Autor: Machado de Assis
Título: A Carteira
Idiomas: port
Tradutor: –
Data: 03/02/2006
A CARTEIRA
Machado de Assis
… De repente, Hon?rio olhou para o ch?o e viu uma carteira. Abaixar-se, apanh?-la e guard?-la foi obra de alguns instantes. Ningu?m o viu, salvo um homem que estava ? porta de uma loja, e que, sem o conhecer, lhe disse rindo:
? Olhe, se n?o d? por ela; perdia-a de uma vez.
? ? verdade, concordou Hon?rio envergonhado.
Para avaliar a oportunidade desta carteira, ? preciso saber que Hon?rio tem de pagar amanh? uma d?vida, quatrocentos e tantos mil-r?is, e a carteira trazia o bojo recheado. A d?vida n?o parece grande para um homem da posi??o de Hon?rio, que advoga; mas todas as quantias s?o grandes ou pequenas, segundo as circunst?ncias, e as dele n?o podiam ser piores. Gastos de fam?lia excessivos, a princ?pio por servir a parentes, e depois por agradar ? mulher, que vivia aborrecida da solid?o; baile daqui, jantar dali, chap?us, leques, tanta cousa mais, que n?o havia rem?dio sen?o ir descontando o futuro. Endividou-se. Come?ou pelas contas de lojas e armaz?ns; passou aos empr?stimos, duzentos a um, trezentos a outro, quinhentos a outro, e tudo a crescer, e os bailes a darem-se, e os jantares a comerem-se, um turbilh?o perp?tuo, uma voragem.
? Tu agora vais bem, n?o? dizia-lhe ultimamente o Gustavo C…, advogado e familiar da casa.
? Agora vou, mentiu o Hon?rio.
A verdade ? que ia mal. Poucas causas, de pequena monta, e constituintes remissos; por desgra?a perdera ultimamente um processo, em que fundara grandes esperan?as. N?o s? recebeu pouco, mas at? parece que ele lhe tirou alguma cousa ? reputa??o jur?dica; em todo caso, andavam mofinas nos jornais.
D. Am?lia n?o sabia nada; ele n?o contava nada ? mulher, bons ou maus neg?cios. N?o contava nada a ningu?m. Fingia-se t?o alegre como se nadasse em um mar de prosperidades. Quando o Gustavo, que ia todas as noites ? casa dele, dizia uma ou duas pilh?rias, ele respondia com tr?s e quatro; e depois ia ouvir os trechos de m?sica alem?, que D. Am?lia tocava muito bem ao piano, e que o Gustavo escutava com indiz?vel prazer, ou jogavam cartas, ou simplesmente falavam de pol?tica.
Um dia, a mulher foi ach?-lo dando muitos beijos ? filha, crian?a de quatro anos, e viu-lhe os olhos molhados; ficou espantada, e perguntou-lhe o que era.
? Nada, nada.
Compreende-se que era o medo do futuro e o horror da mis?ria. Mas as esperan?as voltavam com facilidade. A id?ia de que os dias melhores tinham de vir dava-lhe conforto para a luta. Estava com, trinta e quatro anos; era o princ?pio da carreira: todos os princ?pios s?o dif?ceis. E toca a trabalhar, a esperar, a gastar, pedir fiado ou: emprestado, para pagar mal, e a m?s horas.
A d?vida urgente de hoje s?o uns malditos quatrocentos e tantos mil-r?is de carros. Nunca demorou tanto a conta, nem ela cresceu tanto, como agora; e, a rigor, o credor n?o lhe punha a faca aos peitos; mas disse-lhe hoje uma palavra azeda, com um gesto mau, e Hon?rio quer pagar-lhe hoje mesmo. Eram cinco horas da tarde. Tinha-se lembrado de ir a um agiota, mas voltou sem ousar pedir nada. Ao enfiar pela Rua da Assembl?ia ? que viu a carteira no ch?o, apanhou-a, meteu no bolso, e foi andando.
