Resumo: Este artigo se propõe a descrever aspectos relacionados à arte de representar e cantar na cidade carioca, evidenciando a exclusão das mulheres das artes, bem como apresentar a inclusão de atores negros nas apresentações públicas, uma vez que a arte de representar não era almejada pelos bem-nascidos socialmente. Nesse período que compreende os séculos XVIII e XIX, esse grupo étnico pintava o rosto de branco e se travestia de mulheres, inclusive usando perucas loiras, para representar personagens brancas. A mulher negra neste período quebrou preconceitos da sociedade patriarcal, ao se inserir nas representações teatrais e musicais. E neste contexto, abordaremos sobre a cantora lírica negra Joaquina Maria da Conceição, conhecida no mundo artístico como Joaquina Lapinha. A referida artista foi reconhecida nos teatros lusitanos pelo seu imponente canto lírico e presença de palco, ganhando assim notoriedade no mundo das representações artística.
A contribuição dos negros na arte de representar e cantar na cidade carioca: Joaquina Lapinha quebra barreiras no universo artístico lírico
Cristina da Conceição Silva
José Geraldo da Rocha
Introdução
Navegar no universo das concepções e concretização do carnaval é uma verdadeira imersão em um grande laboratório literário. Isso de certo modo ressignifica o nome “escola” presente em todas as agremiações que fazem o carnaval carioca desde os desfiles na Intendente Magalhães até os desfiles na avenida Marquês de Sapucaí.
Este artigo surgiu a partir da divulgação do enredo da Escola de Samba Inocente de Belford Roxo de 2014, intitulado O triunfo da América: o canto lírico de Joaquina Lapinha. Joaquina Lapinha foi uma cantora lírica negra que venceu preconceitos, ou seja, uma joia de raro talento para o século XVIII, e que pode ser considerada emancipadora da mulher no mundo das artes de representação teatral e do canto lírico. Logo, ao ouvirmos os refrãos do samba-enredo, composição de Altamiro / Tico do Gato / Vinicius Ferreira / Claudinho / Chiquinho do Bar / Manelão / Abilio Mestre Sala / Paulo / Juruna Zona, que descreve Joaquina Lapinha assim:
Desfrutando talento, venceu preconceito / Cobrou seu direito, superou desafio / Seguiu seu destino, mostrando ao mundo / O valor de uma mulher (aplaudida de pé)… / Lisboa aplaudiu o sonho brilhou / O príncipe ouviu a notícia ecoou / Oh! Negra mulher…
E foi no furor dos festejos de momo, que nos encantamos pela personagem e vislumbramos investigar literaturas que abordassem a respeito da cantora lírica, todavia, falar do negro para nós é uma questão identitária. Logo, as literaturas que descrevem acerca da cantora nos enveredaram para o papel do negro no universo teatral e musical, e assim, percorremos os caminhos dos homens e mulheres negras no universo artístico carioca. E nesse universo observamos que os negros de uma forma jocosa, foram inseridos pelo branco no contexto teatral e pelas entidades religiosas na música de cunho religioso. Todavia, esse papel era destinado aos gêneros masculinos, mas a mulher negra adentrou nesse mundo masculino e abriu as portas para as mulheres brancas nas apresentações e representações artísticas nos séculos posteriores. Na atualidade identificamos que tanto homens como mulheres negras, são submetidos a cotas para serem inseridos no mundo das representações e quanto arte musical especialmente a lírica, poucos são os afro-brasileiros que são representados nesta modalidade musical.
Assim sendo, este artigo visa percorrer o caminho de homens e mulheres negras nas artes musicais e de representações, e como destaque desse grupo étnico, abordaremos sobre o sucesso da mulher negra Joaquina Lapinha, nas artes de representar e cantar.
Leeuwen (2009) observa que a cidade do Rio de Janeiro nos meados período setecentista, conhecida no período como cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, tornou-se capital do vice-reino do Brasil, substituindo a cidade de Salvador na Bahia. E que a partir deste momento ocorre um processo de desenvolvimento e renovação da geografia, fato também intensificado por conta do declínio da exploração da mineração em Minas Gerais.
