com o coração em bocados espalhados pelas tuas imagens. Já não posso oferecer-te o meu coração numa salva de prata. Alguma vez o quis? Alguma vez o quiseste? Dava-me agora jeito um deus qualquer para moço de recados. Um deus que te afagasse os cabelos e me recordasse como eram macios. Um deus que me libertasse desta imagem fixa do teu corpo encaixotado (PEDROSA, 2003, p. 11).
Marcada pela força lírica, como também pela Escrita Feminina que, em Fazes-me falta, tece e destece a Morte – morte esta não apenas da personagem feminina, mas de todo o corpo textual da obra –, a narração do corpo morto da protagonista sugere a metáfora central, metáfora esta que institui a cadeia de camadas textuais estabelecidas por esta morte alegórica. Morrendo, a personagem feminina revela o vazio da vida, do saber e da contemporaneidade, visto que principia uma reflexão a respeito da sua (in)existência e assim expõe a incompletude a que o ser humano está fadado na sociedade atual.
A fragmentação, a ausência e as fendas textuais, elaboradas em linguagem lírica, propiciam a manufatura de um texto de gozo, postulado por Barthes (2013) em O prazer do texto, no qual o teórico menciona que “o texto (de gozo) é atópico (…) em sua produção. Não é um falar, uma ficção, nele o sistema está desbordado, desfeito” (pp.37-38). Um texto desfeito, uma narrativa de não-morte, urdida entretanto no desespero, na saudade e na ausência. Tal narrativa, ao mesmo tempo desmedida, inútil e efêmera, e excessiva e sempre adiada em suas grandes verdades, apresenta-se invariavelmente tecida em uma produção de sentidos minúsculos – na exacerbação narrativa dos afetos, das sensações e dos caminhos do desejo.
A tessitura textual exibe, destarte, uma obra que procura algo que lhe falta e sempre faltará, até que esta procura infinita desemboque no único caminho possível – na morte. A dinâmica do desejo de Fazes-me falta, em sua trajetória de texto de gozo, um texto sempre em percurso, compõe-se assim de um desejo já a priori frustrado, visto que o objeto desejante – a personagem masculina – e o objeto desejado – a personagem feminina – jamais se encontrarão novamente, marcando, com este fato, o sentido (im)possível e abismal da narrativa: “Não quero que venhas ter comigo, os mortos não se encontram” (PEDROSA, 2003, p. 182), exorta a personagem feminina, reafirmando a separação eterna entre eles, no gozo da separação e da ausência imutável e infinita.
Considerações Finais
Inês Pedrosa vem construindo, desde meados dos anos 1990, um rico e sólido legado romanesco. Sua obra, vislumbrando aspectos humanos e conflitos existenciais universais da contemporaneidade, seduz o leitor que, mesmo ávido por respostas, não as encontra nos textos pedrosinos; ao contrário, a leitura destas obras apenas faz aumentar a angústia e o sentimento de incompletude humanos, pois que se configuram como espelhos que evidenciam e refletem as ausências vivenciadas na sociedade pós-moderna. Destarte, as narrativas desta autora lançam seus leitores em um abismo de faltas e de lacunas, jamais facilitando ou oferecendo possíveis respostas, uma vez que se configuram como textos de gozo, como postulado por Roland Barthes em O prazer do texto (2013).
Essa sensação de incompletude suscitada pelo romance, associada ao sentimento de projeção ao abismo, instigou o presente artigo. Assim, buscou-se apreender as maneiras pelas quais a narrativa pedrosina se constrói formalmente, bem como a configuração do trabalho com a linguagem que Inês Pedrosa empreende a fim de tecer suas obras de gozo. Para tanto, mostrou-se necessário definir os aspectos composicionais da Escrita Feminina, como concebida por Lúcia Castelo Branco (1991), no intuito de apreender os modos e meios pelos quais a escrita pedrosina (des)constrói as próprias narrativas.
A Escrita Feminina configurou-se como um constructo teórico singular para a análise do romance Fazes-me falta, pois demonstrou que esta obra preza por uma tessitura composicional em renda, ou seja, uma narrativa toda tecida em prosa-poética, a qual demanda a transgressão da sinalética e da sintaxe, alterarando a sequenciação na leitura das frases e imprimindo um fluxo musical e uma cadência instintual de ritmo; ao mesmo tempo, a estilística da obra em estudo subverte a estrutura linguística tradicional do romance, pois que espelha a condição humana na contemporaneidade, entre sentimentos de incompletude e de vida fragmentada.
Fazes-me falta, contrariando os estereótipos associados às obras de autoria feminina, segundo os quais essa literatura revela-se invariavelmente delicada, intimista e introspectiva, revelou-se um texto transgressivo que, em seus silêncios, grita suas fendas e lacunas, conduzindo o leitor à consciência de sua própria violação.
Referências
BARTHES, Roland. O prazer do texto. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2013.
BRANCO, Lúcia Castello; BRANDÃO, Ruth Silviano. A mulher escrita. Rio de Janeiro: Lamparina Editora, 2004.
BRANCO, Lúcia Castello. A traição de Penélope: uma leitura da escrita feminina da memória. Tese de Doutorado. Belo Horizonte, Universidade Federal de Minas Gerais, 1990.
BRANCO, Lúcia Castello. O que é escrita feminina. São Paulo: Brasiliense, 1991.
GOMES, Álvaro Cardoso. A voz itinerante. Ensaio sobre o Romance Português Contemporâneo. São Paulo: Edusp, 1993.
PAZ, Octávio. O arco e a lira. São Paulo: Cosac-Naify, 2012.
PEDROSA, Inês. Fazes-me falta. São Paulo: Planeta, 2003.
REAL, Miguel. O romance português contemporâneo: 1950-2010. Lisboa: Editorial Caminho, 2012.