Durante os primeiros minutos, Hon?rio n?o pensou nada; foi andando, andando, andando, at? o Largo da Carioca. No Largo parou alguns instantes, ? enfiou depois pela Rua da Carioca, mas voltou logo, e entrou na Rua Uruguaiana. Sem saber como, achou-se da? a pouco no Largo de S. Francisco de Paula; e ainda, sem saber como, entrou em um Caf?. Pediu alguma cousa e encostou-se ? parede, olhando para fora. Tinha medo de abrir a carteira; podia n?o achar nada, apenas pap?is e sem valor para ele. Ao mesmo tempo, e esta era a causa principal das reflex?es, a consci?ncia perguntava-lhe se podia utilizar-se do dinheiro que achasse. N?o lhe perguntava com o ar de quem n?o sabe, mas antes com uma express?o ir?nica e de censura. Podia lan?ar m?o do dinheiro, e ir pagar com ele a d?vida? Eis o ponto. A consci?ncia acabou por lhe dizer que n?o podia, que devia levar a carteira ? pol?cia, ou anunci?-la; mas t?o depressa acabava de lhe dizer isto, vinham os apuros da ocasi?o, e puxavam por ele, e convidavam-no a ir pagar a cocheira. Chegavam mesmo a dizer-lhe que, se fosse ele que a tivesse perdido, ningu?m iria entregar-lha; insinua??o que lhe deu ?nimo.
Tudo isso antes de abrir a carteira. Tirou-a do bolso, finalmente, mas com medo, quase ?s escondidas; abriu-a, e ficou tr?mulo. Tinha dinheiro, muito dinheiro; n?o contou, mas viu duas notas de duzentos mil-r?is, algumas de cinq?enta e vinte; calculou uns setecentos mil r?is ou mais; quando menos, seiscentos. Era a d?vida paga; eram menos algumas despesas urgentes. Hon?rio teve tenta??es de fechar os olhos, correr ? cocheira, pagar, e, depois de paga a d?vida, adeus; reconciliar-se-ia consigo. Fechou a carteira, e com medo de a perder, tornou a guard?-la.
Mas da? a pouco tirou-a outra vez, e abriu-a, com vontade de contar o dinheiro. Contar para qu?? Era dele? Afinal venceu-se e contou: eram setecentos e trinta mil-r?is. Hon?rio teve um calafrio. Ningu?m viu, ningu?m soube; podia ser um lance da fortuna, a sua boa sorte, um anjo… Hon?rio teve pena de n?o crer nos anjos… Mas por que n?o havia de crer neles? E voltava ao dinheiro, olhava, passava-o pelas m?os; depois, resolvia o contr?rio, n?o usar do achado, restitu?-lo. Restitu?-lo a quem? Tratou de ver se havia na carteira algum sinal.
?Se houver um nome, uma indica??o qualquer, n?o posso utilizar-me do dinheiro?, pensou ele.
Esquadrinhou os bolsos da carteira. Achou cartas, que n?o abriu, bilhetinhos dobrados, que n?o leu, e por fim um cart?o de visita; leu o nome; era do Gustavo. Mas ent?o, a carteira?… Examinou-a por fora, e pareceu-lhe efetivamente do amigo. Voltou ao interior; achou mais dois cart?es, mais tr?s, mais cinco. N?o havia duvidar; era dele.
A descoberta entristeceu-o. N?o podia ficar com o dinheiro, sem praticar um ato il?cito, e, naquele caso, doloroso ao seu cora??o porque era em dano de um amigo. Todo o castelo levantado esboroou-se como se fosse de cartas. Bebeu a ?ltima gota de caf?, sem reparar que estava frio. Saiu, e s? ent?o reparou que era quase noite. Caminhou para casa. Parece que a necessidade ainda lhe deu uns dois empurr?es, mas ele resistiu.
?Paci?ncia, disse ele consigo; verei amanh? o que posso fazer?.
Chegando a casa, j? ali achou o Gustavo, um pouco preocupado, e a pr?pria D. Am?lia o parecia tamb?m. Entrou rindo, e perguntou ao amigo se lhe faltava alguma cousa.
? Nada.
? Nada?
? Por qu??
? Mete a m?o no bolso; n?o te falta nada?
? Falta?me a carteira, disse o Gustavo sem meter a m?o no bolso. Sabes se algu?m a achou?
? Achei-a eu, disse Hon?rio entregando-lha.
Gustavo pegou dela precipitadamente, e olhou desconfiado para o amigo. Esse olhar foi para Hon?rio como um golpe de estilete; depois de tanta luta com a necessidade, era um triste pr?mio. Sorriu amargamente; e, como o outro lhe perguntasse onde a achara, deu-lhe as explica??es precisas.
? Mas conheceste?a?
? N?o; achei os teus bilhetes de visita.
Hon?rio deu duas voltas, e foi mudar de toilette para o jantar. Ent?o Gustavo sacou novamente a carteira, abriu-a, foi a um dos bolsos, tirou um dos bilhetinhos, que o outro n?o quis abrir nem ler, e estendeu-o a D. Am?lia, que, ansiosa e tr?mula, rasgou-o em trinta mil peda?os: era um bilhetinho de amor.
Texto cedido pela ?Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro? http://www.bibvirt.futuro.usp.br. A Escola do Futuro da Universidade de S?o Paulo.