Para a autora é importante ressaltar que muitos estudos apontam a importância do Rio de Janeiro, após a chegada da família real no ano de 1808, logo, a produção historiográfica da cidade no período setecentista é bastante escassa. Neste contexto, Cardoso (2006) identifica que a vida social e cultural da cidade do Rio de Janeiro, passa a ter mais visibilidade com a presença da nobreza que se fixou na cidade neste período, ao contrário de Salvador que foi a primeira capital e de Minas Gerais que apresentava glamour em função da descoberta do ouro. A cidade carioca era uma geografia por onde passavam mercadorias, era local de grande comércio e espaço geográfico onde se carregava todo o tráfico da América e se descarregava todo o peso do governo de Minas Gerais e São Paulo. No primeiro quinquênio do século XVIII, a vila do Rio de Janeiro, passa a ter importância militar, mas, também pelo porto que passa escoar preciosos minerais para a Europa e passa a ser o centro de abastecimento das regiões minerais.
E por conta desse desenvolvimento, declara Cardoso (2006) que a produção artística da cidade, mesmo se comparada à de Minas Gerais, foi muito significativa no que se refere à musicalidade carioca, com a chegada da corte portuguesa. A música passa a fazer parte da cultura da cidade, no período oitocentista, e se elevou acima do que se apresentava anteriormente, o que ocorria nos desfiles de batalhões ou nos entreatos das dramaturgias nos teatros. Logo, a música começa a circular na boca do povo, em canções populares e animando as danças nos salões e nas ruas da cidade, a música era também era executada nas igrejas nas comemorações aos santos de devoção popular e nas residências das famílias cariocas. A banda dos barbeiros, orquestra composta por negros que eram músicos, se fazia presente nas quermesses católicas. Os choros cariocas, e outras modalidades musicais passam a ser contemplados em grandes templos artísticos e festas religiosas da cidade do Rio de Janeiro. A partir destas práticas festivas, observasse a presença da música em inúmeros eventos da cidade carioca, desde os mais nobres aos populares, ocorrendo desde eventos religiosos aos denominados profanos e na dramaturgia, segundo LEEUWEN (2009) e CARDOSO (2006).
Embora Recife e Salvador fossem geografias de grandes tradições culturais, o Rio de Janeiro ganhava espaço neste quesito, tendo em vista a chegada dos monges-músicos e de bons músicos de importantes centros urbanos de Minas Gerais. Pacheco (2006) aborda que, ao longo do século XVIII, o Rio de Janeiro sofre muitas mudanças em função de sua expansão urbana. Logo alguns espaços do Centro da cidade apresentam novas configurações, com o surgimento de inúmeras edificações religiosas. Declara ainda o autor que as alterações urbanas da cidade carioca não paravam de ocorrer, e que no período setecentista foi construído o Passeio público, segundo plano de Mestre Valentim, e a casa da Ópera, fundada por Manuel Luís Ferreira. Assim, surgem as primeiras referências de espaços de representações dramáticas, e com isso se manifesta a presença da música de outros gêneros, embora a música religiosa fosse a de maior relevância para a sociedade carioca:
Lembramos que, como herança portuguesa, as relações entre a Igreja católica e o Estado no Brasil se deram pela instituição do padroado, assim, identificamos o monarca português como o verdadeiro chefe da Igreja. Dessa forma, em 1808, Dom João foi o responsável pela criação da Capela Real do Rio de Janeiro. (LEEUWEN, 2009, p. 42).
Cardoso (2008) menciona que a música na cidade do Rio de Janeiro apresentava manifestações em espaços populares e religiosos e que diferentes gêneros musicais e danças ofereciam aos estrangeiros que chegavam na cidade uma variedade de experiências sonoras. Entre tais experiências estavam os ritmos da modinha e do lundu, presentes tanto na cultura popular quanto na música palaciana no Brasil e em Portugal. Esta interculturalidade entre metrópole e colônia, que se difundia nas ruas e nos salões aristocráticos, revelou circularidade cultural estabelecida através das revelações musicais europeias e africanas. Fato que levou ao surgimento de novos gêneros reconhecidos como tipicamente brasileiros: o lundu e a modinha.
Após a chegada da corte portuguesa, identificamos a Real Câmara como a principal responsável pela produção da música de câmara, que incluía a execução de serenatas e cantatas entre outras, em locais como o Paço de São Cristóvão – também chamado Real Quinta da Boa Vista, residência habitual de Dom João VI, e a Real Fazenda de Santa Cruz. (LEEUWEN, 2009, p. 45).
Aponta Leeuwen (2009) que o teatro e a igreja eram pontos obrigatórios de encontros sociais, e que esses espaços difundiram a música e deram visibilidades a cantores e músicos, além de transforma prática musical pública, e não mais restritas aos ambientes privados.
A prática musical no Rio de Janeiro setecentista e nos primórdios oitocentistas surge com novas roupagens da cidade carioca, a exemplo: crescimento populacional, acolhidas de missões (especialmente a Missão Artística Francesa), visitas de estrangeiros à cidade e expansão econômica intensa. Logo, com todos estes aspectos surgem as demandas culturais e, assim, os palcos improvisados, em terrenos abandonados, praças e ruas da cidade, os quais surgem como espaço de representação artística. Tempos depois, esses espaços utilizados pela massa popular passaram a ter local próprio para expressão artística, com a efetivação do teatro público. No século XIX, surge o Teatro Padre Ventura, que acolheu óperas e teatros de marionetes. Todavia, existem autores que apresentam divergências sobre os títulos das óperas apresentadas no Rio de Janeiro nesse período. Tais desencontros também aparecem quanto à nomenclatura do teatro; entretanto, o que é comum nos relatos entre diversos estrangeiros que pela cidade passaram, é que o referido espaço separava homens e mulheres nas acomodações, evidenciando a diversidade entre os gêneros, identifica Leeuwen (2009).
A educação feminina, aponta Leeuwen (2009), no final do período colonial no Brasil, era voltada para a liderança doméstica, ou seja, nas atividades da costura, bordados, pois geralmente as mulheres não aprendiam a ler e escrever e a contar. Logo, a educação recebida pelas mulheres era prioritariamente para economia doméstica e para criar os filhos. Pacheco (2006) identifica que os dogmas da igreja católica confinavam as mulheres, especialmente as casadas, para diferenciá-las das solteiras e mundanas, apresentando o discurso do pecado da luxúria e valorizando o papel do casamento. Em virtude deste pensamento moral, que assolava os costumes da sociedade na época, era questionável a presença feminina nas artes de interpretar, bem como na música em apresentações públicas no Brasil oitocentista. A presença feminina, especialmente as de tez negra ou descendentes de negros na música não era de agrado para a sociedade carioca do século XIX, mas elas se entregaram à arte de cantar, dançar e representar.
Pacheco (2006) aponta que a história da música apresenta uma postura conservadora, em que a participação das mulheres era ínfima, o que denota a conspiração do universo masculino, que ignorava a presença feminina no mundo musical no Brasil colônia, bem como em outras artes.
A participação das mulheres públicas na música, que participavam de confrarias, ocorria na função de copistas, ofício esse que necessitava de grande conhecimento teórico e prático no século XIX, e era pequena a expressão do grupo feminino que exercia essa função. Todavia, Pacheco (2006) identifica a relevante atuação da cantora Joaquina Lapinha nesse período, além de observar a participação de outras duas mulheres no ambiente musical do Brasil colonial e imperial. Nesse universo, Pacheco (2006) também destaca Dona Mariana, uma senhora de fino trato do Rio de Janeiro, que obtinha grande habilidade no piano e que compôs belas modinhas. Assim também, a Sra. Gardiner, filha de médico e esposa de professor de química da academia militar do Rio de Janeiro, era exímia pianista.
O papel da mulher atuando como profissional na música era restrito à separação de raça e classe social. Assim sendo, encontravam-se nos concertos privados as fidalgas, geralmente ao piano ou como cantoras. Na atuação nos teatros, encontravam-se as mulheres públicas, ou seja, as não pertencentes às famílias de fino trato da cidade e as afrodescendentes. Pacheco (2006).
No século XIX além da separação por gênero no teatro, alguns viajantes que pelo Brasil passaram identificam a grande presença de mulatos, que cobriam suas faces com maquiagem branca e vermelha, e as mulheres públicas, que representavam um vil objeto. Fato que, segundo Pacheco (2006), caracterizava a presente percepção sexualmente carregada do homem europeu sobre a mulher brasileira. Assim sendo, tais demonstrações sobre a figura feminina denotam que a mulher de carreira artística não tinha uma boa reputação, o que restringia à função desse ofício às mulheres de cor.
Contudo, relata Pacheco (2006), que as mulheres afrodescendentes tinham no ofício artístico uma forma de ascensão social, ao se apresentarem nos palcos e salões da corte. Elas, através do oficio da música, criaram uma ambiguidade no seio da sociedade. Sociedade essa que as ignorava e não as respeitavam; porém, com o oficio da música e da arte, passam a serem consideradas verdadeiras divas, e serem aceitas e notadas como artistas. Desse modo, elas não eram mais vistas como um vil objeto, mas sim reconhecidas pelos locais públicos por onde frequentavam como pessoas famosas.
Para essas mulheres, que viviam em uma sociedade patriarcal, elevar-se na sociedade como artista era sair da invisibilidade para a visibilidade, e nessa conjuntura a mulher “negra” atingia seu status social (SANTOS, 2002). Neste contexto o autor acredita que a mobilidade social do afrodescendente pela participação no meio artístico foi um acontecimento que aproximou negros e brancos, fato que não aconteceu com os afrodescendentes que não pertenciam ao universo da música e da dramaturgia.
De certa forma o que assistimos desde o período colonial é uma certa manipulação das ideias através de um vocabulário, que classifica grupos na sociedade através de castas com pigmentação diferente, dando a falsa ideia de quanto mais clara for a pigmentação, mais próximo estarão do dominador (SANTOS, 1998, apud LEEUWEN 2009, p. 65).
Neste sentido, Cardoso (2006) relata que a questão da pigmentação da pele é bastante complicada, pois, mesmo que os mulatos se aproximem dos brancos pela sua atuação artística, percebe-se que o “defeito da cor” não deixou de estar presente. Entretanto, o autor supõe que a presença da “mulatice” nos espetáculos devia-se ao aumento de mulatos na população brasileira da época colonial, conforme atestam documentos do início de século XVIII. A participação da figura dos mulatos nas apresentações teatrais, como também de músicos, era de certa forma uma elevação social deste grupo marginalizado pela sociedade carioca (SANTOS, 2004).
O fenômeno do mulatismo, segundo Santos (2004), e a ascendência do mulato na prática musical foi um advento que aconteceu nos meados dos anos setecentistas, período que ocorreu à inclusão dos negros nas igrejas católicas. Evento que devesse a reforma pombalina, que era fundamentada na eliminação de preconceito de raça e que visou incorporação de gente da terra nas estruturas dogmáticas e administrativa da religião católica. Todavia, a inclusão do mulato na música não foi concedida, mas sim conquistada, pois esse grupo étnico sempre estivera sujeito a preconceitos e discriminação pela cor da pele.
Leeuwen e Hora (2012) observam que, frente a esse cenário, o pudor que implica na separação de gênero no período setecentista quanto à presença da mulher nas apresentações teatrais foi transgredido pela presença das mulatas nas representações teatrais e musicais, e isso foi um avanço da categoria feminina. Isso porque o Brasil vivia sob a administração portuguesa e que em Portugal durante o governo de Maria I era proibida a presença feminina nos palcos portugueses.
No Brasil, em cidades como Cuiabá e Salvador, persistiram os gostos e práticas teatrais da primeira metade do século XVIII, ou seja, com a apresentação exclusivamente de homens nas representações. Da mesma forma, evidenciam Leeuwen e Hora que no Rio de Janeiro havia interpretações com um elenco fundamentalmente masculino. Eles também possuíam uma boa casa da ópera, onde comumente se representava ópera duas vezes por semana, assim como nos feriados. Nessas ocasiões não se apresentavam mulheres no palco, e elas eram representadas por homens, de forma muito desajeitada em suas ações artísticas (Leeuwen e Hora, 2012).
Esses atores de pele escura, observa Santos (2011), muitas vezes se apresentavam de perucas loiras, e as peças eram mal traduzidas, mal ensaiadas e repetitivas; portanto, mal representadas, segundo os paramentos de uma cena frontal e centrado no bom falar do texto, o que denotava amadorismo. Isso também se dava em virtude de o branco, especialmente os bem-nascidos, entenderem que a função de ator não tinha futuro; daí a aceitação dos mulatos e mulatas na atuação como atores.
Declara Machado Neto (2008) que a presença das mulheres mestiças nas apresentações nas colônias está relacionada aos ideais iluministas, que eram contrários a personagens travestidos em apresentações. E o mesmo ocorre com a inserção dos mulatos nas práticas musicais das igrejas católicas, no que se refere à não discriminação de raças, exigida pelo Marquês de Pombal.
A participação feminina, segundo Leeuwen e Hora (2012), foi marcada pela presença das mulatas: as cômicas Violante Monica, Anna Joaquina, Joanna Maria e Antônia Fontes, entre outras no território nacional. Entre estas, também, a importante Joaquina Maria da Conceição, a Joaquina Lapinha, a única cantora brasileira de tez negra, de que se tem notícia na época, a ter atuação internacional em realizações de concertos no Porto e em Lisboa, entre 1795 e 1796.
Segundo Leeuwen e Hora (2012) a cantora e atriz dramática de origem brasileira atuou tanto no Brasil quanto em Portugal, no período que compreende o final do século XVIII e início do século XIX. De acordo com os escritos de Leuween e Hora, Joaquina Maria da Conceição, conhecida como Joaquina Lapinha, é a única intérprete feminina, negra e brasileira de que se tem conhecimento de atuação artística originária da então colônia portuguesa, o Brasil. No que se refere às origens de Joaquina Lapinha, não se tem grandes informações, porém, em virtude de o período do vice-reino de Salvador ter se deslocado para o Rio de Janeiro, e do declínio da mineração, que trouxe muitos músicos de Minas Gerais para a cidade carioca, acredita-se que Joaquina Lapinha fazia parte desse grupo de músicos mineiros, que para a cidade carioca vieram em virtude da falência do território mineiro. Quanto às evidências da participação da cantora nos elencos dos teatros cariocas setecentistas, as fontes utilizadas são secundárias. Outras referências sobre a atuação de Lapinha no Rio de Janeiro são encontradas somente a partir de 1808, devidamente documentadas, como é o caso dos manuscritos musicais de obras profanas de Nunes Garcia. Nesses escritos ele identifica a apresentação de Lapinha como intérprete e em um coro no ano de 1808, nos dramas Ulisseia e O triunfo da América, ambas compostas em 1809 (Leeuwen e Hora, 2012).
Lapinha participou nos palcos portugueses por seis meses, em um primeiro momento, em concertos vocais pelo país lusitano. Logo após ser autorizada a participação de mulheres nos palcos portugueses, todavia, ela retornou a Portugal em outras ocasiões para representar sua arte (Leeuwen, 2009).
Segundo Cardoso (2008), os comentários acerca das três mulheres autorizadas pela realeza a se apresentarem se voltam para Lapinha, quando atestam que entre as mulheres uma era natural do Brasil. E que, sendo ela filha de uma mulata, tinha pele escura, porém que esse inconveniente foi remediado com cosméticos, mas que, fora isso, era uma figura imponente, com boa voz e muito sentimento dramático. Segundo o autor, Lapinha participou em obras musicais de autores europeus, a exemplo de La modista raggiratrice, Il fanatico in Berlina, La Molinara ou l’amor contrastato e Il Barbiere di Siviglia, de autorias de Paisiello, entre outras obras de autores diversos.
Leeuwen e Hora (2012) destacam a existência de documentos que possibilitam, ao menos, situar o período em que a cantora brasileira permaneceu em Portugal, confirmando sua participação no elenco português. Ou seja, pelos pedidos para que fossem emitidos licença ou passaporte, necessários para o trânsito entre Brasil e Portugal, podemos inferir que Lapinha esteve na metrópole entre os anos de 1791 e 1805. Esses documentos, presentes no Arquivo Ultramarino, em Lisboa, são:
Ofício do Secretario de Estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, ao Vice-Rei do Estado do Brasil, conde de Resende, D. José Luís de Castro, comunicando que fora concedida a licença solicitada por Maria da Lapa e sua filha Joaquina Maria da Conceição [Lapinha] para irem ao Reino. 1791, Maio, 16. [P-Lahu/AHU_ACL_CU_017, Cx. 141, D. 11029, rolo 159]; Oficio de Tomé Barbosa a José Manoel Plácido de Moraes, solicitando Passaporte para o Rio de Janeiro para Maria da Lapa e sua filha Joaquina Maria Lapinha, duas libertas Eva e Inacia [6 de agosto de 1805]21 [P-Lahu/AHU_ACL_CU_017, Cx. 229, D. 15673, rolo 23] (LEEUWEN, 2012, p. 8).
Observam Leeuwen e Hora (2012) que os documentos confirmam sua ida a Portugal e retorno ao Brasil, acompanhada de sua mãe e de duas escravas libertas. Tais deslocamentos entre os dois países nesse período levam os autores a admitir que Lapinha e sua mãe desfrutavam de uma condição econômica abastada.
Ainda sobre as apresentações de Lapinha em terras lusitanas, Leeuwen e Hora (2012) apontam que notícias da Gazeta de Lisboa sobre concerto realizado no Teatro de São Carlos fazem elogios a Joaquina Maria da Conceição Lapinha. Ali foi noticiado que em 6 de fevereiro de 1795 que a harmoniosa execução do seu canto excedeu a expectativa de todos, e que Lapinha recebeu muitos aplausos, e que sua voz firme e de sonoridade agradável foi reconhecida pelo público presente. O mesmo jornal, afirmam os autores, em 2 de fevereiro de 1796, informa que, devido ao grande público que compareceu ao teatro para assisti-la, a cantora se viu obrigada a voltar para contemplar aqueles que não tinham conseguido lugar no teatro para admirar tão bela apresentação.
De volta ao Rio de Janeiro, Lapinha deu novo impulso ao teatro. Além dela, havia as cantoras Francisca de Paula, Maria Jacinta, Genoveva Inês e Maria Cândida; entre os cantores, Manuel Rodrigues Silva, Ladislau, Luiz Inácio e Geraldo, músico excelente. E o célebre baixo João dos Reis. Com esta companhia foram à cena Semíramis, Romeu e Julieta, O barbeiro de Sevilha, Ouro não compra amor e Louco em Veneza, entre outras (Leeuwen e Hora, 2012).
O seu talento como atriz em terras cariocas – declaram Leeuwen e Hora (2012) – se apresentou no Theatro de Manoel Luiz, frequentado pela melhor sociedade da época. Nele Lapinha apresentou danças como a desnalgada, e sapateando a fofa, o lundum, o sarambeque, o arrepia, o oitavado e outras. A cantora e atriz Joaquina Lapinha também participou de concertos privados, como consta na Gazeta do Rio de Janeiro, em 11 de outubro de 1809, na residência de Madama D’Aunay, cômica e cantora que se apresentava nos teatros de Paris e Londres.
Ainda no Rio de Janeiro, Lapinha se apresentou como primeira atriz, em 1811, no Teatro Régio, dirigido por Manoel Luiz Ferreira. Seu grande sucesso era em Erícia ou A Vestal, tragédia de Dubois Fontenelle, traduzida do francês pelo poeta português Manuel de Barbosa du Bocage, no ano de 1805 (ver Andrade, 1967).
Nos anos setecentistas e oitocentistas, a cantora e atriz se fez presente em obras musicais e representações teatrais, algumas devidamente comprovadas por libretos e outras apresentadas por circunstâncias com poucas comprovações, conforme declaram Leeuwen e Hora (2012).
Considerações finais
Considerando o papel do negro nas artes musicais e de representações teatrais, nos séculos XVII e XIX, remetemos nossas observações à situação atual, pois nos meados do século XX e na virada do século XXI mudou o cenário da atuação desse grupo étnico nas representações teatrais.
Assim sendo, entendemos que este papel de ator era destinado à figura do mulato, conforme apontam as fontes citadas nesse artigo, porque a arte, para as famílias abastardas, não oferecia futuro para os seus jovens. Na atualidade, percebemos que existe uma necessidade de se destinarem cotas para que os negros e mulatos tenham acesso, especialmente na arte de representar. No que se refere ao espaço musical, o negro tem no samba o maior espaço de representação musical, perfil menos observado na música clássica no território brasileiro.
Ao trazermos em evidência a história de Joaquina Lapinha, observamos que os pesquisadores aqui citados, para obterem dados sobre o papel de Lapinha na arte, contaram com libretos de teatros, recortes de jornais e documentos ultramarinos para descrever a importância da mesma na história da música e do teatro.
Essa brasileira, mulher afrodescendente, que atuou e mostrou seus atributos vocais em composições líricas de sucesso, só teve sua história acessível ao público de classe popular brasileira, devido à grande cultura de origem africana na cidade do Rio de Janeiro. Tenha-se em vista que foi através do samba de enredo da Escola de samba Inocentes de Belford Roxo que esta personagem brasileira afrodescendente foi homenageada na avenida Marquês de Sapucaí no Carnaval de 2014. Foi através desse evento popular que Joaquina Lapinha passou a ser conhecida no Brasil e em vários países que assistiram os desfiles carnavalescos, como cantora de repertório soprano e atriz que levou para o continente europeu no século XVIII a diversidade brasileira.
É neste contexto que enaltecemos a cultura do Carnaval das Escolas de samba, pois é através de seus enredos que surgem algumas curiosidades, que nos levam a nos debruçar na busca de informações sobre fatos e personagens do nosso território brasileiro. É por conta dessa curiosidade que nos provocou esse enredo sobre Joaquina Lapinha que surgiram outras evidências acerca da participação do negro na cultura teatral do Rio de Janeiro e a exclusão das mulheres do ambiente artístico, espaço que foi conquistado pelas mulheres afro-brasileiras.
REFERÊNCIAS
Andrade, Ayres de. Francisco Manuel da Silva e seu tempo: 1808-1865: uma fase do passado musical do Rio de Janeiro à luz de novos documentos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967. 2 v.
Cardoso, André. A música na corte de D. João VI: 1808-1821. São Paulo: Martins Editora, 2008.
Leeuwen, Alexandra van. A cantora Joaquin Lapinha. Sua contribuição para o repertório de soprano coloratura no período colonial brasileiro. Campinas, SP: UNICAMP, 2009.
LEEUWEN, Alexandra van; HORA, Edmundo Pacheco. LAPA, Joaquina Maria da Conceição da [conhecida por Joaquina Lapinha]. In: Dicionário biográfico Caravelas, Núcleo de Estudos da Historia da música luso-brasileira. Belo Horizonte, fevereiro 2012. Em www.caravelas.com.pt. Acesso em 23/01/2015.
MACHADO NETO, Diósnio. Administrando a festa: Música e Iluminismo no Brasil colonial. São Paulo: USP, 2008. Disponível em:
<http://www.dominiopublico.gov.br/>. Acesso em julho de 2014.
PACHECO, Alberto José Vieira. O canto antigo italiano: uma análise comparativa dos tratados de canto de Pier Tosi, Giambattista Mancini e Manuel P. R. Garcia. São Paulo: Annablume, 2006.
Santos, Antônio Carlos dos. O timbre feminino e negro da música antiga brasileira (séc. XIX). In: Encontro de Musicologia histórica, 5, 19-21 jul. 2002, Juiz de Fora, MG. Anais… Juiz de Fora, MG: Centro Cultural Pró-Música, 2004 .
SANTOS, Adriana Patrícia dos. Atores negros e atrizes negras: das companhias ao teatro de grupo Florianópolis. Florianópolis, SC: UESC, 2011.
Nota da revista Literatura e Cultura: Assim como não chamamos chineses de amarelos, ou indígenas de vermelhos, gostaríamos de utilizar o termo afrodescendente ou afro-brasileiro, mas respeitamos o texto como está, segundo determinação dos autores.